Por: André | 26 Janeiro 2015
“Este anúncio de normalização das relações [entre Cuba e Estados Unidos] gerou alegria e esperança em muitos cubanos que moram dentro e fora da Ilha, também em outros países. E é provável que tão somente o anúncio de restabelecer relações diplomáticas entre ambos os países produza reajustes e revisões na política exterior de quase todo o mundo sobre ambos os países, inclusive das instituições financeiras internacionais.” A reflexão é de Orlando Márquez Hidalgo, em artigo publicado na revista cubana Palabra Nueva, edição de janeiro de 2015. A tradução é de André Langer.
Eis o artigo.
Agora é menos relevante precisar se a hostilidade entre Cuba e os Estados Unidos foi gerada pela atitude imperial de Dwight Eisenhower ou sua equipe ao se negar a aceitar, em 1959, uma desafiante revolução popular, primeiro de marxismo solapado e depois aberto, que colocou em xeque a hegemonia norte-americana na região, ou aquela carta de Fidel Castro a Celia Sánchez, de junho de 1958, na qual assegurava que “os americanos vão pagar bem caro” o bombardeio à casa de um camponês na Sierra Maestra, pois, depois da vitória, escreveu: “começará para mim uma guerra muito mais longa e maior: a guerra que vou fazer contra eles. Dou-me conta de que esse será meu verdadeiro destino”.
A realidade é que quase quatro gerações de cubanos viveram sob a sufocante pressão do enfrentamento entre nossos países desde que as relações formais foram rompidas, em janeiro de 1961, sem esquecer as tramas da guerra fria e da longa lista de terceiros envolvidos no conflito. O porquê do enfrentamento encontra-se em um ponto, ou em todos os pontos, de uma rede de intolerâncias e intransigências, hostilidades e confrontos que derramaram muito sangue, suor e lágrimas.
A decisão tomada em 17 de dezembro de 2014 pelos presidentes Raúl Castro e Barack Obama é um ato de coragem que olha para o futuro. Pode ter contribuído para isso o fato de que, pela primeira vez, os presidentes de ambos os países concordaram em dizer que era necessário buscar novos caminhos, ou a ausência de ataques pessoais, embora não as críticas políticas. Sem dúvida, influiu também a situação dos presos demandados por ambos os lados, o processo ainda frágil, mas crucial de reformas em Cuba, o reajuste político regional e o isolamento dos Estados Unidos quando a maior parte da América Latina defendia a presença cubana na próxima Cúpula das Américas. Podem ter influído, inclusive, as mudanças de percepção e interesses da maioria de cubanos que vivem nos Estados Unidos, assim como a capacidade diplomática de alguns para reconstruir pontes silenciosas em meio às algazarras midiáticas, o que hoje sabemos ocorria no Canadá. Mas o certo é que os anúncios simultâneos de ambos os presidentes naquele meio-dia, ao mostrar sua vontade de colocar as relações entre ambos os países no século XXI, constituem um importante momento histórico que ninguém lhes poderá arrebatar.
E, claro, não se pode esquecer a intervenção “determinante” do Papa Francisco, como o qualificara o secretário de Estado da Santa Sé, cardeal Pietro Parolin. Meses atrás, o Papa latino-americano, conhecedor e sensível ao velho conflito, escreveu pessoalmente a ambos os presidentes convidando-os ao diálogo, um gesto totalmente em sintonia com seu compromisso pela “cultura do encontro”, aceito e reconhecido por ambas as partes. Para alguns, tudo será pura coincidência. Eu creio que a Divina Providência dispôs a ação adequada das pessoas adequadas, no momento e lugar adequados.
Não é nenhum segredo que durante anos, a Igreja, de forma pública e privada, de Havana ou de Washington, chamou com insistência para um diálogo sério e responsável entre os dois dirigentes para colocar um fim ao absurdo desencontro. E se agora sabemos da intervenção do Papa Francisco, por estes dias recordo com particular agrado o chamado que fizera São João Paulo II na noite de 25 de janeiro de 1998, ao terminar sua visita a Cuba: “Nos nossos dias nenhuma nação pode viver sozinha. Por isso, o povo cubano não deve ver-se privado dos vínculos com os outros povos, que são necessários para o progresso econômico, social e cultural, sobretudo quando o isolamento forçado se repercute de maneira indiscriminada sobre a população, fazendo aumentar as dificuldades dos mais débeis, em aspectos fundamentais como a alimentação, a saúde e a educação. Todos podem e devem dar passos concretos para uma mudança neste sentido. Oxalá as nações, e principalmente as que partilham o mesmo patrimônio cristão e a mesma língua, trabalhem de modo eficaz para difundir os benefícios da unidade e da concórdia, para unir os esforços e superar os obstáculos, a fim de que o povo cubano, protagonista da sua história, mantenha relações internacionais que favoreçam sempre o bem comum. Desta maneira, se contribuirá para superar a angústia causada pela pobreza, material e moral, cujas causas podem ser, entre outras, as injustas desigualdades, as limitações das liberdades fundamentais, a despersonalização e o desencorajamento nos indivíduos, e as medidas econômicas restritivas impostas do exterior do país, injustas e eticamente inaceitáveis”.
Para João Paulo II era evidente que o isolamento que os cubanos viviam era consequência tanto de políticas internas como externas. As primeiras por causas objetivas, pois trata-se de práticas que dependiam – e dependem – exclusivamente das autoridades cubanas, e assim, certas limitações das liberdades fundamentais dos cubanos começaram a desaparecer nos últimos anos independentemente dos atos externos. Ficam outras que, igualmente, devem ser eliminadas para que desapareça também dentre nós a despersonalização e o desencorajamento. Mas as medidas “impostas de fora do país”, alusão clara ao embargo-bloqueio aplicado pelos Estados Unidos, ficavam fora da capacidade do Governo cubano, e precisamente foi isso que foi questionado e modificado abertamente pelo próprio presidente dos Estados Unidos.
Para a Igreja, não se trata de interesses políticos, embora se saiba que isso é consubstancial ao exercício da matéria, mas, sobretudo, da política a serviço do ser humano, da ética e da importância da moral nos assuntos políticos, pois qualquer exercício político que prejudicar o ser humano, privá-lo de se relacionar e realizar-se social, cultural, econômica ou politicamente, é imoral e eticamente inaceitável.
Este anúncio de normalização das relações gerou alegria e esperança em muitos cubanos que moram dentro e fora da Ilha, também em outros países. E é provável que tão somente o anúncio de restabelecer relações diplomáticas entre ambos os países produza reajustes e revisões na política exterior de quase todo o mundo sobre ambos os países, inclusive das instituições financeiras internacionais.
Ao mesmo tempo, não se deve ignorar que a alegria de muitos cubanos é descontentamento para outros. É normal que isso ocorra, pois as vivências não se esfumam. Somos um povo ferido por um longo confronto, mas a dor não é maior num lado do que no outro. Dores, esperanças e sonhos desfeitos, desenganos e traições, rupturas e reencontros desgarradores permanecerão em muitas memórias mesmo quando aqueles que escreverem a história não relatarem tudo. Aqueles que se condoem porque pensam que deste modo não se faz justiça às suas perdas materiais ou humanas, com todo o respeito deverão ser ouvidos no momento indicado e honrar sua dor, e propor que vivam hoje o grande desafio que significa endireitar o caminho sinuoso que precisamente tantas dores causou, para não ficar presos ao passado. Certamente, é difícil e nem todos aceitarão, mas a vida seguirá seu curso e é hora de fazer a história presente e preparar o futuro.
Se eles se incomodam porque entendem que o gesto de Barack Obama e de Raúl Castro é uma traição à sua dor pessoal, outros se indignam porque pode significar o desaparecimento do inimigo que justifica sua razão de ser ou sobrevivência, e isso é possível encontrar também de um lado e de outro, por mais paradoxal que seja. Haverá obstáculos e dificuldades, inclusive nos Estados Unidos alguns ameaçaram obstruir e até reverter o anunciado restabelecimento das relações bilaterais. Mas se eles mesmos defendem e promovem a democracia que dá oportunidades e possibilidades ao desejo e expressão das maiorias, fariam muito bem em prestar atenção ao que expressou a maioria dos cubanos, cubano-americanos e norte-americanos. Do lado de cá não ouvimos ameaças de torpedear o processo, compreende-se. Mas intuo que não faltarão os ideólogos que continuarão a brandir o fantasma do inimigo que nos quer destruir, agora com seu “poder brando”, e procuração manter o pé atrás da porta para, ao menos, frear o processo.
A desproporção de ofertas e demandas entre um país e outro é evidente, assunto muito sensível por causa da crise cubana atual, mas isso não é razão para colocar travas. Primeiro, porque toda a política praticada pelos Estados Unidos para com Cuba até o presente não só foi questionada, como também começa a ser modificada a partir do momento em que se decide reconhecer o atual Governo cubano e isso entranha certos compromissos; não é casual a renúncia quase simultânea do diretor da Agência Internacional para o Desenvolvimento dos Estados Unidos (USAID), responsável pelos milhões de dólares para promover a “democratização” de Cuba.
E, por outro lado, se não se deseja – e o compartilho – que sejam os Estados Unidos quem “empodera” os cubanos, o melhor modo de responder é empoderando-nos a partir de dentro, e isto não se consegue com arengas anacrônicas, mas com as reformas internas necessárias, oferecendo desde já maiores oportunidades, de modo que estejamos melhor preparados econômica, social e psicologicamente para não precisar colocar todas as esperanças nessas relações. Independentemente da melhoria destas relações, enquanto entre nós o controle for mais importante que o progresso, não haverá desenvolvimento.
É verdade que resta o embargo, como lá o chamam, um embargo que bloqueia inclusive os próprios cidadãos daquele país, como se reconhece em um livrinho intitulado The Language of Trade, editado pelo próprio Departamento de Estado e que alguém me entregou no meu escritório há alguns anos: “Embargo – no comércio internacional, são as ações de governo que limitam ou proíbem a importação e/ou exportação de bens e/ou serviços de ou para um país. Estas limitações podem ser aplicadas pelo país embargador contra seus próprios cidadãos, como é o caso do embargo dos Estados Unidos contra o comércio com Cuba...”. Mas o “embargo” já foi muito enfraquecido com as medidas recém anunciadas pelo executivo dos Estados Unidos, medidas muito positivas que merecem uma resposta igualmente positiva por parte do Governo cubano.
O processo de normalização das relações levará tempo, será tortuoso em algumas ocasiões e suave em outras, mas o primeiro passo foi dado e esse é o mais importante, porque quebrou a paralisia. Os detalhes da conversa que Raúl Castro e Barack Obama tiveram na noite de 16 de dezembro, talvez, será conhecida dentro de muitos anos, mas as consequências devemos começar a ver em breve.
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Relações Cuba-Estados Unidos: a oportuna atualização - Instituto Humanitas Unisinos - IHU