27 Fevereiro 2015
"A minha ideia de concluir a vida em paz e harmonia se inspira na Bíblia. É preciso um fundamento ético para uma medicina que tutele realmente a humanidade do paciente."
Essa é uma das afirmações do livro Morire felici? [Morrer felizes?] (Ed. Rizzoli), do teólogo suíço Hans Küng, do qual publicamos um trecho. Küng é professor emérito da Universidade de Tübingen, Alemanha.
O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 25-02-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
"Defendendo estrenuamente a responsabilidade pessoal na morte, o senhor põe em perigo toda a grande obra da sua vida." É mais ou menos assim que se expressaram muitos amigos e leitores depois da publicação do terceiro volume das minhas memórias, Erlebte Menschlichkeit ("Humanidade vivida"), em outubro de 2014.
Eu levo muito a sério as objeções desse tipo, mas preferiria que, na memória, da posteridade, a minha recordação não estivesse ligada sobretudo ao tema da eutanásia. Afinal, a minha posição em relação à morte só pode ser julgada corretamente se se tiver ao menos uma vaga ideia do meu interesse constante por assuntos fundamentais, como a questão de Deus, o ser cristão, a vida eterna, a Igreja, o ecumenismo, as religiões do mundo, a ética mundial etc.
Continuo professando a primeira das quatro "normas imutáveis" da ética mundial, aquela sobre o "dever de uma cultura do respeito por cada vida", proclamada pelo Parlamento das Religiões Mundiais em Chicago, em 1993 [disponível aqui, em português]: "Das grandes tradições éticas e religiosas antigas, porém, acolhemos o preceito: Não matarás! Ou, formulado de maneira positiva: Sente temor diante da vida! Ora, recordemos uma vez mais as consequências desse antigo preceito: toda pessoa tem direito à vida, à integridade física e ao livre desenvolvimento da personalidade, desde que não fira os direitos de outras pessoas. Pessoa alguma tem o direito de torturar outra, seja física ou psiquicamente, nem de ferir, nem muito menos de matar a outrem".
No entanto, justamente porque "a pessoa humana é infinitamente preciosa e deve ser protegida incondicionalmente", e isso até o fim, é preciso refletir com atenção sobre o significado dessas palavras na era da medicina tecnologicamente avançada, que é capaz de provocar a morte de modo principalmente indolor, mas, em muitos casos, também de estendê-la de maneira considerável.
Aqui, eu gostaria de abordar essa problemática com toda a franqueza, sem decepcionar nenhuma das tantas pessoas que, ao longo das décadas, de certa forma, foram inspirados pelas minhas teses. Por outro lado, recebo agora adesões e confirmações de pessoas religiosas ou não, que me agradecem por ter tido a coragem de tratar com a competência e a honestidade de um teólogo cristão ou, melhor, católico a questão da eutanásia.
Na vida de todos os dias, o indivíduo pode sentir a pequena felicidade de um instante de satisfação, por exemplo, de uma palavra gentil, de um gesto cordial ou do agradecimento por uma boa ação. Às vezes, também pode conhecer a grande felicidade de uma experiência momentânea exaltante, como o transporte da música, o contato avassalador com a natureza ou o êxtase do amor.
Há apenas uma coisa que a pessoa não é capaz de fazer: prolongar o bom humor. A súplica que Fausto dirige no momento da máxima alegria – "Detém-te, és tão belo" – não é pronunciada por acaso e permanece não ouvida.
À pessoa, no entanto, em vez de uma felicidade perpétua, parecia possível outra coisa: uma serenidade de fundo estável que a impeça de perder a esperança, até mesmo nas situações desesperadas, e que alimente a sua confiança.
Em outras palavras, aceitar, em princípio, a vida assim como ela é, mas sem se resignar a tudo. Uma serenidade de fundo, portanto, permite viver em harmonia, em paz consigo mesmo. Pergunto-me, então: tal atitude não pode ser conservada, mesmo diante da fragilidade e da caducidade humanas, até a morte?
A ars moriendi, a "arte de morrer", é um assunto que me fascina desde os anos 1950, quando meu irmão, Georg, sofreu por meses de um tumor cerebral incurável, para depois morrer por causa de um acúmulo de água nos pulmões. Ela se impôs ainda mais à minha atenção desde que, a partir de 2005, aproximadamente, o meu caro colega e amigo Walter Jens começou, apesar dos melhores tratamentos, a vegetar na névoa da demência, até se apagar em 2013. Essas experiências fortaleceram a minha convicção: não quero morrer assim!
Ao mesmo tempo, no entanto, tenho demonstrado o quanto é difícil captar o momento certo para uma morte confiada à própria responsabilidade. A intenção de não prolongar por tempo indeterminado a minha existência terrena é uma pedra angular da minha arte de viver e parte integrante da minha fé na vida eterna.
Quando chegar o momento, eu tenho o direito, sempre que eu ainda seja capaz, de escolher com a minha responsabilidade quando e como morrer. Se me fosse concedido, eu gostaria de me apagar de modo consciente e dizer adeus aos meus entes queridos com dignidade.
Para mim, morrer feliz não significa morrer sem melancolia nem dor, mas ir embora consensualmente, acompanhado por uma profunda satisfação e pela paz interior. Afinal, esse é o significado da palavra grega euthanasia, que entrou em muitas línguas modernas, mas vergonhosamente deformada pelos nazistas: "morte feliz", "boa", "justa", "leve", "bela".
Um autêntico Requiescat in pace ("Descanse em paz"), em suma. Depois de ter organizado tudo o que precisava ser organizado, com gratidão e com uma oração confiante. Para mim, essa atitude se fundamenta, em última instância, na esperança de uma vida eterna que é o cumprimento definitivo da existência em outra dimensão da paz e da harmonia, do amor duradouro e da felicidade permanente. Essa é a minha ideia do morrer feliz, que se inspira na Bíblia.
Isso deveria ser suficiente para esclarecer um conceito: essa eutanásia não tem nada a ver com um "autoassassinato" arbitrário e ímpio, planejado para provocar a autoridade eclesiástica, como alguns me acusam, tanto na mídia, quanto com cartas pessoais.
Evidentemente, porém, alguns representantes da "doutrina eclesiástica", dos quais a minha concepção se dissocia, ainda não entenderam que a nossa visão do início e do fim da vida humana também se encontra no centro de uma mudança de paradigma epocal, que não pode ser penetrado e dominado com o imaginário e a terminologia da teologia medieval, nem com os da teologia ortodoxo-protestante.
Hoje, é necessário levar em consideração o notável prolongamento da vida permitido pelos progressos, antes inimagináveis, da medicina moderna e da higiene, mas também é preciso levar em conta as ideias sucessivas, que sublinham os limites de uma medicina baseada em argumentos e critérios exclusivos das ciências naturais e da técnica. Aumentou a percepção da necessidade de dar um fundamento ético a uma medicina global que tutele a humanidade do paciente.
Existe também na Igreja Católica, desde a posse do Papa Francisco, a esperança de um maior frescor e de uma ajuda caridosa em questões que, sabe-se, são bastante complexas. Para o pontífice, o cristianismo não é uma ideologia doutrinária abstrata, mas um caminho que se aprende a conhecer percorrendo-o.
Foto: PeriodistaDigital.com
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''Permaneço cristão, mesmo se escolho como morrer.'' Artigo de Hans Küng - Instituto Humanitas Unisinos - IHU