29 Abril 2015
Como símbolo da desigualdade, dos abusos de poder, das expectativas frustradas e de outros problemas que afligem o mundo ocidental, a Grande Torre de Santiago, o edifício mais alto da América Latina, funciona bem. Monumento ao amor próprio não apenas do segundo homem mais rico do Chile, mas de todo um país, começou a ser construído em 2006 sem as licenças adequadas, e a obra foi paralisada durante anos depois da crise econômica de 2008, deixando 5.000 trabalhadores desempregados. Foi completado no final de 2012 e, desde então, os 60 andares do grande totem de vidro, mais agressivamente visível do que a Cordilheira dos Andes a partir das planas avenidas da capital, permanecem vazios.
A reportagem é de John Carlin, publicada pelo jornal El País, 27-04-2015.
Para os chilenos, pelo menos os da classe média para cima, a torre ilustra a lacuna que substituiu seus sonhos de próspera modernidade. Deleitaram-se durante anos com a noção de que eram moralmente superiores ao resto dos latino-americanos. Gostavam de se autodenominar “os ingleses do continente” e fazer comparações destacando seu lado positivo em relação aos caóticos vizinhos argentinos. Gabavam-se do “milagre chileno”, de um crescimento econômico espetacular desde a queda de Augusto Pinochet, em 1990.
Hoje, a Grande Torre simboliza uma repreensão ao excesso de esperança e vaidade. Reina a decepção, a desconfiança no sistema político, a indignação com os ricos. A sensação que se tem nas conversas com acadêmicos, jornalistas e vários analistas em Santiago é a mesma quando se conversa com as pessoas na Europa, de ilusões perdidas. “Esperávamos mais”, repetem.
Esperavam muito mais quando Michelle Bachelet, representante da esquerda cujo pai foi assassinado pela ditadura de Pinochet, concorreu pela segunda vez à presidência no ano passado, depois de um exílio voluntário de quase quatro anos na ONU, em Nova York. A crise de 2008, quando o comando do Governo estava nas mãos da direita, havia revelado a dura realidade de que havia uma diferença enganosa entre as receitais globais da economia e a renda per capita: cerca de 1% da população detinha 30% da riqueza nacional. A insatisfação foi expressa em uma explosão de manifestações estudantis semelhantes às dos indignados da Espanha. Os protestos diminuíram com a reaparição no cenário da enormemente popular Bachelet, como também se acalmaram com o surgimento do Podemos na Espanha.
No país reina a desconfiança no poder político e nas grandes empresas
“Bachelet voltava limpa. Era a grande mãe, a salvadora da pátria”, lembra Alberto Mayol, jovem sociólogo e reconhecido analista político chileno. “Permaneceu assim durante toda a campanha, como símbolo da cruzada mortal, mas sem dizer nada de concreto sobre seu futuro programa de governo.”
Mas promessas foram feitas, principalmente combater os abusos do poder e a desigualdade. No primeiro caso, recebeu um golpe quase mortal contra sua credibilidade com a notícia — quando já estava instalada na presidência — de que seu filho, Sebastián Dávalos, estava sendo investigado pela justiça, por supostamente ter utilizado sua influência política para se enriquecer com a mudança do plano diretor relativo a terrenos, que ele e sua esposa haviam comprado. O escândalo coincidiu com uma onda de acusações relacionada com o financiamento de partidos de todas as cores por empresários de direita. O resultado, segundo pessoas que a conhecem, é que Bachelet está emocionalmente mais abalada do que as pessoas que votaram nela.
Em relação à luta contra a desigualdade, “a máquina” da economia, nas palavras de Mayol, continua nas mãos dos de sempre, e o Governo de Bachelet, como tantos outros do continente e da Europa, não tem dado uma resposta viável ao mal-estar social que isso gera.
A crise revelou que 1% da população detém 30% da riqueza
“As pessoas”, segundo Ramiro Mendoza, recém-aposentado depois de anos no comando da Controladoria Geral da República, “estão emputecidas contra o poder político e também contra a grande empresa”. Mendonza, que causou muita repercussão há algumas semanas quando declarou que a corrupção havia “chegado ao Chile”, acredita que o problema econômico é estrutural e de difícil solução. “Trata-se de uma armadilha dos países emergentes que saem rápido do subdesenvolvimento, como foi o caso do Chile, mas depois descobrem que lhes falta a arquitetura da governança.”
Como no Brasil, onde o problema é de dimensões muito maiores, muita gente, que antes era pobre, de repente conseguiu comprar pela primeira vez geladeiras e televisores e viu com grande satisfação que seus filhos iam à universidade. Mas, logo depois, descobriram que o transporte público, a saúde pública, a segurança pública não estavam à altura; que um título universitário não era garantia de que os filhos conseguiriam melhores empregos que os de seus pais. A insatisfação geral hoje tem origem em expectativas frustradas, um fenômeno que, segundo Mendonza, também é explicado pela corrupção.
“As exigências são mais altas do que no resto da América Latina”, diz um especialista
Como outras pessoas de renome em Santiago, Mendonza afirma que, apesar do estrago causado pelas recentes revelações ao ego nacional, o Chile continua sendo diferente do resto do continente. Ainda existe uma ordem institucional. Não tem nada a ver, como dizem alguns, com o espírito de “salva-se quem puder” dos países vizinhos. No Chile, ao contrário da Argentina, criou-se um Estado forte em meados do século XIX. A propina, o suborno a funcionários públicos, praticamente não existe no Chile. Ninguém pensa em subornar um policial; se alguém compra um chocolate em um quiosque recebe infalivelmente um recibo de compra do vendedor, cuja cópia é guardada para depois regularizar suas contas com a Fazenda. Com relação à Grande Torre, talvez tenha havido abusos no início da construção, mas hoje o acesso ao edifício está bloqueado devido à falta de licenças oficiais, problema que em outros países latino-americanos poderia ter sido resolvido com uma propina ao oficial de plantão.
“As instituições funcionam, a promotoria está fazendo investigações independentes, há pessoas ricas que já estão sendo presas”, observa Patricio Navia, professor chileno de estudos latino-americanos na Universidade de Nova York. “As exigências chilenas são maiores do que no resto da América Latina.”
“A presidenta se tornou um Hamlet”, opina um sociólogo
Em relação à evolução da economia, os chilenos também esperavam mais. O que percebem é que a presidenta, na qual haviam depositado esperanças tão grandes, não tem respostas à crise de legitimidade de seu Governo. “Tornou-se uma Hamlet permanente”, opina Mayol. A direita tampouco sabe para qual lado deve ir para recuperar seu prestígio perdido. No Chile, como em tantos outros países, reina a indecisão; ninguém tem a poção mágica. Vivemos em uma época na qual somos mais conscientes do que as gerações anteriores, e os vendedores de esperança, quando chegam para governar, acabam enfrentando o drama de Hamlet e descobrem que vivem em uma torre de vidro.
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A vaidade ferida do Chile - Instituto Humanitas Unisinos - IHU