14 Fevereiro 2017
“Eu tinha apenas oito anos. Era uma criança tímida, frágil. Ele era o padre: simpático, atencioso comigo, um menininho sem família, mãe deprimida, pai que a tinha esfaqueado quando ela estava grávida de mim. Ele deveria ter me protegido, mas, ao invés, percebeu a minha fraqueza, o vazio, e se aproveitou disso. Ele me estuprou por quatro anos, abusou de mim sem sentimentos de culpa nem remorsos. Ele fez o mesmo impunemente com outros 100 meninos.”
A reportagem é de Caterina Pasolini, publicada no sítio do jornal La Repubblica, 13-02-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Daniel Pittet, 57 anos, de Friburgo, é um homem que atravessou o inferno e saiu depois de anos de terapia, encontrando a força para denunciar as violências sofridas. Ele fala para que outras crianças não sofram com aqueles que deveriam protegê-las, para que a Igreja denuncie quem abusa.
Ele tem esposa e seis filhos, aos quais contou tudo sobre a sua infância ferida, sobre aquele padre que, para ele, representava poder e sabedoria, e revelou-se um algoz. Sobre uma Igreja que o trai, sem fazê-lo perder a fé.
Era 1968, ele tinha oito anos... “Com uma desculpa, ele me levou para um quarto. Fechou a porta. Eu não podia fugir, estava petrificado. Quando acabou de me usar, ele me disse: isto fica entre nós. A quem eu poderia dizer, quem acreditaria em mim? Em casa, todos eram religiosos, acreditavam nas autoridades da Igreja, nunca me dariam bola. Eu passei anos pensando que era o único que tinha sofrido aquelas tardes de pesadelo, tentando esquecer o seu corpo sobre o meu.”
No livro, você usa palavras e imagens cruas, não poupa nada da agonia sofrida entre fotos que escondem o segredo de um menininho vestido de coroinha: cabelos longos, os olhos ingênuos, o sorriso triste. Ninguém nunca suspeitou?
Durante anos, eu me perguntei se os adultos sabiam e faziam de conta que não entendiam. Parecia-me impossível que a minha mãe não intuísse. Só a minha professora, notando que eu ia mal na escola, que eu estava cada vez mais sozinho, fechado e tímido, me mandou a um médico, mas eu não sei se ele era um mau médico ou se assustou. Só sei que ele não faz as perguntas certas para me ajudar a encontrar a coragem de falar. Assim, o segredo permaneceu até quando a minha tia-avó entendeu, e eu saí do inferno. Eu tinha 12 anos.
Quando você denunciou?
Depois de anos de terapia, eu encontrei as palavras para dizer isso em 1990. Desde então, eu continuar me encontrando com jovens que sofreram os mesmos abusos. Eu os reconheço, vejo neles a mesma fragilidade, a dificuldade de viver que eu trago comigo cotidianamente e me leva a dar um sentido à minha existência. Porque quem é abusado fica marcado para sempre, corre o risco do suicídio, a loucura, muitas vezes é rejeitado pela família, já que 90% dos abusos ocorrem ali, e pelo grupo social. Excluído, tratado como um pária, porque disse a verdade. Sem contar que, se não for ajudado, corre o risco de repetir em outros as violências sofridas: 80% dos pedófilos foi uma criança estuprada.
O que a Igreja fez?
Mentiu. Disseram-me que o afastariam, que ele não poderia mais fazer mal. Dez anos depois, eu descobri que ele tinha sido mandado para a França, onde continuou abusando de meninos.
Quem acoberta os culpados?
Na Suíça, as coisas mudaram, mas na França e na Itália, pelo que eu saiba, muito pouco. Por isso, são importantes as palavras do papa. Porque existem pedófilos nas paróquias, mas também nas altas hierarquias, que fingem que não é nada, transferem os sacerdotes pedófilos para outra igreja, como se isso resolvesse o problema. Eles mantêm o segredo, e novas crianças são vítimas.
Você se encontrou com o seu algoz?
No ano passado. Ele estava velho, eu custei a reconhecer o monstro da minha infância. Ele me olhou, eu vi o seu medo. Mas não me pediu desculpas, não me pareceu arrependido de todo o mal que fez.
No entanto, você o perdoou.
Eu vi nele um doente, e ele não tem nada a ver com a minha fé que permanece intacta, mas eu continuo lutando para que a Igreja quebre o silêncio e denuncie os pedófilos.
O que o papa lhe disse?
Nós nos encontramos há dois anos. Ele me perguntou: onde você encontra a força, o seu espírito missionário? Ele nunca estava satisfeito com a resposta. No fim, eu lhe disse: “Padre, eu fui violentado por um sacerdote”. Ele me olhou em silêncio, com lágrimas nos olhos e me abraçou. Agora, estas suas palavras tão fortes e corajosas de condenação à pedofilia, ao sigilo que mata.
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"Eu revelei a Francisco os meus quatro anos de inferno, e ele chorou comigo", afirma vítima de pedofilia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU