Por: André | 27 Agosto 2015
O bispo argentino, figura da cúria romana, organizou uma “cúpula” mundial sobre as novas formas de escravidão, que reuniu os prefeitos das principais cidades do mundo para enfrentar o tráfico de pessoas e a prostituição. Esteve no Chile para falar sobre a Laudato si’, mas também sobre como Francisco está mudando o Vaticano.
Morando há mais de quatro décadas em Roma, o bispo Marcelo Sánchez Sorondo foi testemunha direta de todas as surpresas da história contemporânea da Igreja, desde o breve pontificado de João Paulo I até a inesperada renúncia de Bento XVI. Nenhuma comparável, no entanto, à eleição de seu compatriota Jorge Bergoglio como papa e tudo o que ela significou.
Chanceler da várias vezes centenária Pontifícia Academia de Ciências do Vaticano – fundada em 1603 e que teve entre os seus membros o próprio Galileu – conhecia o atual pontífice desde a época em que este era provincial dos jesuítas argentinos. Posteriormente, quando Bergoglio assumiu como arcebispo de Buenos Aires, realizou encargos para a cúria. E agora a Academia é um dos apoios com que o Papa Francisco conta para impulsionar iniciativas como a denúncia do que chama de “novas formas de escravidão” (tráfico de pessoas, trabalho forçado e prostituição, cujas vítimas, calcula-se, cheguem a 30 milhões, e que foi tema de uma reunião mundial de prefeitos recentemente realizada) ou a compilação de material científico para a encíclica Laudato si’.
Precisamente para falar sobre este documento foi que Sánchez Sorondo – convidado pela Universidade Católica – esteve no Chile na semana passada, bispo a quem os anos na Europa não lhe tiraram nem o sotaque nem o modo característico dos argentinos. Tampouco o humor nem a desenvoltura para falar sobre quem é hoje o mais famoso dos seus compatriotas.
A entrevista é de Alvaro Valenzuela M. e publicada por El Mercurio, 23-08-2015. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
Com Francisco, o Vaticano se argentinizou?
“Bom, no sentido de que é um pouco mais católico, sim”, ri, para depois acrescentar, mais sério: “O que não quer dizer que não estejam traçadas muito claramente as linhas de um pontificado”.
Como foi a relação de Francisco com a cúria?
Na época da sua eleição criticou-e muito a cúria, porque se havia entendido em parte que o pobre Papa Bento havia sofrido muito com suas tensões, algumas das quais inclusive se tornaram manifestas nos diários. Por outro lado, o próprio Papa Francisco disse à cúria, no encontro que teve antes do Natal, seus 15 pecados capitais, http://www.ihu.unisinos.br/noticias/538719-discurso-do-papa-francisco-aos-cardeais-e-colaboradores-da-curia-romana que não foram inventados pelo Papa e que se referem à cúria de agora e também à da época em que fecharam a obra jesuítica.
E como se vive em Roma a tentativa do Papa de reformar essa cúria?
Vê-se como uma coisa muito necessária por parte do colégio dos cardeais. Ele fez imediatamente uma mudança muito importante, nomeando um conselho – nós dizemos um G8, embora agora sejam nove – de cardeais representativos, que, além disso, não têm experiência de cúria. Essa é uma nova instituição que se acreditava teria um espaço apenas acidental e que o governo ordinário continuaria a ser realizado pela cúria, mas viu-se na prática que não assim e que a cúria está muito subordinada.
Estamos em um momento de reforma. Já foi reformada a parte da economia, com uma nova secretaria de economia a cargo de um cardeal australiano: esteve nas mãos dos italianos e agora passou a uma mentalidade anglo-saxã, razão pela qual se produz uma mudança muito importante nesse setor. Agora se esperam outras mudanças. Há um movimento muito rápido e muito mais rápido do que se poderia ter pensado.
Você veio para o Chile para falar sobre a Laudato si’. Foi dito muito que é uma encíclica verde. É correta esta interpretação?
O Papa não gosta que seja chamada dessa maneira, e cada vez que pode o diz. Por exemplo, agora tivemos um encontro com os 70 prefeitos http://www.ihu.unisinos.br/noticias/544857-transformar-a-incultura-em-cultura-o-discurso-do-papa-aos-prefeitos-do-mundo de algumas das cidades mais significativas do mundo, e ali o Papa disse: eu não fiz uma encíclica verde; o que tento é falar de temas sociais, de justiça social. Evidentemente, o tema do clima tem uma repercussão sobre os povos mais pobres e toca um tema de justiça.
O meio ambiente significa o habitat do homem, mas o Papa também fala do meio ambiente porque faz parte da criação de Deus. Assim, volta ao espírito de São Francisco de Assis, que vê na natureza a beleza da redenção, onde cada coisa fala de Cristo. Nesse sentido, a encíclica é um documento profundamente religioso.
O Papa propõe um conceito de ecologia integral, onde cabe tanto a preocupação com a natureza como com todo o ambiente humano. Como avalia a receptividade a esse posicionamento? Há pessoas que valorizam a encíclica, mas destacando alguns pontos e calando outros.
O que o Papa busca é que não se estabeleça uma dualidade. O que quis dizer é que não nos interessa só o tema do homem ou só a natureza; interessa-nos a integralidade. Em definitiva, a natureza, a terra, é a casa comum e, portanto, está relacionada de modo fundamental ao homem.
Desde algumas concepções ecologistas coloca-se que o homem é o grande inimigo da natureza e quanto menos seres humanos houver isso resolverá os problemas ambientais.
O Papa segue a ideia bíblica fundamental: o homem é o único ser que é imagem e semelhança de Deus, e tem a responsabilidade de ajudar a natureza, de colaborar na obra da criação. Por isso, o Papa cita o tema da “mãe Terra”, entendendo que sem ela não há vida, mas daí a dizer que o homem está subordinado à Terra, é outra coisa.
A outros chamaram a atenção seus duros termos utilizados para referir-se ao modelo econômico imperante no mundo...
É uma visão da doutrina social. Parece uma novidade, porque ele o acentua, mas já está dito em documentos anteriores da Igreja. O Papa não aceita a teoria liberal do derrame e o endeusamento do mercado. O mercado por si só não ajuda as pessoas, apenas a alguns, e, portanto, é necessário intervir nele em ordem ao bem comum.
Os defensores da visão econômica liberal dizem que é a única que mostrou funcionar e que de fato hoje as pessoas vivem melhor que antes...
Mostrou funcionar para alguns. Produz bens, mas falta a distribuição. O Papa dizia esta semana: é muito importante o trabalho, mas deve estar subordinado a outros valores. Não se pode sacrificar a família pelo trabalho ou pelo mercado. Há uma hierarquia de coisas. E o que o Papa vê é que o sistema econômico atual, enquanto está dirigido fundamentalmente ao lucro, ao proveito econômico, se esquece da pessoa humana e do bem comum.
Isso, para o Papa, é produzido pela teoria do derrame. Eu li algumas críticas à sua posição, mas os nossos economistas, da Academia, como Stiglitz, como Arrow, consideram que o Papa tem razão: o mercado sozinho não produz uma distribuição.
Alguns dizem que nestas questões o Papa é de esquerda.
Isso o Papa também diz. A esquerda, em muitos temas, afastou-se do Evangelho. Mas eu creio que o Papa não é nem de esquerda nem de direita; ele segue o Evangelho: felizes os pobres, felizes os que têm fome e sede de justiça, felizes os que buscam a paz. Esses são os valores do Papa. Não vejo aí que tenha nada de esquerda. Acontece que a esquerda muitas vezes diz isso, mas depois não faz nada. O Papa diz e faz, e é coerente. Não tem um palácio erguido com seu dinheiro, como muitos da esquerda. Não tem uma conta especial em nenhum banco.
E que avaliação você faz do modo como se acolhe em geral as mensagens do Papa? Dá a impressão de que cada qual trata de tirar apenas aquilo que convém à sua própria posição. A esquerda, por exemplo, destaca suas críticas ao mercado, e a direita quando questiona o aborto.
Todos querem puxar a batina do Papa... a começar pelos argentinos (ri). Puxaram todos os papas: João Paulo II, também Bento. A este puxam um pouco mais, porque se mete mais diretamente, com um espírito latino-americano. Um padre brasileiro me dizia que morou muito tempo na Argentina: felicita o Papa, porque só um portenho poderia ser tão direto. É uma coisa simpática, mas algo disso é verdade: o Papa não tem todo esse tipo barroco, ciceroniano, caso se queira, de oratória muito refinada para combinar as palavras, mas que é muito mais direto.
Ele está consciente de que há muitas pessoas que pretendem usar suas palavras?
Em relação aos argentinos ele o disse 50 vezes: “eu já não recebo mais políticos argentinos... mas não os recebo e, mesmo assim, acontece depois que do mesmo têm uma fotografia comigo, uma fotomontagem...”. Está consciente, sim. Mas é utilizável relativamente, porque sempre vai dizendo a mesma coisa de diferentes maneiras, de modo que, ao final, todos já sabem o que vai dizer. A crítica ao mercado e ao derrame, por exemplo, é claríssima. Os que o criticam por isso, é porque o entenderam bem.
No Chile, desconcertaram as declarações do Papa sobre a Bolívia, quando disse que a demanda não era uma coisa injusta. Como devemos entender essas palavras? Aqui nos decepcionamos, sentimos que estava se intrometendo no problema sem compreender a nossa situação.
Não conheço bem o tema... porque não passou pela Academia (ri). O tema das novas formas de escravidão passou pela Academia, o tema do clima passou pela Academia, mas o tema do Chile não foi discutido ali. Não sei o que o Papa exatamente está pensando. O que disse está dito.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“Todos querem puxar a batina do Papa... a começar pelos argentinos”. Entrevista com Marcelo Sánchez Sorondo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU