Ambientalista revela os riscos que a invasão das big techs pode trazer para agricultores familiares, saberes ancestrais, biodiversidade e até para pequenos comerciantes
O que se convencionou chamar de evolução da humanidade é algo muito curioso, pois partimos do trabalho escravo para a libertação, depois regulamentação e legislações trabalhistas para que o desenvolvimento de alta tecnologia trouxesse a ideia de que todos podem ser empreendedores de si e novamente nos tornássemos explorados. O impressionante é que esse processo de invasão tecnológica e uberização da vida já foi para o campo. Se um dia a humanidade mudou sua forma de vida por domesticar as plantas, agora a tecnologia pode acabar com tudo. “A tentativa é justamente eliminar os pequenos revendedores e a própria plataforma digital ser o intermediário, organizando essa cadeia final de distribuição”, observa Larissa Packer, da ONG Grain. “Tem aí os novos intermediários, que são essas plataformas, numa uberização da economia”, completa.
Na entrevista a seguir, concedida via áudios de WhatsApp ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, Larissa ainda destaca que “conseguimos ver que vai haver uma eliminação dos pequenos revendedores, das pequenas vendas, das feiras livres. Esses pequenos mercados varejistas serão substituídos no processo de uberização e serão mais um entreposto e um serviço de delivery e e-commerce para as grandes empresas varejistas”. Para ela, “os maiores riscos na produção de alimentos são, justamente, a eliminação de atores dentro de uma cadeia que é altamente concentrada e o achatamento de preços ao produtor rural na ponta, por uma extração de lucro das empresas varejistas”.
Além disso, Larissa destaca que a tecnologia que chega ao campo quer muito mais do que ‘facilitar a vida na roça’. Isso porque cria monopólio entre empresas de tecnologia e as que fornecem insumos para a produção, numa espécie de venda casada que coloca o agricultor como refém das próprias informações das quais por anos ele foi detentor. “Esses desenvolvimentos tornam o conhecimento do produtor rural obsoleto e cada vez mais se programa essa obsolescência no tempo, fazendo com que custe muito caro reparar os próprios meios de produção, que antes era uma enxada, depois um trator dirigido por uma pessoa e agora é tudo feito a partir de robôs”, diz. O resultado é alimentação mais pobre, com menos diversidade de alimentos, danos ao meio ambiente e aos pequenos de toda essa cadeia. “Para os pequenos produtores isso ainda não é uma realidade, pois tudo é muito caro, mas ao longo do tempo é um processo de programar a entrada desses recursos tecnológicos, assim como foi com as sementes”.
Larissa Packer (Foto: Arquivo pessoal)
Larissa Packer é advogada socioambiental e membro da equipe do Grain, organização internacional que trabalha com pesquisa e informação para apoiar pequenos agricultores e movimentos sociais nas suas lutas por sistemas alimentares baseados na biodiversidade e sob controle comunitário.
IHU – Como as big techs têm chegado e vêm atuando no campo?
Larissa Packer – Principalmente pós-2008, com a crise do sistema financeiro, com milhões de dólares procurando um lastro mais seguro para aterrissar na economia produtiva, temos uma economia altamente financeirizada e, segundo o banco Mundial, só se pode superar a crise financeira através da realização em escala dessa economia financeirizada. Isso significaria incluir 1,7 bilhão de pessoas sem banco no mundo dentro dessa economia financeirizada, não necessariamente passando por agências bancárias. Assim, temos, nesse último período de dez anos – ou 20 anos se contarmos com o que ocorre na Ásia –, a ampliação da digitalização e da financeirização da economia.
Cada vez mais as big techs constroem infraestrutura de conectividade de telefonia celular, principalmente, e softwares para criar plataformas digitais de pagamento para fazer transações via plataformas digitais e com moedas digitais, independentemente de se ter uma conta vinculada a uma agência bancária. Recentemente, temos o exemplo do Pix, mas já convivemos com outras Fintech, que são empresas financeiras especializadas em tecnologia que fizeram esse casamento da digitalização com a financeirização. Na China temos WeChatPay, entre outros. O NuBank veio também revolucionar o sistema financeiro bancário na América Latina e, hoje, temos o WhatsApp, que além de ser uma rede social que conecta as pessoas em escala, também está numa plataforma de pagamentos digitais.
Com isso as big techs estão se posicionando muito bem e reestruturando vários agentes das cadeias de valores existentes, não só na agricultura, mas em todas as etapas da cadeia de valor. Somado a essa modificação do modo de produção da chamada indústria 4.0, com a aplicação de inteligência artificial, internet das coisas – em que um eletrônico conversa com o outro sem necessariamente passar pela mediação humana –, aplicação de robotização no modo de produção, tanto de produtos para indústria como no agronegócio, ainda há esses serviços de captura e processamento de dados. Além disso, principalmente com a pandemia de Covid-19, que limitou a circulação de pessoas e mercadorias, o liberalismo econômico acabou extremamente restrito nesse último período. Assim, temos uma aceleração da demanda pela indústria 4.0 e pela digitalização da economia para que os fluxos se deem não da forma física, mas por via eletrônica.
Existe, por um lado, a aceleração de uma demanda de modificação da base produtiva para uma indústria 4.0, o que exige uma maior conectividade não só do espectro, mas também de qualidade. E aí vem toda a guerra do 5G em que se permitiria que as máquinas conseguissem responder conforme os segundos do próprio reflexo humano para realmente poder aplicar a robotização e a inteligência artificial nas diversas etapas produtivas. E isso acaba deslocando a economia também para a extração de outras matérias-primas tanto energéticas quanto minerais, não só o ferro e o cobre, mas também o lítio, o nióbio, as terras raras – que na realidade são outros agentes da tabela periódica mais ligados ao magnetismo –, condutores de fibras ópticas, etc.
Temos aí uma demanda do modo de produção que vai para essa indústria 4.0, uma crise financeira e sanitária que faz também com que a economia se torne cada vez mais financeirizada e digital. Por outro lado, temos a crise ecológica e climática, em que se exige também uma corrida tecnológica com menor impacto ambiental e social para extração dos recursos naturais, embora as cadeias de valor precisem continuar extraindo esses recursos, com a mudança nos modos de produção, a baixo valor de custo.
Com isso tudo, vimos uma ruptura das cadeias globais longas de valor. Tivemos uma crise, uma ruptura no processo de fornecimento e circulação de diversas mercadorias e também uma aceleração da necessidade de se prever a oferta e a procura. Assim vem toda a indústria de captura e processamento de dados para o negócio da informação para uma maior precisão e extração de valor dentro dessas cadeias. São os serviços de nuvem, de digitalização de conectividade que se colocam com muita presença em todas as cadeias e não somente no agronegócio.
Com isso, o Banco Mundial vem com este diagnóstico: há 1,7 bilhão de pessoas sem banco, mas há 1,1 bilhão de pessoas com celular. Então a maior demanda de produção para essa cadeia produtiva 4.0 digitalizada e financeirizada está justamente na conectividade e por isso essa batalha de provisão do 5G entre Huawei chinesa, Ericsson suíça, Samsung da Coreia do Sul, Nokia da Finlândia. Essa tecnologia vem sendo chamada de uma nova guerra fria, mas a China é a que mais tem essa ampliação, já estando em quase 170 países com a tecnologia 5G.
Além disso, esse déficit de conectividade é muito importante nas áreas rurais dos países. Na América Latina, são 40% das áreas rurais sem acesso à internet – dados de um relatório de 2020 feito pela Microsoft, que é a grande interessada em fornecer essa conectividade junto com a telefonia para vender seu pacote como um todo nas áreas rurais. Ou ainda, para levar a financeirização para os sem banco, já que se tem a dificuldade de as pessoas irem a uma agência bancária e das exigências de se abrir uma conta. Assim, quando se tem as plataformas que não exigem tudo isso, basta se ampliar a conectividade.
No Brasil, cerca de 70% dos estabelecimentos rurais não têm acesso à internet e dessa fatia de pouco menos de 30% dos que têm acesso, quase 80% é por celular. Então, a questão mesmo está na conectividade como uma falha de mercado para financeirização, digitalização e alteração dos modos de produção 4.0. Realmente, a área rural é um foco para ampliação em escala dessa economia financeirizada.
IHU – De que forma o pequeno, médio e grande agricultor tem se relacionado com essas novas tecnologias no campo? E que tipo de serviços e facilidades essas big techs têm ofertado para cada um desses tipos de produtores rurais?
Larissa Packer – Na parte da produção, se vê um certo reposicionamento dos atores da cadeia, em que sensores são acoplados a tratores e maquinário agrícola, drones são posicionados no campo para fazer a captura massiva de dados sobre a qualidade do solo, a quantidade de água, que tipo de semente pode melhor se desenvolver, as mudanças no clima, a quantidade de nitrogênio, fosfato e potássio, os fertilizantes sintéticos que estão sendo usados no solo, etc. Esses dados são captados por esse novo tipo de hardware de infraestrutura, desenvolvido para transportar os dados coletados para o software nos celulares dos agricultores.
Os agricultores também fornecem dados históricos sobre a quantidade de produção, etc. e isso é enviado para algum serviço de nuvem de algumas dessas big techs, dependendo do tipo de associação que se faz entre uma grande empresa da área da agricultura. Essas corporações têm um acordo, como por exemplo a Basf tem acordo com a Bosch, a Yara também tem acordos, a Syngenta, a Monsanto acabam fazendo acordos com a Microsoft, Apple, Amazon. O software que a Bayer e a Monsanto desenvolveram, o Climate FieldView, por exemplo, é enviado para a nuvem e processado pela Amazon Services. Com o processamento desses dados, isso é enviado novamente para a empresa agrícola, a qual vai prestar uma consultoria digital e prescrever um receituário agrícola invariavelmente ligado à corporação que vende determinado tipo de semente, agrotóxicos, fertilizantes e o próprio maquinário agrícola. Assim, se tem no receituário uma ‘casadinha’, condicionando o acesso ao microcrédito a determinados tipos de inputs, tipos de sementes, agrotóxicos e fertilizantes.
Esse é o principal problema ligado aos pequenos agricultores. Essa indústria 4.0, atualmente, é uma indústria restrita a grandes proprietários que têm capital de giro, aqueles que podem adquirir grandes maquinários governados por GPS, internet das coisas, em que sensores vão estar dialogando com drones e vão enviar informações direto para o celular e para a nuvem. Isso tudo é caro e é para um mercado restrito de grandes produtores e exportadores de commodities.
Para se ter ideia, um desses softwares feitos pela Syngenta, o Cropio, integra cerca de 40 milhões de hectares na Europa, Ásia e América Latina. A Bayer tem o Climate FieldView, que já citei, a Yara desenvolveu outro que analisa o teor de nitrogênio, fosfato e potássio. Você pode pegar o celular e, a partir disso, também com imagens de satélite, consegue identificar qual é a seletiva, que tipo de fertilizante seria necessário.
Isso seria, inclusive, segundo as empresas, uma forma de gerar menos impacto ambiental, uma agricultura de precisão. Então, o pacote também está sendo utilizado pelo Green New Deal, pelos novos acordos verdes. A Europa, por exemplo, promete reduzir em 25% o uso de seus fertilizantes. Para isso se tem o novo pacote tecnológico da agricultura 4.0 de precisão, em que o drone já vai com uma indicação de pulverização aérea focada e sem desperdício, portanto seria mais ecológico. Com isso, temos essa questão dos serviços das big techs entrando com um novo tipo de parceria e de administração dos dados captados entre as empresas de maquinário agrícola, as empresas de fertilizantes, as empresas de agroquímicos e as empresas de sementes.
Com essa prescrição digital fornecida pelo aplicativo e pelo processamento dos dados, o microcrédito é associado a isso como um contrato em grande escala. Os pequenos produtores acabam tendo, até gratuitamente, acesso a consultorias digitais fornecidas pelas grandes empresas de tecnologia no campo. Os dados são ofertados gratuitamente a essas empresas que também acabam processando esses dados. Desse modo, quem tem a informação hoje em dia é quem também consegue ter a noção das etapas da cadeia e, inclusive lá na ponta, fixar o preço dessa commodity.
Assim se posicionam essas corporações fornecendo dados gratuitos para um ajuste ainda maior na oligopolização da cadeia. E sem saber de quem será a administração desses dados também acaba atrelado o acesso a crédito, seguro agrícola, a esse pacote digital tecnológico, uma nova revolução verde digitalizada dessa indústria 4.0, que coloca as big techs posicionadas entre os atores que já são poucos, pois já é uma cadeia muito concentrada.
IHU – Quais são as empresas de ponta que vêm atuando no meio rural hoje?
Larissa Packer – Quando falamos da agricultura 4.0 ou agricultura digital ou da entrada das big techs na cadeia agroalimentar, estamos falando de diversas etapas. Existe a etapa anterior à produção de alimentos, que é a das corporações que vendem o pacote tecnológico desde a revolução verde: sementes, agrotóxicos, fertilizantes sintéticos e maquinário agrícola; são os inputs, aquilo que é necessário para a produção. Nessa área tem uma cadeia muito oligopolizada.
Se no início dos anos 1990 existiam as big sixs, Monsanto, Bayer, Basf, Syngenta, Dow e DuPont, hoje em dia temos as “quatro gordas”: a Bayer adquiriu a Monsanto; a Dow e a DuPont, fusionadas, criaram a Corteva; a ChemChina comprou a Syngenta; e a Basf. Essas são as principais empresas na área de sementes e agrotóxicos, que hegemonizam o mercado de sementes. Três corporações controlavam 50% do mercado de sementes em 2018, o que demonstra o grau de fusões e aquisições de empresas de agroquímicos comprando sementeiras e concentrando cada vez mais essa etapa da cadeia agroalimentar.
Também existem novos atores, que são os fundos de gestão e investimento, principalmente os fundos de pensão de trabalhadores, que têm aplicado bastante na área da agricultura, principalmente em ativos naturais, como terras, mas também na própria produção dos alimentos e nas corporações que organizam a cadeia. Existem fundos de gestão que têm uma participação horizontal em todas essas empresas que citei, todos norte-americanos: BlackRock, Vanguard, Fidelity e Capital Group.
Atualmente, as etapas da cadeia de produção já são bem oligopolizadas. Então, por exemplo, tem o produtor rural – e o Brasil se posiciona justamente aí, como um dos maiores países exportadores de commodities agrícolas – e logo depois da produção, tem as comercializadoras, que são poucas, como a Cargill, norte-americana, a Cofco, chinesa, e a Bunge. Depois disso, tem a etapa do processamento dos alimentos e bebidas, como a Nestlé, suíça, a PepsiCo, norte-americana, e a Tyson Foods. As comercializadoras também podem ser processadoras, como a Cargill, a Coca-Cola, a Heinz, ou seja, existem dez empresas que tomam conta do processamento de alimentos no mundo.
Depois, tem o setor do varejo, conectando a produção e o consumidor, que faz a intermediação para o alimento chegar na ponta – no garfo, como as empresas chamam. A digitalização da cadeia seria um encurtamento desses atores: farm to fork [fazenda para o garfo], ou seja, as plataformas digitais encurtariam esse caminho e diminuiriam a pegada de carbono, a pegada ambiental, já que se conectaria a produção diretamente ao consumidor, eliminando os intermediários – vamos ver que não é bem assim, mas as varejistas, como a Walmart, tem 27% do mercado de varejo mundial.
Em todas essas etapas existe, atualmente, um posicionamento das grandes [empresas] de tecnologia, principalmente com esquemas de captura e processamento dos dados da cadeia por algoritmos fornecidos pelas big techs.
IHU - Que transformações têm ocorrido no campo desde a chegada das big techs?
Larissa Packer – No Quênia, por exemplo, existe a versão africana da Vodafone, a Safaricom, uma empresa de telefonia e conexão, que tem um braço de consultoria agrícola, dada via WhatsApp, que é do Facebook. Essa consultoria tem uma parceria com a Syngenta. A Safaricom possui uma plataforma digital de compra e venda e, através dela, os produtores compram os maquinários agrícolas, sementes e agrotóxicos, com uma moeda digital por uma taxa muito menor do que as bancárias.
Então, ela é uma fintech hoje em dia, uma empresa de telefonia e conectividade, que desenvolveu um software de pagamentos, com moeda digital, especializada também no setor agrícola. Ela fornece microcrédito e, para o produtor acessá-lo, juntamente com o seguro rural, isso é condicionado às recomendações agrícolas da empresa, que tem parceria com a Syngenta. Assim, a estratégia é vender mais produtos da Syngenta, a partir da digitalização dessa etapa entre os inputs e a produção agrícola.
IHU - Tanto quem produz no campo como quem compra os alimentos na cidade reclama da incidência dos chamados atravessadores, que numa ponta pagam pouco pela produção e, na outra, encarecem os produtos. Como fica essa figura no contexto da atuação das big techs nessa cadeia?
Larissa Packer – O Banco Mundial, no último relatório de 2020 sobre agricultura 4.0, aponta que as grandes fazendas precisarão começar a puxar a demanda pelas novas tecnologias da quarta revolução industrial, como através do uso de dados massivos, da internet das coisas na agricultura de precisão, além da inovação biotecnológica, com edição de genes no melhoramento genético. Ao mesmo tempo, os pequenos agricultores fornecerão essas informações numa nova espécie de agricultura de contrato. Então, tem aí uma estratégia e um novo mercado.
O mercado de drones, por exemplo, em 2017, girava em torno de 2,4 bilhões de dólares e hoje gira em torno de 20 bilhões de dólares. Então, existem novas e várias conexões entre as grandes [empresas] da tecnologia com as grandes [empresas] da agricultura, fazendo alguns acordos de propriedade intelectual, ou fusões ou aquisições. As empresas que estão melhor posicionadas na cadeia para captura de dados provavelmente serão aquelas que vão “engolir” as que vão se tornando mais obsoletas nessa nova agricultura 4.0.
Isso vai gerar uma disputa: ou os dados ficarão com a empresa que desenvolveu o maquinário, o drone e o sensor ou com a empresa que está desenvolvendo o aplicativo, que são as grandes empresas de sementes e agrotóxicos. Isso vai ser processado na nuvem de uma big tech. Então, tem aí três tipos de agentes corporativos que vão ter que entrar em algum acordo com relação aos dados capturados e processados.
A questão da captura do dado é relevante, mas também são relevantes as empresas que podem gerar e processar esses dados e gerar informações e recomendações agrícolas. Essas empresas vão acabar fazendo com que as big techs realizem uma reformulação nessa área, que já é bem concentrada, e também na área da comercialização, do processamento e do e-commerce. Vai haver aí um rearranjo. O que já conseguimos ver é que vai haver uma eliminação dos pequenos revendedores, das pequenas vendas, das feiras livres. Esses pequenos mercados varejistas serão substituídos no processo de uberização e serão mais um entreposto e um serviço de delivery e e-commerce para as grandes empresas varejistas, ou com o atacado-varejo, num sistema que acaba ficando muito mais barato; ou as grandes varejistas vão acabar, através dos aplicativos, hegemonizando as vendas e se colocando como um novo intermediário nessa etapa da cadeia de produção.
No Quênia havia o Twiga Foods, que foi desenvolvido dentro do programa “4Africa”, do Alliance for a Green Revolution in Africa - Agra, apoiado pela Microsoft. A iniciativa visava ligar pequenos produtores diretamente a pequenas lojas de varejo em Nairóbi, através de uma frota de caminhões. Os pagamentos eram realizados através da plataforma Azure, que é da Microsoft. Trata-se do “farm to fork”, ou seja, liga-se os produtores, através de uma plataforma digital, aos mercadinhos de Nairóbi.
Acontece que a Twiga Foods foi comprada pela Goldman Sachs, que é uma financeira, e por uma empresa varejista francesa, Auchan. Essas empresas estão fazendo uma parceria com a IBM para desenvolver um projeto piloto de banco digital, justamente para que os produtores vendam diretamente aos consumidores, mas como um produto da Auchan. A tentativa é eliminar os pequenos revendedores e a própria plataforma digital ser o intermediário, organizando essa cadeia final de distribuição para colocar os produtos da Auchan na África. Essa é a estratégia. Então, tem aí os novos intermediários, que são essas plataformas, numa uberização da economia.
Por fim, tem o e-commerce. Dois terços do varejo digital na Índia são divididos entre Walmart, que comprou a Flipkart, e a Amazon, que entrou no mercado agrícola há um tempo, quando comprou uma rede de mercado orgânico nos EUA. O Facebook, por sua vez, comprou uma das maiores lojas de varejo e telefonia, a Reliance Jio, entrando no mercado de e-commerce de alimentos. Tem vários outros exemplos, como o Alibaba, na China, que possui o WeChatPay e Alipay, uma plataforma digital e braço financeiro do microcrédito Ant, também nessa estratégia de financeirização dos “sem banco”, ligando com microcrédito. Também tem a Tencent, na China, o Happy, na América Latina, que dobra de tamanho a cada seis meses. Tem aí toda a questão de comércio de dados nessa ponta.
Esses aplicativos de e-commerce, a partir dos cliques dos consumidores, fazem com que o algoritmo venda um perfil de consumidor para essas grandes varejistas. Além disso, também se torna possível prever os gostos dos consumidores, e elas acabam vendendo muito mais do que se dessem um cupom de desconto, porque sabem melhor o que vai ser comprado. Vemos aí o controle digital de todas as etapas do processo de produção de alimentos.
É possível que, a partir desta comercialização de dados, as grandes empresas do e-commerce imponham preços às outras etapas da cadeia de cima para baixo; isto é, impor o preço ao agricultor. Estas companhias sabem, mais ou menos, a quantidade de demandas dos consumidores, quais alimentos e quais qualidades, de modo que conseguem organizar melhor a cadeia, prevendo melhor os fluxos, inclusive de ofertas e, ao mesmo tempo, fixar o preço das matérias-primas.
IHU – Quais são os riscos de vivermos de um ‘campo high tech’, ou seja, que tenha a produção toda dependente da alta tecnologia?
Larisse Packer – Os maiores riscos na produção de alimentos são, justamente, a eliminação de atores dentro de uma cadeia que é altamente concentrada e o achatamento de preços ao produtor rural na ponta, por uma extração de lucro das empresas varejistas. Então se tem numa ponta as empresas do input, para captar dados, e na outra ponta as varejistas também para captar dados do consumidor. No meio disso, principalmente as traders tornam-se mais obsoletas, sendo possível fazer o transporte farm to fork, em que as grandes empresas podem acabar comprando as intermediárias, inclusive as grandes intermediárias.
Os pequenos intermediários acabam sendo totalmente “integrados” como trabalhadores informais, deliveries, organizados pelas plataformas digitais. Isso significa a possibilidade de especulação com o preço dos alimentos, uma concentração muito grandes de todas as etapas por poucos atores e, realmente, colocamos na mão de uma esfera altamente concentrada – a das big techs – o modo de produção essencial à vida, que é o serviço de fornecimento de alimentos. A agricultura 4.0 é um grande risco neste sentido.
O outro ponto é que com isso vai se substituindo o conhecimento do agricultor por um conhecimento de outro tipo. A tecnologia tradicional, de conhecimento sobre as condições do solo, as condições do clima, a reserva da semente para a safra seguinte, etc., tudo isso vai programando uma obsolescência em nome da venda do novo pacote tecnológico. Dando um exemplo, alheio à questão do campo, vemos fogões com painel digital, cortina que abre e fecha a partir de um sensor; se eles quebram, há poucos serviços que dão conta da manutenção. Então, voltando, esses desenvolvimentos tornam o conhecimento do produtor rural obsoleto e cada vez mais se programa essa obsolescência no tempo, fazendo com que custe muito caro reparar os próprios meios de produção, que antes era uma enxada, depois um trator dirigido por uma pessoa e agora é tudo feito a partir de robôs. Para os pequenos produtores isso ainda não é uma realidade, pois tudo é muito caro, mas ao longo do tempo é um processo de programar a entrada desses recursos tecnológicos, assim como foi com as sementes.
A semente não era propriedade privada. A ideia de propriedade intelectual sobre as sementes e a aplicação de lei de cultivares que restringe o acesso dos agricultores às sementes veio com a União para a Proteção das Obtenções Vegetais - Upov, que seriam as sementes de laboratório e o conhecimento. Os melhoramentos feitos pelo homem no campo há cerca de 12 milhões de anos, desde a revolução da agricultura no período neolítico, não são considerados aprimoramento genético. Já uma cultivar nova, diferente daquela que está no campo dos agricultores, mas que tenha algumas características, como por exemplo, as sementes terem uma mesma característica entre si (sejam homogêneas) e que o plantio sucessivo não as modifique, é.
Ocorre que os agricultores aprimoram as sementes mudando os modos do plantio ano a ano, de modo que vão fazendo ajustes conforme o clima, o tipo de solo, etc.; a flexibilidade e a não homogeneidade são uma característica das sementes crioulas. Com a dita “revolução verde”, na década de 1960, o conhecimento do agricultor sobre estas sementes torna-se cada vez mais obsoleto, embora até hoje estas sejam, justamente, as sementes que mais se adaptam a climas extremos, exatamente por sua adaptabilidade. As sementes cultivares acabam sendo selecionadas para uma cadeia industrial, de acordo com o tamanho do pé (da planta), que se adaptam a determinado maquinário, para a colheitadeira conseguir colher e o trator semear.
A seleção tem muito mais a ver com a necessidade da indústria do que com os gostos alimentares e nutricionais da população. Isso vem acontecendo desde a década de 1960. Então, quando antes existia uma variedade de milhos, adaptada para diferentes culturas, solos, climas, gostos, hoje o que se tem são cinco ou seis variedades de milho e monocultivos para produzir commodities para exportação, de acordo com os interesses da industrialização da agricultura.
Isso se aplica à nova onda da digitalização da agricultura 4.0 no campo. O drone, o sensor agrícola captam um determinado tipo de qualidade de imagem, mas apenas de monocultivos. São áreas com grandes extensões e pouca variedade, o que permite ao algoritmo “rodar” e predizer, de acordo com um determinado tipo de solo e um tipo de clima, como aquela variedade específica pode ir bem. O receituário agrícola é gerado a partir de uma monocultura e com uma menor variabilidade de cultivos.
Dificilmente vamos ver um aplicativo agrícola destas grandes empresas da agricultura serem usados na agroecologia, olhando para um sistema de produção completamente biodiverso, com mais de uma variedade, com mais de uma espécie, com árvore misturada com arbusto, com plantio de café juntamente com uma árvore nativa, etc. Essa ecologia da biodiversidade não roda muito bem com essas tecnologias das big techs, pois o software e seu algoritmo são voltados para determinadas sementes, com determinados agrotóxicos. O que é, cada vez mais, uma programação de obsolescência do conhecimento em prol da propriedade sobre estas tecnologias e, com isso, uma oligopolização vertical da cadeia agroalimentar por poucas corporações agrícolas e da tecnologia.
Isso acaba sendo um indutor de monocultivos. O receituário agrícola vai sempre receitar, associado com o microcrédito, poucas sementes, que estão associadas com fertilizantes e com agrotóxicos com propriedade intelectual dessas corporações. E mais a propriedade intelectual dos dados ou da tecnologia dos dados de nuvem ou softwares criados pelas empresas de tecnologia. Isso leva a um empobrecimento, a uma erosão genética e da biodiversidade a campo.
IHU – Quais os desafios para conscientizar os produtores rurais sobre a necessidade de se preocuparem com a captura de dados que geram em suas propriedades, complexificando a ideia de que ‘a tecnologia veio para facilitar a vida no campo’?
Larissa Packer – Os pequenos agricultores recebem um software muitas vezes gratuito e se eles querem algum componente a mais, pagam uma taxa para ter acesso. Mas para isso, eles precisam disponibilizar informações para a empresa ter acesso aos dados deles. Quem conhece a informação tem o grande ouro da economia de dados. O dado é a principal moeda que temos hoje em dia. Quem tem a captura e o processamento do dado vai conseguir se posicionar melhor e hegemonizar as cadeias de valor.
Para onde o dado está indo, qual é a política depois que esses dados são capturados no ecossistema? É uma questão a ser feita, porque não se trata de dados somente do agricultor, mas relativos ao tipo de solo, onde tem água, onde tem minérios, ou seja, dados de recursos naturais. É uma geopolítica de recursos naturais que acabam indo para essa estrutura digital, armazenados sabe-se lá onde e quais acordos de compartilhamento e negócios que vão ser feitos a partir dessas informações.
Convênios de saúde vão fornecer informações sobre a saúde do cliente, como a pressão sanguínea. Veremos a mesma coisa com os dados que teremos a campo, com o fornecimento de informações sobre o agricultor, a quantidade de água, o que tem no subsolo e o clima. A previsão de uma geada ou de problemas com o solo ou a desertificação, por exemplo, são crises ligadas ao meio ambiente e vão estar dentro de variáveis construídas pelos algoritmos e nas mãos desses poucos atores, que poderão especular sobre os preços, a quantidade e a qualidade dos alimentos, impondo o preço para o agricultor.
Então, realmente, a política de captura, processamento e compartilhamento de dados do que vem a campo é extremamente importante e quem detiver isso detém o controle e se posiciona muito bem dentro da cadeia agroalimentar, em detrimento da soberania alimentar. O alimento cada vez mais é tratado como mercadoria, como commodity, flutuando o seu preço de acordo com o manejo da crise e o manejo dos dados, informações sobre a crise, e assim o mercado especulativo pode governar. Isso é extremamente perigoso para a soberania dos povos e para a soberania alimentar.
IHU – Diante de todo esse cenário, como encarar essas transformações, sem esquecer da segurança de dados, alimento de qualidade, preservação ambiental e valorização do trabalho do agricultor?
Larissa Packer – Temos que tomar consciência de que as nossas vidas e nossos espaços de reunião particular estão cada vez mais sendo governados a partir de estruturas e soluções tecnológicas proprietárias. São pouquíssimas as empresas de big techs que oferecem serviço com um baixo controle pelos Estados nacionais. Ocorreram em vários países iniciativas de construção de todo o processo de informatização dentro da burocracia do Estado, desde o setor da polícia até a informatização dos ministérios, do sistema administrativo, do sistema de justiça, do executivo, do legislativo, a partir de software livre. Mas cada vez mais vemos contratos e memorandos sendo assinados com a Microsoft, para prover tecnologia de reconhecimento de face para a polícia, câmeras, processamento de dados, infraestrutura para armazenamento das informações. Isso está acontecendo no mundo todo. Isso não deveria acontecer.
É importante olhar esses contratos e observar a tecnologia como algo que realmente não pode ser hegemonizado por poucas empresas e corporações no mundo. Os Estados têm de pensar soluções não proprietárias e colocar a soberania nacional e a regulamentação sobre a infraestrutura digital e dos dados dos indivíduos.
Então, qualquer iniciativa dos pequenos agricultores teria de passar, necessariamente, por também promover soluções não proprietárias, promover a troca de informações e estruturas coletivas, e não em benefício de uma única empresa. O Movimento dos Pequenos Agricultores - MPA começou a atuar a partir do WhatsApp, colocando consumidores vinculados aos produtores. O MPA faz essa busca através da logística dos alimentos na região metropolitana do Rio de Janeiro, armazena isso numa estrutura e os alimentos são distribuídos a partir das feiras livres e, em função da pandemia, a partir dos “cestantes”, que pedem as cestas numa plataforma digital, num site construído por eles, e os pagamentos são feitos pelo banco.
Cada vez mais o MPA está tomando cuidado com essa infraestrutura digital, migrou para um tipo de plataforma que não é o WhatsApp e está construindo um site próprio, para que se façam os pedidos das cestas e a comercialização dos alimentos. Então existem, sim, iniciativas “farm hack”, que é uma comunidade de agricultores e agricultoras que compartilham informações agrícolas de forma gratuita pela internet.
Empresas de tecnologia também estão associadas a construções coletivas como essa. Temos que evitar essa programação da obsolescência das tecnologias, da sabedoria, porque, cada vez mais, pequenas esferas da nossa vida, desde a hora em que nos levantamos, comemos, compramos até irmos dormir, são transformadas em dados que são coletados de forma massiva em benefício do lucro de poucas corporações. Precisamos falar mais de software livre e infraestruturas de tecnologia popular.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Larissa Packer –Tem um relatório que fala da digitalização da terra e dos recursos naturais em si. Isso é muito forte na Colômbia, no Brasil, no Paraguai, na Bolívia, mas, mais recentemente na Colômbia. Trata-se de um processo muito grande de digitalização das informações de localização e tamanho das terras e uma substituição dos requisitos legais para a regularização fundiária a partir das informações coletadas nesses cadastros digitais. Então, é uma tentativa de retirar os entraves burocráticos e acelerar a regularização fundiária a partir das informações digitalizadas dos cadastros dos imóveis. Aí entra toda a discussão sobre o Cadastro Ambiental Rural no Brasil, que também está acontecendo em outros locais, de fazer regularização fundiária em terras públicas, terras indígenas, unidades de conservação, principalmente para a financeirização. Ou seja, acaba-se introduzindo títulos de terras, que não podem ser alienadas ou vendidas, no mercado de terras. Esses títulos estão sendo emitidos cada vez mais para permitir que as empresas do agronegócio acessem financiamentos. Mas, para isso, é preciso da regularização da propriedade privada, para que ela sirva dentro do mercado de terras e como garantia de dívida. Então, está rolando essa disputa entre a terra pública e a privada, com a digitalização das terras.
Temos um crônico déficit de regularização de terras no Brasil e não sabemos que terras são públicas, privadas ou devolutas. Além disso, há muita grilagem, gerando dois fenômenos. Um, que tenta vincular esse cadastro digitalizado que parte dos requisitos de precisão do GPS, ao invés de verificar se a propriedade vem de um ciclo de violência, fraude, expulsão de comunidades, ou seja, de uma aquisição fraudulenta da terra. É preciso verificar isso e se se cumpre com a função social da propriedade, para daí fazer uma regularização da terra pública como privada. Mas acaba-se substituindo os critérios da posse mansa e pacífica e da função socioambiental da terra pelo critério da precisão do GPS. Estando aquela área rural inscrita no cadastro digital, isso seria o novo fundamento para a aplicação de direitos de propriedade sobre a terra. Em alguns países, como na Argentina, isso tem que ser verificado no cartório, para se emitir o certificado de propriedade. No Brasil, o CAR não tem nada a ver com o direito de propriedade, mas está cada vez mais sendo usado para reintegração de posse. É um cadastro para fins de política ambiental, mas vem sendo utilizado para fins fundiários.
Agora com o novo decreto de 2020, que regulariza a lei 13.465, acaba se colocando os dados do CAR como um dos requisitos para regularização fundiária de terra pública. Há um cadastro autodeclaratório com informações prestadas sobre o tamanho e a localização pelo “proprietário” da terra. Muitos estados apontam que levariam mais de 100 anos, com os recursos humanos de que dispõem, para verificar a validade das declarações. O resultado é que isso acaba autorizando o acesso dessas pessoas a financiamentos agrícolas, políticas públicas e também o fato de que pode ser tornar um fundamento jurídico para acessar direitos sobre as terras públicas, que é o que está acontecendo agora e que o PL da grilagem está tentando consolidar. Isso não é somente no Brasil, mas nas principais áreas de expansão e investimento das corporações que organizam o agronegócio. Isso ocorre na região dos llanos bolivianos, na altillanura, na orinoquia colombiana com o cadastro multipropósito, em que mais de 100 milhões de dólares do Banco Mundial foram colocados ali para fazer um cadastro para várias finalidades, desde catálogo de recursos naturais para serviços ambientais voltados à emissão de créditos de carbono, até questões concernentes ao direito de propriedade, embora estejam bem nebulosas as razões para esta digitalização. Isso também inclui os bosques secos chiquitanos, onde está Santa Cruz de la Sierra, como monocultivo de soja e áreas dedicadas à exportação, onde opera a Cargil no porto, e também no chaco seco, tanto paraguaio quanto argentino, fazendo a ponte com a hidrovia Paraná-Paraguai que vai desembocar na Argentina, com as principais traders do agronegócio operando ali. Nessas áreas, além do Serrado brasileiro – que conta com os editais de cooperação internacional para fazer o Cadastro Ambiental Rural individual, ou seja, de pequenos, médios ou grandes –, conta com editais do Banco Mundial, Banco de Infraestrutura e Desenvolvimento - BIRD, KFW e vários outros para fazer o cadastramento, inclusive de áreas coletivas, de povos tradicionais, unidades de conservação, terras indígenas, etc. Há uma disputa fundiária digital para saber o que é público e o que é privado com cadastros tentando integrar cada vez mais terras para a propriedade privada, com vistas a “liberar” para o mercado de terras considerado como ativo financeiro (como garantia de dívidas). É um outro aspecto da digitalização que valeria a pena mencionar.