25 Março 2015
"É relevante não só a instrução, mas também a educação integral da pessoa na sua multiplicidade espiritual, moral, intelectual, artística, física, esportiva, social. A ideia de que a universidade deve formar para a vida e não para a escola não é apenas uma frase retórica, mas é o programa que deve reger uma instituição católica educativa. Nessa linha, a universidade católica deve estabelecer um debate constante com o horizonte cultural global."
Publicamos aqui a conferência que o cardeal Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, proferiu na Loyola University Chicago, ao receber o doutorado honoris causa que lhe foi concedido pela instituição jesuíta.
O artigo foi publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 22-03-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Um escritor da minha pátria, o italiano Mario Soldati, na sua obra America primo amore, afirmava que "a América não é apenas uma parte do mundo. A América é um estado de espírito, uma paixão. E qualquer europeu pode, de uma hora para a outra, ficar doente de América".
A razão dessa atração é múltipla e nasce da identidade original da civilização norte-americana. Trata-se de uma interrogação que, ainda em 1782, formulava de modo lapidar John Hector St. John de Crevecoeur nas suas Letters from an American Farmer: "What, then, is the American, this new man?" [O que é, então, o norte-americano, esse novo homem?].
As respostas foram múltiplas, aliás, já antecipadas na própria Declaração de Independência dos Estados Unidos da América (1776): os valores da igualdade, dos direitos inalienáveis da vida e da liberdade, do bem comum, da acolhida através da inclusão social dos estrangeiros constituem a fisionomia mais genuína do cidadão estadunidense.
O europeu, nesse retrato de homo americanus, descobria qualidades que eram celebradas também no Velho Continente, mas que, lá, tinham se empalidecido e, às vezes, até mesmo extinguido. É emblemática, no século XIX, a figura do estadista francês Alexis de Tocqueville, que, no seu ensaio De la démocratie en Amérique. estabelece um paralelo dialético antitético entre os resultados da Revolução Francesa e os da norte-americana: "A revolução nos Estados Unidos foi fruto de um gosto maduro e pensado pela liberdade e não de um vago e indefinido instinto pela independência. Ela não se baseava na paixão pela desordem; ao contrário, foi gerada pelo amor pela ordem e pela legalidade".
Isso não significa que a própria cultura norte-americana também não tenha percebido os próprios limites, a partir dos seus próprios presidentes, como Thomas Jefferson, que, nas suas Notas sobre Virgínia, não hesitava em escrever: "Temo pelo meu país quando reflito que Deus é justo".
Intelectuais famosos como Truman Capote, Norman Mailer ou Noam Chomsky afundaram duramente a lâmina da crítica no tecido social estadunidense. Outros, como David Riesman e, especialmente, Christopher Lasch com seu conhecido ensaio The Culture of Narcissism identificaram os nós emaranhados, os pontos fracos, as crises que abalavam aqueles valores considerados como patrimônio da sociedade norte-americana.
Nesse contexto cada vez mais complexo, marcado agora por uma nova revolução como a da informática e digital, que está gerando um fenótipo inédito antropológico e sociológico, como se pode colocar a presença cultural católica?
É sabido que o conceito de "cultura" não é mais apenas o aristocrático iluminista, que se referia às artes, às ciências e à filosofia. Agora, ao contrário, a cultura designa o conjunto de valores e símbolos objetivo, coletivo, transversal a todas as pessoas e classes sociais.
A essa luz, assume um significado profundo a mensagem cristã, que pode fecundar e transformar os próprios valores tradicionais fundantes da cultura norte-americana. Esses valores, de fato, em muitos aspectos, pertencem a uma categoria antropológica de base, agora submetida a muitas críticas e variações, mas ainda assim significativa. Queremos nos referir ao conceito de "natureza humana".
Ela se expressa na sociedade norte-americana em algumas tipologias que permitem um diálogo frutuoso com a concepção cristã. Como premissa fundamental, poderia ser escolhido um extraordinário lóghion ou dito de Cristo, um verdadeiro tweet ante litteram, composto, no grego dos Evangelhos, de apenas 53 caracteres, incluindo os espaços: "Deem a César o que é de César e a Deus o que é de Deus" (Mateus 22, 21).
Desde sempre, na vida, na cultura, na história e na própria Constituição norte-americana, Estado e Igreja são rigorosamente distintos e separados. Sociedade e religião, ao contrário, não são; ou, melhor, entre as duas há sempre uma atração e uma tensão, um encontro, mas às vezes também um confronto, mas nunca separação ou indiferença. Sobre essa dialética, já se rege também a história de muitos outros países.
Desse debate entre fé e sociedade, a universidade católica deve participar, propondo uma própria Weltanschauung, rigorosamente definida e aprofundada. Ela pode apoiar e enriquecer alguns equilíbrios sobre os quais se rege a civilização contemporânea, particularmente norte-americana. Podemos exemplificar alguns desses equilíbrios ou balanços sem querer aprofundá-los.
Poderíamos continuar longamente essa lista de polos de coexistência e ilustrá-los à luz da mensagem cristã e da doutrina social da Igreja, sem fundamentalismos prevaricadores, mas também sem ausências ou silêncios que empobrecem a existência comum.
Mas, para fazer isso, a universidade católica deve se dotar de um equipamento intelectual e educativo qualificado. Por isso, são dois os principais componentes a serem desenvolvidos: a educação e a instrução.
A primeira diz respeito à formação da pessoa na sua totalidade. É o que afirmava de modo incisivo o grande pensador moral francês Michel de Montaigne, quando sugeria que o educador favorecesse "plutot la tête bien fait que bien pleine", isto é, modelar o pensar e não só encher o cérebro de dados, noções e informações. É por isso que é relevante não só a instrução, mas também a educação integral da pessoa na sua multiplicidade espiritual, moral, intelectual, artística, física, esportiva, social.
Um célebre pensador do século XIX inglês filósofo, teólogo e também cardeal, John Henry Newman, não hesitava em declarar, na sua obra The Idea of a University, que a educação universitária católica, antes ainda de formar cristãos ou católicos, deve criar "cavalheiros" [gentlemen]. A ideia de que a universidade deve formar para a vida e não para a escola não é apenas uma frase retórica – já formulada pelo filósofo latino Sêneca (Non vitae, sed scholae discimus) – mas é o programa que deve reger uma instituição católica educativa. É esse, como se dizia, o sentido mais completo da "cultura".
Há, porém, um segundo componente intrinsecamente conectado ao primeiro e é a estritamente intelectual, a instrução. Ela parte do extraordinário patrimônio cultural que em todas as disciplinas o cristianismo ofereceu ao longo dos séculos. É uma herança de arte, de ciência e de pensamento que se une intimamente à visão cristã espiritual e moral do homem, da mulher e da sociedade.
Nessa linha, a universidade católica deve estabelecer um debate constante com o horizonte cultural global e é isso que acontece há quase dois séculos de modo exemplar na Loyola University Chicago.
Penso, por exemplo, no diálogo com a ciência através das específicas faculdades de ciências e engenharia, recolhendo também os desafios que a tecnologia coloca à bioética ou que o pós-humanismo lança para a própria antropologia cristã. Penso também no mundo das disciplinas econômico-financeiras que exigem uma definição de marca humanista e não apenas meramente técnica.
Penso também no encontro com o mundo da arte nas suas novas gramáticas expressivas na arquitetura, na pintura ou escultura, na música, no cinema e na televisão. Penso na atenção que deve ser reservada à comunicação que adotou não só novos instrumentos, mas que também criou um ambiente planetário que envolve através da rede informática todo o globo terrestre.
Nessa obra intelectual, adquire um significado particular a presença do ensino da teologia católica. O seu específico estatuto epistemológico, de fato, pode debater com o das outras disciplinas culturais sem prevaricações, mas também sem timidez. O cristianismo, além disso, nos seus princípios ideais e morais fundadores é aberto ao diálogo com as diversas expressões espirituais, e, portanto, a universidade católica também se torna a sede do diálogo ecumênico e inter-religioso.
Essas e outras experiências de vocês constituem, para a Igreja universal, um grande modelo inspirador, principalmente para a inculturação da fé e, portanto, para "uma Igreja em saída", como afirma o Papa Francisco na Evangelii gaudium.
Na atual sociedade secularizada e nas grandes agregações metropolitanas anônimas, mais do que o ateísmo, domina hoje o apateísmo, ou seja, a apatia religiosa, a indiferença aos valores éticos e espirituais. A presença de uma comunidade universitária como a da Loyola pode implementar o programa que Cristo tinha proposto aos seus discípulos no Discurso da Montanha, através de uma trilogia eficaz de imagens: "Vocês são o sal da terra... Vocês são a luz do mundo. Não pode ficar escondida uma cidade construída sobre um monte" (Mateus 5, 13-14).
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Cultura e educação católica: contribuições para a Igreja global. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU