21 Julho 2015
"Trata-se de um conceito (gênero) cunhado a partir de uma perspectiva que entende que diferença não é, e não deveria ser, sinônimo de desigualdade e que tem sido historicamente utilizado no campo da educação para identificar mecanismos de reprodução de desigualdades no contexto escolar", escreve Regina Facchini, professora da Unicamp e coordenadora do grupo de trabalho de Gênero e Sexualidade da Associação Brasileira de Antropologia, em artigo publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo, 19-07-2015.
Segundo ela, "tirar as palavras gênero, orientação sexual e diversidade dos planos de ensino não excluirá esses assuntos das salas de aula".
Eis o artigo.
A polêmica envolvendo a presença de termos como gênero, diversidade e orientação sexual nos planos municipais e estaduais de educação tem mobilizado uma multiplicidade de atores sociais nas últimas semanas em todo o Brasil. Organizações religiosas, associações científicas, conselhos profissionais, parlamentares, ministros, movimentos sociais voltados para a educação e para o combate a desigualdades sociais têm se manifestado publicamente. Embora haja grande quantidade de envolvidos no debate, o grau de exaltação e a mobilização de pânicos sociais têm prejudicado a possibilidade de reflexão informada.
Os que defendem a supressão desses termos argumentam que tais expressões estariam vinculadas a uma “ideologia de gênero”, que deturparia conceitos de homem e mulher, constituindo ameaça à família e às crianças. Desse modo, um conceito cunhado num campo científico interdisciplinar e que, há décadas, tem orientado políticas nacionais e internacionais de combate a desigualdades sociais é alçado ao lugar de ameaça latente a ser combatida.
Uma das definições de gênero mais populares no meio acadêmico brasileiro, em especial no campo da educação, foi cunhada pela historiadora Joan Scott na segunda metade dos anos 1980. Segundo essa definição, gênero é “um elemento constitutivo das relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos” e também “um modo primordial de dar significado às relações de poder”.
Vale frisar: gênero remete a relações sociais de poder, especialmente ao modo como diferenças corporais entre homens e mulheres são percebidas socialmente e a como podem ser convertidas em desigualdades. Trata-se de um conceito cunhado a partir de uma perspectiva que entende que diferença não é, e não deveria ser, sinônimo de desigualdade e que tem sido historicamente utilizado no campo da educação para identificar mecanismos de reprodução de desigualdades no contexto escolar.
Um dos principais argumentos contra a presença do termo gênero nos planos de educação é o de que, na perspectiva da suposta “ideologia de gênero”, o sujeito ao nascer não teria sexo definido, dado que se trataria de uma construção social. Essa afirmação, além de alarmista, parte de uma falsa oposição entre natureza e sociedade. Seres humanos percebem e se relacionam com tudo que os cerca a partir de convenções sociais. O fato de que algo seja percebido a partir do olhar humano, constituído socialmente, não nega sua materialidade ou sua realidade, mas interfere de modo fundamental no modo como lidamos com ela.
Construções sociais não são algo frágil, irreal, passível de mudança rápida ou por intencionalidade individual. Basta lembrarmos do modo como a cor da pele, textura dos cabelos ou outros traços fenotípicos vêm sendo historicamente entendidos e mobilizados para classificar e hierarquizar seres humanos e das dificuldades que envolvem o combate ao racismo. Falar em uma educação que promova a igualdade de gênero não significa anular as diferenças percebidas entre as pessoas, mas garantir um espaço democrático onde tais diferenças não se desdobrem em desigualdades.
Outro ponto importante do debate diz respeito ao que de fato mudaria com a retirada dos termos gênero, diversidade, orientação sexual dos planos de educação. Suprimir essas palavras de planos que preveem metas e ações para políticas de educação não suprime esses assuntos do universo escolar ou das salas de aula. Os casos que chegam à escola e demandam atenção, como violência física, psíquica ou sexual no âmbito doméstico, gravidez não planejada e indesejada, discriminação e violência no âmbito da própria escola, não desaparecerão. O que pode desaparecer são os recursos e as ações governamentais na direção de preparar e oferecer orientações a profissionais que trabalham na educação para enfrentar essa realidade. Educadores e estudantes passam a contar com menos amparo para enfrentar problemas que, infelizmente, não desaparecem com a exclusão de palavras dos planos para políticas públicas.
No que diz respeito a proteger as crianças e as famílias, que são diversas, é importante lembrar que o aprendizado de questões que envolvem gênero ou sexualidade não está restrito a espaços controlados, como a casa ou a escola. Políticas públicas de educação são instrumentos importantes para intervir na reprodução de desigualdades sociais e para promover direitos fundamentais, como a vida, a saúde, a integridade física e mental e a dignidade. Vivemos numa sociedade com altos índices de desigualdade e de violência contra mulheres, homossexuais, travestis e transexuais.
Nesse contexto, reivindicar que políticas públicas de educação pautem a “igualdade de gênero” é, como argumentou um documento assinado por 188 grupos de pesquisas, instituições científicas e de promoção de direitos civis, “demandar um sistema escolar inclusivo, que crie ações específicas de combate às discriminações e que não contribua para a reprodução das desigualdades que persistem em nossa sociedade”.
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Gênero, orientação sexual e diversidade nos planos de ensino. Falsa ameaça - Instituto Humanitas Unisinos - IHU