20 Mai 2015
Prof. Dr. Marcelo F. de Aquino, SJ (à esquerda)
e Prof. Dr. Inácio Neutzling, SJ
Foto: Ricardo Machado
|
Em seguida o historiador norte-americano John O’Malley, SJ, um dos nomes mundialmente reconhecidos na historiografia da Igreja, professor na Universidade de Georgetown, em Washington, iniciou sua conferência Concílio Vaticano II: Crise, Resolução, Conclusão. Segundo ele, Francisco é o primeiro papa em 50 anos que não participou do Concílio Vaticano II. “Ele marca o início de uma nova era. Para quem estuda o Concílio isso é uma oportunidade que enseja um estudo minucioso”.
A reconciliação era o objetivo do concílio, observa O’Malley, referindo-se ao evento iniciado em 11 de outubro de 1962 pelo Papa João XXIII. Seu modo de condução era pautado pela compaixão, misericórdia e amor. “Um evento complexo assim não pode ser resumido a uma palavra e fórmula simplista. Os documentos do Concílio formam uma unidade coerente, e alguns temas e orientações o atravessam como fios condutores. Tais documentos transmitem uma mensagem maior do que seus documentos pensados isoladamente”, observou O’Malley.
Crise da modernidade
Muitas vezes se diz que o Concílio Vaticano II se reuniu sem uma crise que o interpelasse, mas isso é falso. Primeiro porque alguns concílios anteriores ocorreram sem a pressão de crise imediata. O Concílio Vaticano II se reuniu em tempo de crise para todas as igrejas cristãs, sobretudo porque esta não era percebida como crise. Era algo real, abrangente e de longo alcance em suas ramificações. Era a crise mais séria e radical do Cristianismo. Por falta de um nome melhor, chamamos essa crise de crise da modernidade, acrescenta O’Malley. Os prelados mais perspicazes do Concílio sabiam disso e reagiam em termos positivos. Classificavam a era como uma abertura para a Igreja e a humanidade como um todo.
No século XIX a Igreja tinha uma reação negativa aos aspectos do mundo moderno. Isso mudou somente com o Concílio Vaticano II. O’Malley se referiu a cinco aspectos especialmente relevantes:
1. Multiculturalismo
“O mundo sempre foi multicultural. Contudo, descobertas intensificaram tal característica. Em 1960 e 1970 o fim do colonialismo e o imperialismo social e cultural questionaram os missionários como agentes não oficiais dos seus governos. É que o catolicismo tinha um rosto ocidental”, afirmou John O’Malley. E completou: “Foram feitos notáveis esforços para resolver o problema, como tinham aqueles dos jesuítas na China, no século XVII, liderados por Matteo Ricci. Entretanto, no século XVIII, a Santa Sé condenou tais experiências, e durante o século XIX e início do século XX ambos os missionários, católicos e protestantes, sentiam o fardo de estarem levando ‘civilização’, isto é, o ‘modo de vida ocidental’ para seus rebanhos. Este tipo de atitude foi gentil, mas firmemente repudiado pelo Concílio”.
2. Pluralismo religioso
Os mais evidentes e diretos atos de ‘reconciliação’ do Concílio encontram-se nos decretos sobre o Ecumenismo, Unitatis Redintegratio, bem como no documento sobre as religiões não cristãs, Nostra Aetate. Pede aos católicos para respeitar a fé daqueles que não estão em comunhão com a Igreja e propõe um caminho de diálogo com eles. Tais medidas podem parecer cautelosas e mínimas, mas totalizaram uma dramática reversão, tanto na política de menosprezo e condenação das outras entidades cristãs, como na de orientar os católicos a se afastarem, tanto quanto possível, do contato com eles. Aliás, em 1928, o Papa Pio XI havia proibido, na Encíclica Mortalium Animos, a participação católica no movimento ecumênico, que ganhava importância desde o início do século e tentava atrair católicos. “O Decreto sobre o Ecumenismo sinalizou uma mudança de 180 graus, tanto assim que uma pequena minoria, durante e depois do Concílio, denunciou-o como herético”.
3. Radicais mudanças político-sociais
Para O’Malley, alterações sem paralelo no mundo provocaram uma mudança de comando, questionamento de autoridade e limites, com perguntas urgentes e exclusivas. O papado tinha um sortimento de respostas para essas perguntas, e via as mudanças como inversões da divinamente ordenada estrutura do universo.
A autoridade fluía de cima para baixo, da mais alta para a mais central, e desta para a mais baixa. Liberdade era considerada um “palavrão”. Mas, aos poucos, especialmente a partir de Leão XIII, a atitude dos Papas começou a mudar. Quando Leão XIII, em 1891, com a encíclica Rerum Novarum, admitiu o direito dos trabalhadores de se organizarem de forma a garantir os seus direitos, ele chocou e escandalizou a elite social da Igreja.
No final da II Guerra Mundial o termo ‘liberdade’ já tomava parte do vocabulário católico standard, como fica evidente na emergência dos Partidos Democrata-Cristãos liderados por católicos. Porém, esta liberdade se estende para a escolha da própria religião? O Santo Ofício negou-a veementemente. Agarrou-se fortemente ao ideal do Estado Confessional, onde o Estado sustenta a Igreja até o ponto de impor limites civis aos membros das outras Igrejas e religiões.
Os debates pareciam assumir, muitas vezes, que a democracia seria a forma de governo mais apropriada para promover e garantir a liberdade religiosa. Estava implícita nesta concepção, no entanto, que autoridade de governo não desce do alto, mas é resultado de consentimento dado livremente. Neste caso uma pergunta torna-se inevitável: o que isso significa para as estruturas de autoridade na Igreja? É claro, a Igreja foi divinamente fundada sobre a rocha de Pedro, cujos sucessores tinham a primazia entre todos os bispos. Isso era inquestionável e incontestável. Mas de que forma esta primazia foi exercida? Essa foi a pergunta que o Concílio comprometeu-se em responder.
4. A consciência histórica
John O'Malley / Foto: Ricardo Machado
A recuperação da doutrina da colegialidade, nas décadas anteriores ao Concílio, salientou um afiado senso de consciência histórica, e da discrepância entre o passado e o presente, como uma das características intelectuais mais salientes do longo século XIX. Esta evolução desafiou, com força aparentemente devastadora, a afirmação de que "a Igreja católica nunca muda." Os historiadores demonstraram, exemplo após exemplo, como a Igreja, de fato, tinha mudado. E agora, como ela iria lidar com isso?
5. Situação cultural dos homens e mulheres de hoje
Embora a ‘reconciliação’ permeie implicitamente os documentos do Concílio do começo ao fim, ela emerge mais claramente na Gaudium et Spes. A propósito deste documento devemos notar dois fatos importantes. Em primeiro lugar, o título do documento é "A Igreja ‘NO’ Mundo Moderno", não a Igreja ‘para’ o mundo moderno, nem a Igreja ‘contra’ o mundo moderno. Em outras palavras, o Concílio reconheceu como fato da vida que todos e cada um de nós, incluindo os membros da Igreja, fazemos parte do mundo moderno. Não podemos, de forma alguma, sair dessa realidade, mesmo que queiramos. Por conseguinte, nem a Igreja pode sair dele.
Em segundo lugar, pela primeira vez na história da Igreja um documento conciliar é dirigido não somente para os membros da Igreja, mas para "toda a humanidade".
O estilo adotado pelo Concílio
O estilo é a segunda característica do Concílio a ser analisada. Para compreender o curso tomado pelo Concílio com relação ao estilo dos documentos, lembramos que, no dia da sua abertura, João XXIII explicitamente colocou a questão do estilo na ordem do dia.
“Os comentaristas geralmente se satisfazem em designar o estilo do Concílio como ‘pastoral’, deixando-o por isso mesmo, o que não diz muita coisa. Não conseguem perceber as implicações profundas do novo estilo. Não veem como o estilo afeta e, muitas vezes, até determina o conteúdo. Forma e conteúdo são inseparáveis e reciprocamente influentes”, completou O’Malley.
Fator Francisco
Com a eleição para o papado de Jorge Mario Bergoglio, a reconciliação assumiu, de um dia para o outro, uma proeminência tão grande na agenda papal como nunca tinha tido desde o pontificado de João XXIII. Embora os Papas nas décadas intervenientes mantivessem o ideal vivo, nenhum o fez central em sua agenda como o fez o Papa Francisco.
Enquanto o Concílio Vaticano II estava acontecendo, Bergoglio era um jovem jesuíta na distante Argentina. Tudo o que ele conheceu ou aprendeu sobre o Concílio foi, na melhor das hipóteses, de “segunda mão”. No entanto, suas palavras e feitos como Papa indicam que ele interiorizou plenamente as orientações básicas do Concílio.
O’Malley especula que “pode ser que a sua não participação tenha se tornado, de fato, uma vantagem. Pode-se argumentar que seus antecessores nunca puderam livrar-se plenamente das batalhas travadas durante o Concílio. Francisco estava livre dessas batalhas e dessas memórias. Ele parece nos pedir para dar um passo atrás, deixar de lado as memórias das guerras litúrgicas, guerras culturais, guerras doutrinárias e outras guerras com as quais nos ocupamos nos últimos 50 anos e, agora, voltar nosso olhar para fora, para o mundo pós-moderno”.
Concílio Vaticano II como uma “guinada”
Na abertura ao debate com o público, Pe. Thierry, de Brasília, demógrafo do Ibrades, questionou sobre a receptividade das revistas Concilium e Comunio. “Isso certamente é um problema, mas sempre é um problema de uma interpretação de um acontecimento histórico importante. Temos o mesmo problema com o fim do concílio de Trento”, respondeu John O’Malley. E acrescentou: “Se nós conseguimos abordar o Concílio atualmente da maneira como tentei explicar na palestra, ou seja, dizer que se temos de um lado documentos, um por um, e olharmos o corpo do conjunto inteiro veremos orientações que permeiam o Concílio de uma concepção que é mais equilibrada. A questão de continuidade e descontinuidade na Igreja, para mim, como historiador, é um problema quase absurdo, porque como qualquer acontecimento histórico e independentemente de quanto radical seja, é mais forte a continuidade do que a descontinuidade”.
Para O’Malley, o Concílio Vaticano II foi uma guinada na Igreja. Houve mudanças de atitude e valores que esse evento promoveu que eram diferentes do que eram antes. “Não obstante, a Igreja permaneceu, e as continuidades são infinitamente maiores. Com essas duas revistas, isso não é um fenômeno novo na Igreja. Se analisarmos a história do Concílio veremos um pêndulo que vai de cá para lá no século XVII com a controvérsia dos jesuítas, por exemplo”.
Receptio histórica
Roque Junges, professor na Unisinos, perguntou acerca da recepção histórica dos Conselhos em geral, a célebre receptio: “Há uma certa tradição de que depois dos Concílios importantes o tempo que vem a seguir é de acentuar a continuidade, e não o novo. O novo vai sendo aos poucos assimilado... Assim, poderíamos dizer que há um padrão de receptio histórica nos Concílios anteriores? Podemos pensar num padrão a partir do Concílio Vaticano II?”
O’Malley refletiu que neste sentido o Concílio Vaticano II é muito singular. “Vamos falar sobre os concílios Latrão I e II e sua recepção, no século XII. Tais Concílios dirigiram sua mensagem a prelados e a líderes seculares, então a questão da recepção era se o rei da França aceitava, ou não, ou se os bispos o fariam. Alguma coisa, então, foi se infiltrando. No Concílio de Latrão I, quantos se interessaram ou sabiam o que estava acontecendo? Trata-se de um Concílio gigantesco, com 400 líderes e representantes eclesiásticos europeus. A recepção não era um problema”. O conferencista acrescentou que isso se tornou mais sério no Concílio Vaticano I, pois basicamente nos séculos XIX e XX a mídia fazia toda a diferença. As pessoas acompanhavam e estavam fascinadas pelo Concílio, pensavam e debatiam a respeito. Então, o problema da recepção é muito mais complicado com o Concílio Vaticano II. É um novo fenômeno, que não causa surpresa surgirem interpretações diferentes e até mesmo certa confusão.
Sugestões x ordens
Raquel Coletto, de Porto Alegre, perguntou sobre a interpretação de João Paulo II sobre o Concílio Vaticano II e a teologia na América Latina. O’Malley acentuou que João Paulo VI, Bento XVI e João Paulo II estavam psicologicamente vivendo as lutas do Concílio, e isso não é bom nem ruim. João Paulo II veio de uma situação de estado de sítio, algo como um “nós contra eles”. Tal era a forma como a Igreja operava. O que é notável a respeito de seu pontificado é que na igreja há uma igreja para dentro e outra para fora.
Paulo VI, por seu turno, era um papa muito “complicado”. Devemos pensar sobre seu comportamento durante o Concílio, o quanto complicado e também complexo ele era, bem como sua relação com o evento, disse O’Malley. Como ele concebia seu papel durante o Concílio? “Quando enviou suas primeiras emendas e sugestões sobre a Lumen Gentium, surpreendeu a comissão ao querer que suas intervenções fossem tratadas como sugestões. Depois, mudou de direção e as sugestões viraram ordens. Ele era um monitor para a ortodoxia do concílio”, resumiu O’Malley.
Pe. Oscar Beozzo questionou a respeito da Gaudium et Spes e sua abertura ao diálogo com a modernidade, visto que os bispos da África e Ásia saíram muito desapontados com os posicionamentos sobre a fome, o subdesenvolvimento e outros problemas. O’Malley frisou que não abordou diretamente a temática porque estava tentando dizer o que o Concílio fez. “O Celam foi o centro disso, sobretudo durante o primeiro momento. O Concílio Vaticano II não avançou nessa direção: houve uma decepção sobre a agenda não terminada. O Papa Francisco está tentando colocar esses assuntos na ordem do dia. Isso está no Concílio Vaticano II, mas não tem a proeminência e destaque que aqueles bispos queriam que tivesse”. O’Malley disse ainda que no pontificado de João Pauo II “uma cortina foi baixada. Havia uma irritabilidade de ouvir os sinais dos tempos. Ouvir os sinais dos tempos é algo novo na igreja”.
Geraldo de Mori, SJ, teólogo radicado em Belo Horizonte, formulou uma pergunta acerca da relação entre a Teologia e o Concílio. “Sabemos que uma série de teólogos que tiveram muitas dificuldades antes do Concílio tiveram papel destacado junto a bispos, participando como especialistas. Nesse período pós-conciliar, a impressão que tenho é que há muito menos abertura no seio de muitos magistérios a essa relação entre magistério e Teologia”, observou.
Ecos do evento
Para o Padre Ramiro Mincato, da paróquia do Fião, em São Leopoldo, é preciso destacar o estilo epidíctico dos documentos, a reconciliação com o mundo moderno e o alerta de que o Concílio Vaticano II, ao contrário do que se diz, surgiu em meio à maior crise da Igreja. Por isso era fundamental uma resposta a tal situação, disse à IHU On-Line no intervalo da conferência de John O’Malley. “Francisco é um papa que vem vencendo guerras internas e pode ajudar a salvar a Igreja da perda de autoridade. Ele representa uma mudança da Igreja voltada sobre si mesma, que agora se relaciona com a sociedade. É um papa que retoma os ideais do Concílio”, assinalou.
Para Brenda Carranza, professora da PUC-Campinas, quando Francisco fala no Sínodo da Família acerca das intersecções nodais com a doutrina e pastoral, há uma postura dialógica que permite uma ponte entre os consensos valorativos e cognitivos. Contudo, nessas questões nodais ele é assoberbado pela função papal, observa a pesquisadora. “Há uma diferença entre a função papal, um cargo político e público, e a função pastoral. Aí a distância é abismal. Um exemplo é acerca dessa questão do Sínodo da Família. Quando Francisco convida a falar honestamente, não se consegue chegar a um consenso valorativo da pluralidade de modelos familiares que vão na contramão do discurso doutrinal”, frisou à reportagem da IHU On-Line.
Por Márcia Junges
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Vaticano II: a crise, a resolução, o fator Francisco. Conferência com John O’Malley - Instituto Humanitas Unisinos - IHU