23 Setembro 2015
O papel do professor se complexifica cada vez mais na atualidade e tem a potencialidade de abrir caminhos para a construção de novas realidades
Alexandre de Carvalho |
Para o professor Alexandre Filordi de Carvalho, ao passar de um saber para outro, de uma relação de poder para outra ocupamos e fazemos diferentes trajetos, havendo dimensões objetivas e subjetivas nesses caminhos. Desse modo, todo foco de experiência produz um certo trajeto para nós e um modo de ser específico. Sobre o cenário atual e os percursos que o mesmo enseja, o professor ressalta que “a trajetividade construída pelo neoliberalismo eleva à máxima potência o poder da abstração. Muito se diz que o mercado vai mal, porém eu me pergunto: Quais são os olhos do mercado? Vejo em alguns discursos de campanhas políticas: nós vamos fazer o melhor para o povo. Mas quem é de fato esse povo? O que é esse melhor?”
O tema da educação em suas relações com o cenário multifacetado de hoje foi tratado pelo professor em sua conferência intitulada “A função-educador na perspectiva da biopolítica e da governamentalidade neoliberal”, na tarde da última segunda-feira, 21-09-2015, no auditório central no campus da Unisinos em São Leopoldo. A conferência integra a programação do V Colóquio Latino-Americano de Biopolítica, o III Colóquio Internacional de Biopolítica e Educação e o XVII Simpósio Internacional IHU - Saberes e Práticas na Constituição dos Sujeitos na Contemporaneidade, que acontece até o dia 24 de setembro na universidade.
Carvalho recupera as origens do liberalismo para refazer alguns pontos da trajetória que nos leva até a atual conjuntura. “O liberalismo, desde seus primórdios, prega três eixos de liberdade: Deixar as pessoas fazerem (mínimo comando do Estado), deixar as coisas acontecerem (livre regulação do mercado) e deixar as coisas irem (demanda e oferta livres). Entretanto, essa liberdade funciona dentro de intensos esquemas normativos, ao que se chama de engenharia social, a qual foi intensificada pelas políticas liberais”, explica.
Esse controle social fica escamoteado pelo discurso da individualidade, utilizado pelo liberalismo como recurso para construir um imaginário de que as pessoas são livres, quando na realidade nesse contexto a liberdade tem relação direta com a criação de dispositivos de segurança e tudo que assegura a propriedade privada. Nas palavras do professor, trata-se de “estratégias dispositivadas determinadas a definir como se deve viver”.
Conforme aponta Alexandre Filordi de Carvalho, mais recente, o neoliberalismo funciona embasado em três noções:
- Incentivo ao empreendedorismo de si para enfrentar a época de escassez relativa;
- Gestão da qualidade de vida, onde quanto mais as pessoas cuidam de si, menos demanda há para o Estado com a cultura do self care construindo uma população que dê menos trabalho;
- A economia deve se voltar para a formulação do futuro. “A sociedade neoliberalizante procurar tirar de nós a experiência da memória, da presentificação dessa memória, e nos joga na vala de que o futuro vai ser sempre melhor”, frisa.
Educação no contexto da biopolítica e da governamentalidade neoliberal
Para Carvalho, o problema educacional já se inicia quando chegamos à escola e a primeira recomendação que recebemos é que precisamos estudar e aprender para ir bem nos testes. Começa-se a viver o dilema entre Aprender para transformar-se X Aprender para adaptar-se, ter êxito nas provas, na vida e tornar-se um consumidor. “A escola é uma instituição estratégica de construção da realidade. Porém se trata de uma das possibilidades de realidade, uma vez que a escola direciona os estudantes para apenas alguns focos e modos de ver o mundo. Nessa lógica a escola já seleciona os estudantes que se enquadram no modelo de verdade pregado por ela. O estudante não participa da construção do conhecimento, não vê sua subjetividade representada, e toma contato com abstrações, uma vez que o conteúdo em geral é distante do mundo da vida”, enfatiza.
Segundo o professor, dentro desse esquema, a escola funciona a partir de uma “trajetividade de produção do conhecimento” baseada na “monocultura do saber”, na busca do enquadramento a uma linguagem universal; no “alisamento subjetivo”, no qual a biopolítica opera administrando as potencialidades individuais e planificando-as; e na “sociedade da perfeição”, que busca formas de tornar mais suportável o mundo insuportável, alternativas que se traduzem na medicalização da sociedade.
O que é a função-educador nesse contexto?
Com base no conceito de função-autor de Foulcault, Carvalho constrói seu pensamento acerca da função-educador. De acordo com Foulcault, o sujeito que exerce a função-autor tem a capacidade de produzir algo novo, há uma relação de apropriação, de criação, gerada a partir de uma posição variante desse sujeito. “E do ponto de vista da função-educador, o que é que se convoca no cenário neoliberal?”, indaga. Para o professor, de início espera-se que esse profissional procure romper com os discursos neoliberalizantes e respeite as singularidades dos estudantes. E as três principais características do exercício da função-educador são: se colocar em uma posição crítica, ser um intelectual específico e um educador infame.
Posicionamento crítico
A crítica para Foulcault tem uma função interventora de limites diante dos excessos de governo, busca produzir outras relações, outra ordem. Em sala de aula o professor governa, ele exerce uma posição de comando. “Quando tomo a crítica, efetivo singularizações e denuncio as abstrações massificadoras. Um exemplo simples dessa posição é procurar saber o nome de cada aluno para que eles passem a existir para mim enquanto sujeitos e singularidades, que deixem de ser uma massa. Assim se começa a fraturar os focos de experiência que impedem a existência de outros saberes. Desse modo, torna-se mais possível questionar a verdade e o poder para promover a insubmissão involuntária e a reflexão indócil”, frisa.
Professor como intelectual específico
Para Carvalho, o intelectual específico é um profissional capaz de exercer uma mutação numa linha abstrata entre o que ele faz e o espaço em que o estudante está. Para exemplificar essa ideia, o professor citou o caso de um docente de escola pública de São Paulo que desenvolveu com os estudantes um trabalho sobre a violência no Estado. A partir de pesquisas e discussões sobre as 18 mortes ocorridas em cerca de três horas na Grande São Paulo, que investiga-se serem uma retaliação pela morte de um policial, em agosto de 2015, os estudantes concluíram que a violência física praticada pela polícia e o sentido de vingança de algumas ações policiais são preocupações graves para a sociedade. Após esse trabalho com os estudantes, o professor da escola passou a ser perseguido pela polícia, que se pronunciou publicamente sobre essa atividade com os estudantes e pediu que o trabalho fosse interrompido. Solicitação que não foi acatada pela direção da escola, que defendeu o direito à livre manifestação de ideias. “Trata-se de um caso preocupante pelos encaminhamentos que tomou, por outro lado é um fato que mostra como um professor pode ser capaz de deslocar os conteúdos do nível do abstrato e promover uma transformação”, explica.
O educador infame
Alexandre Filordi de Carvalho fundamenta-se no texto de Foulcault “A vida dos homens infames” (do livro Ditos e Escritos (Rio de Janeiro: Forense universitária, 2006)), para dizer que o educador e os estudantes estão na história, fazendo história e vivendo experiências reais, mas nem sempre vistas. Para Carvalho, o “educador vivo” afirma a potência da singularidade humana destituída de fama, por isso é infame. “O educador infame foge das abstrações, pois a vida, a realidade está na carne que habitamos. O infame desapostiliza e desvestibulariza a experiência”, aponta.
O exercício da função-educador seria um foco de resistência no contexto neoliberal contemporâneo. Representa um ponto fora da curva, onde há a possibilidade de refletir, questionar e pensar mudanças que se iniciam em pequenos gestos, os quais têm potencialidade de tomar proporções maiores no pensamento e na construção de outras realidades calcadas na experiência e mais distantes da abstração.
Quem é o conferencista:
Alexandre Filordi de Carvalho é graduado em Pedagogia pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, onde também realizou mestrado. Doutorou-se em Filosofia pela Universidade de São Paulo – USP e em Educação pela Unicamp, onde também realizou pós-doutorado. Atualmente, é professor de Filosofia da Educação na Universidade Federal de São Paulo – Unifesp também atuando como professor no Programa de Pós-Graduação em Educação. É membro coordenador da Red Iberoamericana Foucault - RIF. É autor de Foucault e a função-educador: sujeição e experiências de subjetividades ativas na formação humana (Ijuí: Unijuí, 2010).
Por Leslie Chaves
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A função-educador no contexto de abstração padronizadora - Instituto Humanitas Unisinos - IHU