Por: CEPAT | 10 Novembro 2017
Uma sociedade que não guarda sua memória, que não aprende com o seu passado e que não atualiza no presente as resistências do passado, facilmente caminha para o fascismo social. É por isso que todos aqueles e aquelas que estão envolvidos nas dinâmicas sociais, a partir de um ponto de vista alternativo àquele dos ditames do capital, devem fazer reluzir as experiências de lutas populares de nosso passado.
É nesse sentido que, na noite do último dia 08 de novembro, no auditório do Sindicato dos Engenheiros do Paraná (SENGE-PR), em Curitiba, o Centro de Formação Milton Santos-Lorenzo Milani, coletivo de organizações do qual o Centro de Promoção de Agentes de Transformação (CEPAT) compõe a organização, lançou o livro Lutas Populares no Paraná, com a presença de diversos ativistas dos movimentos sociais de Curitiba e região. A obra conta com o apoio do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS).
Imagem da capa do livro Lutas Populares no Paraná
Os organizadores do livro, Ana Inês Souza (CEFURIA), Ricardo Prestes Pazello (CEFURIA) e Jonas Jorge da Silva (CEPAT), almejam que a obra contribua para “o resgate do imaginário das lutas populares paranaenses” e que sirva como “estímulo para o aprofundamento dos estudos sobre esta importante história convenientemente esquecida pelos donos do poder e do saber”.
O livro, resultado da experiência de um curso de formação política realizado em 2015, na Casa do Trabalhador, no bairro Sítio Cercado, em Curitiba, reúne oito grandes momentos de mobilização e resistência popular na história do Paraná, contando a partir da visão de diversos autores. Os temas tratados são os seguintes:
- Lutas e resistências dos povos indígenas no Paraná (Éder da Silva Novak);
- Lutas, resistências e estratégias da territorialização negra no Paraná (Cassius Marcelus Cruz e Jefferson de Oliveira Salles);
- Da Colônia Cecília à Greve Geral de 1917 (Ricardo Prestes Pazello);
- Contestado, a guerra que manchou de sangue os sertões do Paraná e de Santa Catarina: 100 anos depois, o silêncio e a invisibilidade sobre a luta camponesa ainda imperam no Brasil (Nilson Cesar Fraga);
- Guerrilha de Porecatu: o evento fundador do Partido Comunista (Osvaldo Heller da Silva);
- 1957: A Revolta dos Posseiros (Iria Zanoni Gomes);
- Movimentos Sociais na transição democrática e a luta do transporte coletivo (Ana Inês Souza e Lafaiete Santos Neves);
- Identidades coletivas, territórios e “novos” movimentos sociais no Paraná (Roberto Martins de Souza).
Todos os temas abordados procuram estabelecer um contraponto ao discurso único de que o povo paranaense é essencialmente conservador, demonstrando claramente que nunca faltou resistência aos desmandos das elites, ainda que em condições assimétricas.
Participantes, durante o lançamento do livro "Lutas Populares no Paraná", confraternizando lutas e sonhos
Fundado em 2003, o Centro de Formação Milton Santos-Lorenzo Milani é um núcleo de estudos da realidade atual, fruto da articulação de entidades da sociedade civil no Brasil (Curitiba-PR) e na Itália (Busca-CN-Piemonte) que compartilham desafios e, juntas, buscam saídas para potencializar a resistência e a luta dos trabalhadores e das trabalhadoras, por condições dignas de vida e uma sociedade justa; através da construção, diálogo e sistematização de conhecimentos.
Abaixo, reproduzimos o prefácio do livro Lutas Populares no Paraná, escrito por Flavio Luciano, padre da Diocese de Cuneo, Itália, que nos anos 2000 desempenhou um rico trabalho de formação humana e política na periferia de Curitiba e que, atualmente, integra os trabalhos desenvolvidos pelo Centro de Formação Milton Santos-Lorenzo Milani na Itália.
Aprendi que o problema dos outros é igual ao meu. Resolvê-lo todos juntos é política. Resolvê-lo sozinhos é avareza. (Lorenzo Milani)
Luis Sepúlveda (1) conta que nos primeiros anos da década de 1970, muitas vezes se encontrou com o presidente chileno Salvador Allende. Uma vez, numa reunião, o presidente relatou que no ano 1932 o Chile viveu uma pequena revolução, que nenhum livro de história lembra, como se tivesse sido apagada: uma pequena revolução de doze dias que recebeu o nome de República Socialista do Chile, organizada por um oficial da Aeronáutica de nome Marmaduke Grove. Este homem, nestes doze dias, promulgou um conjunto de leis e formulou uma teoria segundo a qual o único verdadeiro objetivo do Chile era construir um país feliz. Naquela brevíssima revolução foi feito um grande esforço pedagógico para decidir quais são os elementos que se interpõem entre nós e a felicidade. Claro que logo chegaram as forças da reação e abateram o governo revolucionário.
Também na Espanha, precisamente nas Astúrias, houve uma revolução no ano de 1934. O artigo 1º do documento principal da nascente “República Socialista Asturiana” dizia: “O fim natural do homem é a felicidade”. Foi Francisco Franco que, naquela época oficial do exército, reprimiu com sangue a experiência, mas naquele momento ficou marcado na consciência do povo o princípio de que a felicidade é um direito. É um direito promovê-la e combater tudo o que a impede ou a elimina.
No Brasil houve muitas destas tentativas de insurreição, na procura por liberdade, justiça, dignidade, e por isso felicidade, em diferentes regiões do país. Resgatar estas histórias é hoje, talvez, o trabalho político mais importante que se possa fazer, como faz este livro.
Como está muito bem relatado na introdução, o Centro de Formação Milton Santos-Lorenzo Milani, com sede em Curitiba (Brasil) e em Cuneo (Itália), é resultado de relações globais e solidárias entre o Norte e o Sul, em particular entre organizações sociais, movimentos, instituições de caráter público não governamental e intelectuais de ambos os países, que têm em comum a análise das transformações socioeconômicas que acontecem em todo o mundo e o empenho na busca de uma sociedade economicamente mais justa e solidária.
Esses organismos fazem parte também daquele vasto movimento “antiglobalização” que provocou o nascimento do Fórum Social Mundial, fonte de inspiração e motivação para se lidar em favor da justiça, da eliminação da pobreza, da defesa do ambiente, da solução dos conflitos e da procura da paz.
As duas sedes (Brasil e Itália), apesar de criarem caminhos diferentes, fiéis à própria história e ao contexto cultural e social, se mantiveram sempre unidos nos mesmos objetivos, entre os quais atuar para a formação sociopolítica de uma nova geração de militantes, reforçar as associações populares presentes nos dois territórios, favorecer iniciativas concretas para promover a superação da exclusão social.
Este livro apresenta um caminho interessante de formação do Centro Milton Santos-Lorenzo Milani em Curitiba, e comprova a qualidade do trabalho realizado nestes últimos anos. Professores competentes, também militantes, oferecem uma contribuição fundamental para recuperar uma história importante e pouco conhecida pelo povo paranaense.
É preciso destacar que as mesmas lideranças das organizações populares, desde o início, expressaram o desejo de conhecer tanto as conquistas como as derrotas daqueles que, no passado, sofreram injustiças e lutaram pelas mudanças que se faziam necessárias.
O primeiro curso organizado pelo Centro no Brasil, precisamente no mês de julho de 2003, aconteceu na Casa do Trabalhador, em Curitiba, com a presença de membros das CEBs (comunidades eclesiais de base), de várias associações e, sobretudo, de militantes do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra). Depois de uma tarde de reflexão sobre a conjuntura, dois militantes do MST assistiram, com outros companheiros de curso, ao jornal da tarde de uma TV do Paraná. Comentando uma reportagem sobre um conflito de terra que estava acontecendo perto de Foz do Iguaçu, os dois contam que se conheceram numa situação bem particular, quando estavam, um com a divisa militar e o fuzil na mão, diante do outro que segurava os braços dos filhos em frente ao barraco, construído às pressas depois de ter ocupado o terreno. Comentou o primeiro: “eu tinha a cabeça feita pelos militares e não sabia de nada, mas quando deixei o exército me encontrei do outro lado sem querer, e graças aos companheiros de caminhada agora tenho a cabeça esclarecida e estou aqui para aprender mais e ajudar o meu povo. Precisamos todos de informação e formação, mesmo como precisamos de arroz e feijão para viver. Sem consciência não se vai pra nenhum lugar”.
As Comunidades Eclesiais de Base, refletindo a realidade à luz da Bíblia, tiveram presença destacada dos seus membros nos cursos do Centro, sobretudo no começo das atividades, e neles cresceu a consciência de que o Deus da Vida formou o seu povo colocando nele uma profunda sede de justiça e de liberdade e a consciência de que o mundo novo vai brotar somente a partir de corações sedentos de justiça e liberdade. Quem lê estas histórias de lutas se depara com homens e mulheres, de épocas e povos diferentes, todas e todos com sede de justiça e liberdade, e por isso testemunhas qualificadas de como temos que enfrentar os problemas de hoje se também nós queremos fazer valer as utopias de um mundo melhor para se viver.
É preciso mais do que nunca, com muita força, conscientes de que a historiografia oficial esquece, na sua narração, a luta das organizações populares e dos seus protagonistas, resgatar e colocar diante dos olhos do mundo a beleza da caminhada dos pobres organizados.
Sem dúvida, hoje temos uma ajuda inesperada daquele Bispo de Roma que veio de longe e quis para si um nome muito significativo: Francisco. Graças aos seus encontros com os líderes dos movimentos populares do mundo inteiro, Papa Francisco colocou em evidência a todos que têm olhos para ver uma realidade que os poderosos sempre esconderam: os pobres não só sofrem a injustiça, mas também lutam contra ela!
Aquelas mulheres e aqueles homens com sede de justiça e de liberdade Papa Francisco os chama de “semeadores de mudança”, ou “poetas sociais”. Pessoas que querem ser protagonistas e por isso “organizam-se, estudam, trabalham, exigem e sobretudo praticam aquela solidariedade tão especial que existe entre quantos sofrem, entre os pobres, e que a nossa civilização parece ter esquecido” (2) . Lutadoras e lutadores que “sobram” para o sistema que criou esta mesma crise socioecológica, que não somente têm nas mãos a solução para resolver os próprios problemas, mas o futuro mesmo da humanidade!
A luta pelos famosos 3T (terra, teto e trabalho) está presente em cada história do resgate do povo sofrido no Paraná, desde a resistência dos indígenas e dos posseiros até a luta por trabalho digno e pelo transporte público nos dias de hoje. Gritando pela vida que exige estes três direitos como direitos sagrados!
A todos nós que pretendemos ser chamados “cristãos” e nos tornamos fortes na doutrina social da Igreja, Papa Francisco lembrou que a opção pelos pobres não significa somente compartilhar com eles, mas reconhecê-los como sujeitos sociais e políticos. Temos o dever de promover a participação ativa deles em todos os âmbitos, acompanhando-os e deixando-os com liberdade de se mover e de se expressar.
Estas histórias convidam todos aqueles que estão na luta por uma sociedade fraterna e justa, não somente a lutar para os pobres, mas a lutar com os pobres contra as causas estruturais das desigualdades e injustiças, para – lembrando as palavras de Francisco – colocar a economia ao serviço dos povos, construir de verdade a paz e a justiça e defender com consciência e responsabilidade a Mãe Terra.
Talvez tenha sido no terceiro encontro com os movimentos populares – em outubro de 2016 – que o Papa Francisco fez um dos discursos mais importantes do seu magistério. Alertou sobre as dificuldades do momento histórico para “os semeadores da mudança”.
Atrás de todas as lutas que os movimentos sociais de hoje tocam para frente existe “um terrorismo de base que provém do controle global do dinheiro na terra, ameaçando a humanidade inteira. É deste terrorismo de base que se alimentam os terrorismos derivados, como o narcoterrorismo, o terrorismo de Estado e aquele que alguns erroneamente chamam terrorismo étnico ou religioso” (3). Com lucidez, o Papa denunciou que esta tirania se sustenta explorando e alimentando os nossos medos. Aquele medo que é um bom negócio para os comerciantes de armas e da morte, mas que também debilita-nos, desestabiliza-nos, destrói as nossas defesas psicológicas e espirituais, anestesia-nos diante do sofrimento do próximo e, no final, torna-nos cruéis.
Lendo as histórias que este livro nos conta, reparamos o quanto isso foi verdade e continua hoje naquele populismo de tantos políticos na Europa, nas Américas e em outros continentes. A explosão da venda e da compra das armas no mundo inteiro, e os muros materiais, mentais e jurídicos que estão se construindo no interior e nas fronteiras dos países chamados “civilizados” atestam a verdade de tudo isso.
Quais são os desafios de hoje na caminhada dos movimentos sociais e dos que os acompanham? Nos capítulos finais deste livro recebemos muitos indícios, mas tendo em conta a realidade de violências e de desigualdades em todos os níveis das nossas sociedades, vamos destacar sobretudo dois.
O primeiro desafio é o de que o povo pobre do Paraná, através das suas lutas, nos convida a não fugir do conflito. Para construir a paz e a justiça, o conflito com as forças contrárias é inevitável e não pode ser ignorado ou dissimulado. Quem está bem com a vida sempre está tentado a fechar os olhos e a lavar as mãos diante dos problemas dos outros. Os fracassos de tantas lutas e os retrocessos que hoje experimentamos no âmbito dos direitos fazem com que o desânimo e a vontade de desistir no caminho tomem conta de nossas vidas. O desafio é assumir juntos e “aceitar, suportar o conflito, resolvê-lo e transformá-lo no elo de ligação de um novo processo. «Felizes os pacificadores» (Mt 5, 9)” (4) .
Mas isso nos leva a uma outra consideração importante. Temos que refletir sobre o “conflito não-violento”, quer dizer, sobre a não-violência como estilo de ação, de vida. Hoje em dia, a não-violência tem uma forte dimensão teorética, do plano filosófico ao teórico, daquele ético ao religioso. As experiências construídas através de formas de luta e de transformação social, econômica e política, fundadas sobre a não-violência ativa – em muitos casos com final feliz –, se desenvolveram em várias partes do mundo, entrando plenamente na história contemporânea, e os movimentos sociais têm que levá-las a sério.
Francisco fala hoje de terceira guerra mundial “aos pedaços”. E nós assistimos atônitos a um cenário internacional que volta a se fundar sobre um equilíbrio do medo e sobre a absurda ideia de que os armamentos nucleares mantenham o equilíbrio mundial. Talvez, diante de tantos medos – medo de perder privilégios, do mundo que muda, de quem é diferente pela cor da pele, pela língua, pela religião, pelos costumes – que pedem proteção econômica, social e política, as saídas pacíficas são todas oportunidades para se experimentar e para se construir. Mas estamos convencidos de que não existem saídas verdadeiras sem passar pelo acolhimento, pelo respeito à vida e à dignidade de cada ser vivente, pela escolha decidida e corajosa da não-violência (5).
O segundo desafio é retomar a reflexão sobre a “política”. Apesar de experiências recentes pouco positivas e da volta de regimes totalitários, isso não deve nos afastar de assumir os nossos compromissos para a construção do bem comum, através desta atividade, a reflexão, que certamente permanece nobre. A ação não-violenta para a mudança social, a luta contra os governos tirânicos e as democracias “formais” do ocidente que colocam em ação políticas econômicas contra os pobres e a Mãe Terra, tem que passar por processos democráticos e isso requer não ter medo de participar com força na vida política, dando a nossa contribuição para mudar também a prática e a organização dos partidos, lembrando “a missão das organizações dos excluídos e tantas organizações de outros setores da sociedade, de ser chamados a revitalizar, a refundar as democracias que estão a atravessar uma verdadeira crise” (6).
E, por fim, não esquecer que hoje em dia não se pode mais encarar os problemas sociais sem ter em conta as questões ambientais da Mãe Terra, que atingem todos os seres viventes, pois todos pertencem a este grande ecossistema. Não se dá justiça social sem ecojustiça (e vice-versa).
Gostaria de concluir dizendo que a missão geral de todos os movimentos sociais e de todas as organizações populares é fazer surgir e cultivar em “cada pessoa que mora neste planeta” (7) o sentido profundo da cura da casa comum com os seus moradores, onde a luta pelos direitos de qualquer grupo social deve ser animada por uma espiritualidade holística – de cuidado – que se sustenta numa visão de “ecologia integral” (8). Visão que tem um olhar para integrar e unir saberes diferentes, tendo em vista uma práxis significativa e um ouvido capaz de escutar juntos o grito da terra e o grito dos pobres em todas as situações concretas. Uma perspectiva sustentada pela ciência contemporânea, que nos orienta a compreender a vida e a nos compreendermos, enquanto seres humanos, como elementos de uma rede de relações ampliadas. Um convite a caminhar juntos, a “ser” mais do que componentes de uma rede, mas “ser” a própria rede, que se faz a si mesma a cada momento. Compreender isso exige responsabilidade e compromisso com a nossa própria caminhada, com a caminhada de todos os seres vivos e a da Mãe Terra.
1. Mujica José, Petrini Carlo, Sepúlveda Luis, Vivere per qualcosa, 2017, Slow Food Editore, p. 94.
2. Discurso de Papa Francisco aos participantes do 3° encontro mundial dos movimentos populares: http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2016/november/documents/papa-francesco_20161105_movimenti-popolari.html
3. Idem.
4. FRANCESCO, Evangelii Gaudium, p. 226.
5. Todavia, pensando as lutas de libertação narradas no livro, é justo e dever nosso lembrar que faz parte da doutrina da Igreja o uso da insurreição revolucionária em caso de “tirania evidente e prolongada que ofendesse gravemente os direitos fundamentais da pessoa humana e prejudicasse o bem comum do país”. (Populorum Progressio n. 31).
6. http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2016/november/documents/papa-francesco_20161105_movimenti-popolari.html
7. Papa Francisco, Laudato Si’, n. 3.
8. Papa Francisco, Laudato Si’, cap. IV.
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Memória das lutas e resistências populares no Paraná - Instituto Humanitas Unisinos - IHU