Por: André | 01 Outubro 2015
Em seu discurso desta terça-feira, o novo líder trabalhista parecia um Mahatma Gandhi que responde aos ataques com bom humor e, sem renunciar às suas convicções, propõe uma política mais amável, baseada no respeito mútuo e no debate de ideias.
A reportagem é de Marcelo Justo e publicada por Página/12, 30-09-2015. A tradução é de André Langer.
Jeremy Corbyn redefiniu o trabalhismo e a esquerda britânica em seu primeiro discurso no congresso anual do partido, transmitido ao vivo pela TV para todo o país. Nessa espécie de cadeia nacional que são os congressos partidários, que definem a agenda política britânica dos próximos 12 meses, Corbyn enterrou o “Novo Trabalhismo” de Tony Blair ao anunciar que avançará na estatização das ferrovias, estenderá os direitos sociais para milhões de trabalhadores autônomos, combaterá frontalmente as políticas de austeridade e pretende promover uma nova política exterior baseada nos direitos humanos.
Com a majoritária imprensa conservadora apresentando-o como um Lênin britânico decidido a tomar de assalto o Palácio de Buckingham, com a direita de seu próprio partido flutuando entre o estupor, a expectativa e a conspiração, Corbyn adotou um estilo que uma analista não corbynista do The Guardian, Michael White, definiu como “calma zen” perante as tempestades. Longe do raivoso revolucionário decidido a lançar uma emboscada marxista contra o parlamento e o n. 10 da Downing Street (a imprensa adotou um tom desavergonhadamente macartista nas últimas semanas), o novo líder trabalhista parecia um Mahatma Gandhi que responde aos ataques com bom humor e, sem renunciar às suas convicções, propõe uma política mais amável, baseada no respeito mútuo e no debate de ideias.
Com esta estratégia “gandhiana” à implacável investida midiática, Corbyn falou de um patriotismo baseado em uma solidariedade de medidas inclusivas. “Não queremos uma sociedade na qual as pessoas cruzam a rua quando veem alguém que está em dificuldades. Queremos solidariedade, respeito do ponto de vista dos outros, “fair play”. Este “fair play” é um valor fundamental dos britânicos, uma das razões pela qual amo este país e seu povo. Escolheram-me para defender esta política: uma política mais amável e uma sociedade mais bondosa”, indicou Corbyn.
A mensagem pode parecer banal, ingênua ou abstrata, mas é uma maneira de redefinir o patriotismo depois da abusiva catarata de críticas que recebeu por não cantar em um ato público o “God save the Queen” (em um país monárquico, Corbyn é republicano) que, na prática (embora seja discutível se a canção pode ser mesmo considerada um hino nacional, já que não se trata de uma resolução do Parlamento). O líder trabalhista ancorou o patriotismo na solidariedade e na ética do “fair play” para, de passagem, responder a outra crítica: que sua mensagem não abarca aqueles que aspiram a melhorar sua situação de vida com seu próprio esforço. “Queremos que os trabalhadores autônomos tenham direito à licença paternidade ou maternidade e que tenham cobertura social em caso de doença. O trabalhismo criou o Estado de Bem-Estar. Este Estado de Bem-Estar tem que ser para todos”, indicou Corbyn.
Cerca de quatro milhões de trabalhadores (um de cada sete) são autônomos, algo que, segundo os conservadores, mostra o espírito empreendedor dos britânicos, embora muitos sejam microempresas montadas na falta de outros empregos, como demonstra a renda anual média do conjunto, muito abaixo da metade do salário médio nacional. Corbyn buscou levar a mesma mensagem modernizadora à pequena e média empresa, a quem disse que apoiará com a proposta de um Banco de Desenvolvimento e investimentos em infra-estrutura e um programa de habitação.
No mesmo discurso, apontou que os direitos humanos deviam estar no centro da política externa britânica, tanto no caso da Síria como no dos refugiados, e desafiou o primeiro-ministro David Cameron a exigir de um dos grandes clientes da poderosa indústria de armamentos britânica, a Arábia Saudita, que reveja sua decisão de crucificar e decapitar Ali Mohammed Anama, um ativista que, aos 16 anos, teve o atrevimento de participar de uma manifestação.
Corbyn não se esquivou de temas conflitivos e voltou a rechaçar a renovação do sistema nuclear Trident, que “custará 100 bilhões de libras, uma quarta parte do orçamento da defesa”. Mas o tom do seu discurso foi inclusivo quando falou sobre as outras facções do partido, com elogios abertos aos três candidatos que derrotou nas eleições internas de 12 de setembro. Neste tom conciliador, Corbyn criticou a decisão de declarar guerra contra o Iraque, mas não pediu publicamente perdão aos britânicos, algo que teria reaberto as feridas com o blairismo e os parlamentares – a maioria – que apoiaram a invasão e a queda de Sadam Hussein. Ainda assim, cedo ou tarde, o trabalhismo terá que encontrar uma saída para as profundas divisões internas entre corbynistas e blairistas sobre o sistema nuclear Trident ou o possível bombardeio ao Estado Islâmico na Síria.
O impacto do corbynismo no país é mais enigmático. A imprensa conservadora decidiu há muito tempo que o atacará com todo o seu arsenal para além do que disser ou deixe de dizer. Com bastante humor, Corbyn começou seu discurso referindo-se à imprensa. “Vocês devem ter notado que alguns jornais se interessaram pelo que eu fiz nestas duas semanas tão tranquilas que tive”. Segundo uma manchete, “Jeremy Corbyn dá as boas-vindas à possibilidade de que um asteroide apague a humanidade da face da Terra”. “Dado que os asteroides são tão controversos, não gostaria que este congresso adotasse uma política a respeito sem antes ter feito um aprofundado debate”, assinalou em meio aos risos do auditório que se transformaram em gargalhadas quando Corbyn citou o jornal Daily Express e sua descrição da bicicleta que usa para ir ao parlamento como “uma bicicleta estilo presidente Mao Tse-tung”.
Esta ofensiva midiática continuará. A imprensa conservadora teme o impacto que as ideias de Corbyn têm sobre a população e a possibilidade dele superar a muralha comunicacional e reabilitar a oposição. As primeiras opiniões recolhidas pela BBC flutuam entre aqueles que pensam que é “inelegível” ou que “vive na lua” e aqueles que acreditam que é “uma esperança” e uma “nova voz”. Em temas econômicos e sociais, o trabalhismo melhora sua imagem a partir deste congresso, com uma mensagem ao mesmo tempo renovadora e reformista.
Mais complicadas são as questões internacionais e de defesa, tão sensíveis em um país que têm nas costas duas guerras mundiais, um ex-império e a segunda maior indústria militar do planeta. Em termos concretos, os votos começarão a ser contados em maio próximo nas eleições em Londres, Bristol, Gales, Escócia e municípios ingleses, momento em que se verá o impacto do corbynismo no Reino Unido e sua mensagem para o resto da esquerda na Europa.
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Corbyn enterrou o “Novo Trabalhismo” de Blair - Instituto Humanitas Unisinos - IHU