28 Janeiro 2015
Não tive muito na vida, mas sou feliz. Tive a revelação da Misericórdia de Deus e da amizade dos homens.
O depoimento é do Frei Luc (1914-1996), um dos monges trapistas do mosteiro de Tibhirine, assassinados na Argélia. O artigo foi publicado no jornal Avvenire, 22-01-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Diante de Deus, permanecemos na posição de um mendicante. Os seus dons são perfeitamente gratuitos. Nenhum esforço e nenhum trabalho exigem uma retribuição por parte sua a título de justiça. Deus não nos deve nada. O mendicante de Deus se abandona a esse arbítrio divino, do qual depende inteiramente. O cristão assumirá a atitude do homem que, "tendo consciência da sua impotência para satisfazer as suas aspirações ao reino de Deus", permanece em busca de Deus em todos os encontros. A vida cristã não é a aposta de um desempenho bem executado. Depende da iniciativa divina. O mendicante de Deus nunca terá a sensação de ter chegado.
Incansavelmente, ele avança em busca de Deus. Portanto, aceitará sem rebelião os seus fracassos espirituais ou outros insucessos. Sem amargura nem classificações dos seus fracassos, o desencorajamento dificilmente o afligirá. Ele entende que a vida espiritual não é se apropriar das virtudes, mas se abrir ao enriquecimento divino. Nenhum método, nenhuma técnica e nenhuma arte nos levam a Deus, se não aceitarmos ir a Ele, mendigando-O, e merecermos a bem-aventurança "daqueles que têm uma alma de pobre".
A salvação nos vem dos outros que são para nós a presença de Deus que chama à vida. Se a fé salva é porque ela desvia o nosso olhar para um outro e, portanto, cria uma relação que nos arranca da nossa solidão mortal...
Todas as vezes que deixamos a preocupação por nós mesmos, substituindo-a pela preocupação por um outro, vivemos essa fé, que é, talvez sem o nosso conhecimento, fé em Deus: "Perder a própria vida por Cristo"...
Recebendo a vida dos outros, reencontramos a nossa verdade original: não nos demos a nossa vida, querê-la poupá-la nos coloca em contradição com a nossa criação. Se quisermos ser felizes, vamos direto rumo à desilusão, à infelicidade. "Se quiser ser feliz, faça alguém feliz!"
A troca da nossa parte é somente o dom. O retorno do dom não depende de nós, e é aqui que se joga a fé, o salto no vazio... Não se trata de crer que o outro vai nos devolver alguma coisa, que teremos uma recompensa, seria querer salvar a própria vida. Se o outro não responde, não tem nenhuma importância, é no próprio ato de dar que nós encontramos "a vida".
Perder a própria vida: Cristo não existe para si mesmo, e é por isso que nós encontramos a nossa salvação existindo para Ele; isto é, para os seus irmãos que também são os nossos.
Alegremo-nos por sermos pecadores, mas pecadores perpetuamente perdoados, perpetuamente içados para além do nosso pecado. O que descobrimos nas nossas confissões válidas é que erramos de pecado. A nossa verdadeira culpa não eram esses atos insípidos que nos serviram como passatempo. Era preciso também que enganássemos a nossa fome.
A nossa verdadeira culpa era não ter acreditado realmente na existência de alguém que fosse capaz de aplacar para sempre essa fome, não ter ousado acreditar em um amor que nos dispensasse de todas essas falsificações.
O monge não é alguém que se converte – é uma testemunha, testemunha diante de Deus, em nome do mundo do qual ele é como que a décima oferta em holocausto ao Deus soberano, testemunha diante dos homens do primado dos deveres para com Deus, da busca de Deus e da vida nele n'Ele dentro de si mesmo.
O seu testemunho é eficaz, mas ele não se preocupa com essa eficácia, não a busca. Não testemunha, é testemunha pelo próprio fato de que ele é o que é. O mundo é o que as grandes almas fazem dele, aquelas que, no fundo de si mesmas, alcançaram a Deus. É realizando a paz em si mesmo que se realiza a paz no mundo. É dentro de si mesmo que se vencem as potências das trevas que percorrem, no comprimento e na largura, o mundo e o dominam.
Deus nos acompanha onde quer que vamos, até mesmo no nosso vagar, para nos fazer encontrar a saída. Deus não está contra nós, mas conosco. Deus misturado a nós para nos conduzir à nossa verdade (Espírito e Verbo) e ao nosso cumprimento.
O Espírito é aquele que nos conduz à nossa forma definitiva... O essencial não é ter sucesso segundo os critérios da terra, mas se tornar um homem de verdade, um homem que sofre, mas cheio de alegria, criador de alegria...
Não tive muito na vida, mas sou feliz. Tive a revelação da Misericórdia de Deus e da amizade dos homens.
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O monge-médico Luc: ''Diante de Deus, somos sempre mendicantes' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU