Marcada por uma idealização romantizada, feriado de 20 de setembro no Rio Grande do Sul coloca em evidência transformações a respeito da identidade gaúcha
Precisamente há 186 anos, em um 20 de setembro, iniciava-se o levante Farroupilha contra as tropas imperiais do Brasil. A guerra regional dizia ter um propósito republicano contra o regime imperial. O conflito, contudo, se encerraria quase 15 anos depois, em 1º de março de 1845. Aproximadamente um século depois, a memória da chamada Revolução Farroupilha serviria de base para reconstruir o imaginário em torno da figura do gaúcho, com a fundação do Movimento Tradicionalista Gaúcho - MTG e todos seus desdobramentos e complexidades que nos trazem aos dias atuais.
Na encruzilhada idílica de um passado romantizado com a brutalidade do tempo presente, os sentidos do gauchismo e do 20 de setembro, feriado no Rio Grande do Sul, e do que significa ser gaúcho assumem contornos ainda mais obtusos.
“O gaúcho é narcisista e oligofrênico, mas sua identidade é simplória, entre o grosso e o grotesco, mais que inculto, hostil à cultura. Parte expressiva da sociedade, especialmente aquela vinculada ao bolsonarismo mesmo antes deste pulha nascer ou bradar, considera-se como reserva nacional de virilidade e honra”, descreve o professor e pesquisador Francisco Marshall, em entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Na mesma linha pondera Luís Augusto Fischer, também professor e pesquisador na UFRGS. “No Rio Grande do Sul há uma marca forte do gauchismo, que tem como mundo ideal o mundo da estância e o da pequena propriedade familiar, que se misturaram nessa coisa de tradicionalismo. Há um pouco uma característica reacionária de imaginar que no passado havia um tempo melhor para o qual devemos nos dirigir para encontrar a felicidade, mesmo que seja imaginariamente”, sugere o entrevistado, na entrevista por e-mail.
Para Mário Maestri, professor e pesquisador, “A Revolta Farroupilha, movimento liberal dos estancieiros escravistas, tem sido apresentada com sucesso como referência identitária de todos os rio-grandenses, com enorme sucesso. Uma manipulação a que se verga, em forma geral, nossa esquerda, com apenas alguns retoques”, problematiza.
Francisco Marshall (Imagem: Reprodução YouTube)
Francisco Marshall é historiador e arqueólogo. Licenciado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS e doutor em História Social pela Universidade de São Paulo - USP, fez estágio pós-doutoral na Princeton University (EUA) e na Ruprecht-Karls-Universität Heidelberg (Alemanha). Leciona na UFRGS. É fundador e curador cultural do StudioClio - Instituto de Arte & Humanismo, em Porto Alegre. Publicou Édipo Tirano, a tragédia do saber (EdUFRGS e EdUnB, 2000), que venceu o Prêmio Açorianos 2001.
Luís Augusto Fischer (Foto: João Vitor Santos/IHU)
Luís Augusto Fischer é doutor, mestre e graduado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, onde leciona. Lançou recentemente o livro Duas formações, uma história. Das ideias fora do lugar ao perspectivismo ameríndio (Porto Alegre: Arquipélago, 2021), resultante de sua tese de professor titular e do estágio pós-doutoral realizado na Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris 3. Além disso, é autor de várias obras, entre elas Dicionário de porto-alegrês (Porto Alegre: L&PM Editores), Literatura gaúcha – História, formação e atualidade (Porto Alegre: Leitura XXI) e Inteligência com dor – Nelson Rodrigues ensaísta (Porto Alegre: Arquipélago Editorial). Fez a edição anotada de Contos gauchescos e Lendas do Sul (Porto Alegre: L&PM Editores), de Simões Lopes Neto, e de Antônio Chimango (Caxias do Sul: Editora Belas Letras), de Amaro Juvenal.
Mário Maestri (Imagem: Reprodução YouTube)
Mário Maestri é graduado em Ciências Históricas pela Université Catholique de Louvain, na Bélgica, onde também realizou mestrado e doutorado na mesma área. Em 1991, fez o pós-doutorado na mesma universidade. Atualmente, é professor da Universidade de Passo Fundo. É autor de Uma história do Rio Grande do Sul: a ocupação do território (Passo Fundo: UPF Editora, 2006), O escravo no Rio Grande do Sul: trabalho, resistência, sociedade (Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2006) e Antonio Gramsci: vida e obra de um comunista revolucionário (São Paulo: Expressão Popular, 2007), entre outros.
IHU – Qual a imagem que os gaúchos tendem a ter de si próprios e como isso se manifesta em suas escolhas políticas?
Francisco Marshall – Falo sem uso de estatística ou pesquisa antropológica, ou mesmo de história, mas com a opinião de um cidadão que gosta de ser gaúcho a seu modo, que sabe das belas realizações culturais que temos em nosso genoma e do que podemos ser, diante dos desafios atuais. O gaúcho é narcisista e oligofrênico, mas sua identidade é simplória, entre o grosso e o grotesco, mais que inculto, hostil à cultura. Parte expressiva da sociedade, especialmente aquela vinculada ao bolsonarismo mesmo antes deste pulha nascer ou bradar, considera-se como reserva nacional de virilidade e honra, e alinha-se com pulsões reacionárias, sem as avaliar e sem medo de brigar com a modernidade – pelo contrário; afinal, este é o estado da tradição, Centro de Tradições Gaúchas – CTG/RS. Ademais, em que pese sermos o berço de Leonel Brizola e termos tido dois governadores do Partido dos Trabalhadores - PT no passado recente, há um perfil conservador que se agravou nos últimos tempos. O crescimento do bolsonarismo estimulou o afloramento dos valores mais retrógrados, que são parte de um lastro poderoso e gritão neste estado.
É esse lastro pavoroso e medíocre que agora está bradando em público, triunfalista de uma vitória de Pirro, e predominando nas escolhas políticas dos gaúchos. Vem junto uma patética sujeição a mídias ideológicas, do PIG ao zap de tiozões e tiazonas, porque às vezes, e especialmente nas piores vezes, o gaúcho também é brasileiro e o brasileiro também é gaúcho.
Luís Augusto Fischer – Toda generalização é sempre algo abstrato. E os “gaúchos” é alguma coisa um pouco abstrata, mas pensando nesse nível de imprecisão generalista, os gaúchos tendem a ter um problema de balanço de equilíbrio entre uma autopercepção muito eufórica e uma autopercepção negativa. Um pouco como se fosse, digamos assim, bipolar. Em contextos positivos pode-se encontrar toda essa coisa da bravata do 20 de setembro – “povo gaúcho melhor em tudo”, “sou gaúcho e me basta” –, que exprimem uma ideia muito positiva. Mas esta mesma ênfase de vez em quando desanda quando encontra uma evidência em contrário, do tipo “o Brasil não gosta de nós”, “eles não prestam atenção em nós”. Mas é isso, falando bem genericamente, a imagem costuma ser muito positiva, porque é como se soubéssemos o que somos e que, neste caso, seríamos brasileiros por “opção”. Isso ocorre até mesmo com gente que não formula tais coisas como eu coloquei, mas que tem essa ideia de que, no fundo, nós “valemos” mais do que os outros brasileiros.
Mário Maestri – A Revolta Farroupilha, movimento liberal dos estancieiros escravistas, tem sido apresentada com sucesso como referência identitária de todos os rio-grandenses, com enorme sucesso. Uma manipulação a que se verga, em forma geral, nossa esquerda, com apenas alguns retoques. No passado, o Rio Grande do Sul foi um Estado relativamente diferenciado, com maior equilíbrio da distribuição da riqueza, devido à imigração colonial camponesa sobretudo. A República Castilhista permitiu igualmente a constituição de um Estado forte, burguês, em um país dominado pelo “Estado mínimo” das oligarquias agrárias. A força do populismo burguês e pequeno-burguês (varguismo, brizolismo) se alimentou dessas realidades, que há muito fazem parte do passado. O "orgulho de ser gaúcho" é hoje manipulação da consciência de uma população subjugada e alienada, cada vez mais pobre, explorada e desassistida, sem qualquer partido e movimento que centre a identidade regional e nacional no mundo do trabalho.
IHU – Que diferenças marcam o gaúcho da capital e região metropolitana do gaúcho das regiões do interior? Politicamente, é possível perceber perfis similares ou diferentes?
Francisco Marshall – Essas diferenças já foram mais claras, no imaginário e na sociologia, mas hoje se dissolvem em estereótipos cafonas, animados por música ruim e comportamentos alienados, predominantes em cidades de qualquer tamanho, a começar com a Porto Alegre Embarcadero. A parcela esclarecida persiste, vinculada aos meios acadêmicos e culturais, e cresce uma nova atitude na juventude. No interior, parece haver maior resistência ao ambientalismo e aos movimentos em prol de minorias (quilombolas e LGBTQIA+) e maiorias (mulheres, mesmo que dentre estas o feminismo seja minoritário). Parece que paralelamente às mudanças da era digital portátil o mass media do século XX ainda colhe frutos em pleno século XXI-RS, e hoje se ouve mais música sertaneja em Porto Alegre do que em Uruguaiana.
Luís Augusto Fischer – Bem, a tendência nas grandes cidades é ter conflitos “modernos” mais explícitos, moderno no sentido da Modernidade Ocidental. Então, por exemplo, tem-se sindicalismo mais atuante, menor peso relativo de instituições tradicionais, tipo a Igreja. Então, genericamente, na cidade grande a tendência é ter uma consciência mais aguda das coisas, ao passo que no interior é mais comum que os sujeitos aceitem a palavra da autoridade tradicional. Em Porto Alegre, Pelotas, Rio Grande, talvez em parte de Caxias (do Sul) e Santa Maria, cidades maiores e mais desenvolvidas, com maior circulação de renda e pessoas, a tendência é ter uma visão mais emancipada.
No Rio Grande do Sul há uma marca forte do gauchismo, que tem como mundo ideal o mundo da estância e o da pequena propriedade familiar, que se misturaram nessa coisa de tradicionalismo. Há um pouco uma característica reacionária de imaginar que no passado havia um tempo melhor para o qual devemos nos dirigir para encontrar a felicidade, mesmo que seja imaginariamente, mesmo que seja em uma cerimônia dominical ou mesmo no baile. Essa é uma dimensão importante.
Mário Maestri – A diferença entre o mundo urbano e rural, entre a campanha dedicada ao pastoreiro e as regiões, do norte, centro e sul do Estado abraçada pela agroindústria não podia deixar de ser grande, no contexto de uma certa identidade. A ideologia “gauchista” é forte nas regiões pastoris, onde tem uma base objetiva, ainda que romantizada e manipulada. A agroindústria sul-rio-grandense está construindo novas formas de identidade, mais centradas na visão liberal de mundo.
IHU – Como o senhor compreende as manifestações políticas de parte do eleitorado gaúcho, que vibrou com a presença do presidente Bolsonaro na Expointer e até ergueu uma estátua em sua homenagem em Passo Fundo?
Francisco Marshall – São manifestações tipicamente gaúchas, como o foi a humilhação imposta ao Capitão Gay em 2002, na Parada Farroupilha, e a estúpida agressão à caravana de Lula em 2018; os agrobozos de qualquer Expointer se orgulharão dos "relhaços" então cometidos. Esses reféns do tradicionalismo reacionário não têm a mínima capacidade de análise, e não conseguem sequer compreender que a era Lula (2002-2010), assim como é e será qualquer era desenvolvimentista, foi extraordinariamente favorável para a economia regional gaúcha, sobretudo a agropecuária. Investimentos e recuperação logística, financiamentos e acordos comerciais em favor da economia nacional, agrária inclusive, são mais importantes do que bordões reaças. Mas esses fatos evidentes são esquecidos diante da obsessão ideológica reacionária, caracteristicamente gaúcha.
E lá está essa estátua de Passo Fundo [de Jair Bolsonaro], como também perdura a horrenda estátua de um gaúcho fascista e flamenguista [Renato Portaluppi] diante da casa que ele surra – e comemora, cuspindo no cocho –, como perfeito símbolo da grosseria histórica e atual, ademais, coerentemente feia, pavorosa. E note-se que o estafermo erguido em PF (patético) possui uma fenda onde o retratado quer que resida um fuzil. E os gaúchos idiotizados que seguem essa cantilena provavelmente sofrem dessa mesma síndrome, déficit fálico e projeções doentias. Essa gente e suas atitudes são sintomas de moléstias graves.
Mário Maestri – A Expointer sempre foi o reduto do latifúndio e, hoje, da agroindústria. O golpismo, Temer e Bolsonaro significaram a introdução no Brasil, no campo e na cidade, de uma nova ordem que podemos definir de “escravidão assalariada”. Os novos escravistas não podem deixar de delirar, diante de um feitor que por sua rusticidade espelha o mundo ideológico e a sensibilidade dos presentes.
IHU – Na Expointer, o presidente comentou a decisão do ministro Fachin sobre o marco temporal envolvendo a demarcação das terras indígenas e disse que, se ela "vingar", será o fim do agronegócio. Por que esse tipo de pronunciamento faz sucesso no RS?
Francisco Marshall – Por força do "encosto" reacionário que sempre assombrou este estado e ora o tem possuído, esses idiotas acham que atuam contra o pequeno e o médio e contra outras formas legítimas de propriedade da terra, diferentes do regime de latifúndio de monocultura extensiva. Custam a entender que a prosperidade de sua economia depende do desempenho de semens e sementes e do real desenvolvimento da infraestrutura econômica, hoje abandonada, e que uma economia complementar de minifúndios é útil para a modernização da economia rural, tanto quanto reservas indígenas são, ademais do direito originário, a melhor forma de preservação ambiental.
E os mercados internacionais, consumidores da agropecuária brasileira, sabem disso, mas só não o sabem os herdeiros de bandeirantes e de colonos racistas do RS. Algum desses idiotas – inclusive os governantes atuais – imagina que a incorporação de valor agregado, com ciência e tecnologia regionais e emancipadas e a inclusão de ciclos econômicos contemporâneos, possa ampliar o desempenho da economia, e, consequentemente, a demanda e o consumo e o enriquecimento de todos? Não, né? Preferem exportar soja in natura para chineses, colher bilhões, enquanto chamam de "commodities" aos produtos primários que marcam a tradicional subordinação colonial da economia e da sociedade local, protagonizadas pelo regime fundiário e econômico do agronegócio. Não seria necessária uma conversão cultural da Expointer para a modernidade – incluindo-se, claro, a mudança dos padrões de violência contra os animais, a natureza e a sociedade esclarecida ali representados, em prol de algo melhor?
Luís Augusto Fischer – Bolsonaro está falando para uma plateia de grandes produtores, aqueles de porte, não os pequenos proprietários, presumo eu, tradicionais. É possível que haja ali algum pequeno proprietário que se imagina grande e que os indígenas sejam seus inimigos. Mas por que isso faz sucesso? Porque a lógica do agronegócio é uma lógica ecocida, de produção em grande escala, de monocultura para exportação, uma prática amplamente predatória. Nessa lógica da predação, claramente, os indígenas são um obstáculo, por isso uma fala imbecil como esta tem sucesso.
Mário Maestri – No Brasil, jamais se deixou de matar “índios” e grilar terras. A terra hoje está valorizada como jamais. Um hectare vale um patrimônio. O desejo e a possibilidade de se apoderar dela, como se tem feito como jamais, sem praticamente custo, é inebriante.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Francisco Marshall – Claro. Este é o estado de Qorpo Santo e de Paulo Flores e Patrícia Fagundes, de Érico Veríssimo e de Carol Bensimon, de Natho Henn e de Adriana Calcanhoto, de Pedro Weingärtner e de Zorávia Bettiol, de Jussara Cony e de Manu e Fernanda, de Borghettinho e de Rafa Rafuagi, do Parthenon Literário e da UFRGS, de José Lutzenberger e da Associação Amigos do Cais Mauá - AMACAIS, então não pensem esses cafonas que seu efêmero triunfo nesta era mórbida tem algum valor. Eles, merdinhas, nós, passarões.