Yudith Rosenbaum faz uma leitura crítica a partir da psicanálise da literatura clariciana e mostra como seus textos nos convidam a pensar em nós mesmos como outros
Ver-se sem se reconhecer. Este é, no fundo, o convite íntimo da literatura de Clarice Lispector que nos desafia a ver no mundo suas (e nossas) cicatrizes profundas. “Clarice é para mim uma pessoa indignada, revoltada, perplexa, irada e espantada com o mundo a sua volta. Tendo as palavras como arma, ela investe contra as injustiças, as desigualdades e os preconceitos, desmontando falsas acomodações que nos afastam da vida plena”, descreve a professora e pesquisadora Yudith Rosenbaum, em entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
“Clarice nos coloca diante do fato de que somos seres desamparados, frágeis, carentes. Clarice olha o humano em toda a sua multiplicidade, incluindo nela o que nem é propriamente humano, uma dimensão animal e inumana”, explica a entrevistada. “Na obra de Clarice, o outro pode ser uma pessoa, um animal, uma coisa material, um alimento. Como ‘outro’, cada ser se mostra como diferença em relação ao eu, mas também como um espelho, um duplo que traz identificações muitas vezes ameaçadoras”, complementa.
A entrevista a seguir foi publicada originalmente na Revista IHU On-Line Nº. 547, intitulada Clarice Lispector. Uma literatura encravada na mística, publicada no início do mês na página eletrônica do Instituto Humanitas Unisinos - IHU. Outras entrevistas da edição estão disponíveis aqui.
Sobre as crônicas de Clarice, o Instituto Humanitas Unisinos - IHU está promovendo o Curso Livre - Clarice Lispector. Todas as crônicas, em parceria com Prof. Dr. Faustino Teixeira – PPCIR/UFJR e o Canal Paz e Bem no YouTube. O curso é aberto para todos os públicos com encontros semanais, entre abril e julho de 2021. Os encontros virtuais acontecem nas quartas-feiras das 14h às 16h. O próximo encontro será no dia 28-04-2021. As etapas do curso já realizadas podem ser vistas aqui.
Yudith Rosenbaum (Foto: Arquivo Pessoal)
Yudith Rosenbaum é graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, mestra e doutora em Letras (Teoria Literária e Literatura Comparada) pela Universidade de São Paulo - USP, onde leciona na área de literatura brasileira. Trabalhou como psicóloga educacional durante quinze anos e atendeu por dez anos em clínica psicanalítica. Atua na interface da Literatura com a Psicanálise, especializando-se em autores do século XX, como Manuel Bandeira, Clarice Lispector e Guimarães Rosa.
IHU On-Line – Quem é, para você, Clarice Lispector?
Yudith Rosenbaum – Vejo Clarice Lispector como uma personalidade literária intensa, tomada por questionamentos que não lhe dão trégua e aos quais busca um escoadouro pela escrita. O amigo e psicanalista Hélio Pellegrino a caracterizou, certa vez, como uma “personalidade lisérgica”, cuja sensibilidade era mobilizada de forma máxima pelos estímulos da vida. Sinto-a como uma estrangeira na terra, não por ser ucraniana, já que chegou muito pequena ao Brasil e se considerava brasileira, mas por olhar o mundo como se o visse pela primeira vez. Como Manuel Bandeira, como Guimarães Rosa. Este é o olhar poético por excelência, que surpreende o novo e desconhecido em meio ao prosaico cotidiano, revelando o inusitado nas coisas mais banais. Todo artista, de certa forma, trabalha uma língua estrangeira dentro da língua na qual escreve, como diz Deleuze. Clarice torna as palavras únicas, fora do seu uso utilitário comum e por isso sua prosa é poética. Além disso tudo, Clarice é para mim uma pessoa indignada, revoltada, perplexa, irada e espantada com o mundo a sua volta. Tendo as palavras como arma, ela investe contra as injustiças, as desigualdades e os preconceitos, desmontando falsas acomodações que nos afastam da vida plena.
IHU On-Line – Como se imbricam literatura e psicanálise na obra de Clarice Lispector?
Yudith Rosenbaum – Há muitas ressonâncias da psicanálise na literatura de Clarice. Sempre lembro do ensaio de Freud, O mal-estar na cultura (1930), em que se mostra como o sujeito humano é constrangido pelas leis e limites do princípio da realidade, pelos processos de castração e de recalque, o que o leva a se constituir, na melhor das hipóteses, como um sujeito da neurose em sua forma adaptativa. Resta desse impasse entre descarga pulsional e realidade impositiva, o tal mal-estar de uma subjetividade que sofre pelo prazer que não pode obter em sua plenitude. Somos seres da renúncia para que se faça a passagem da barbárie à civilização. As personagens claricianas lidam com a necessidade de formatações sociais e morais, necessárias para a sociabilidade, para o reconhecimento de lugares esperados pelas instituições do matrimônio e da família, por exemplo. O jogo entre o material recalcado e silenciado, de um lado, e o desejo de libertação dos entraves culturais e subjetivos, de outro, é uma linha de força poderosa na obra. Outro traço da interface da psicanálise com a literatura nos textos de Clarice seria, no viés lacaniano, a potência do Real indizível como um assombro que atravessa o percurso das personagens em sua vida tomada pelo Imaginário e suas ilusões compensatórias. Desconstruir as imagens egoicas limitadas e parciais (mas tomadas como a Verdade total) ocupa enorme espaço na literatura de Clarice. Vide G.H., por exemplo, ou Ana do conto “Amor”.
IHU On-Line – Em que medida a obra de Clarice pode ser um caminho para incursão em nosso mundo interior? E como pode inspirar o processo de autoconhecimento?
Yudith Rosenbaum – Em continuidade com a resposta anterior, entendo que a trajetória das personagens – que se deparam com instantes em que a vida inteira é colocada em xeque, ou com situações em que as habituações são desmontadas por pequenos relances, causando transformações intensas – leva os leitores a se reverem e questionarem suas formas de vida, repensarem seu processo de subjetivação, de escolhas, de recusas e de submissões. Perder as ilusões (pois Clarice é implacável com nossas racionalizações!) e olhar a vida de um modo desarmado é muito inspirador e pode levar ao autoconhecimento. Isso porque a autora nos desnuda, faz com que olhemos o que nem sempre queremos reconhecer que faz parte de nós mesmos. Clarice põe em cena nossa sombra (diriam os junguianos), feita de tudo que rejeitamos nos outros.
Há enredos que revelam nossa agressividade, crueldade e perversidade (como “A menor mulher do mundo”), outros, a força da inveja (Felicidade clandestina e A legião estrangeira), outros ainda que tratam a surda destrutividade no casamento a partir de um pacto de superficialidade e de obediência (“Os obedientes”). Não é fácil ler Clarice. O espelho que ela nos dá nem sempre é o de Narciso e na maior parte das vezes é deformante. Mas também há muita positividade na obra, uma aposta na vida “apesar de”. Clarice nos empurra para o âmago do mundo, quer nos despertar de um sono anestesiado que nos impede de ver as coisas em sua nudez e crueza. E mesmo que não seja possível perder a “alma diária” e ouvir a música inaudível do mundo por muito tempo, qualquer instante de revelação vale uma vida.
IHU On-Line – De que forma a dimensão humana emerge na literatura clariciana?
Yudith Rosenbaum – A dimensão humana é um termo vasto e pode incluir muita coisa... Pelo que percebo da obra, Clarice nos coloca diante do fato de que somos seres desamparados, frágeis, carentes. E por esta razão (com a qual a psicanálise corrobora inteiramente), temos que lidar com o trágico da existência, sem garantias e sem certezas. O homem psicanalítico é o homem trágico, que perdeu os ideais que o conduziam no coletivo e precisa arcar com a sua condição humana solitária. Creio ser desta ordem a dimensão humana clariciana, ou seja, ela pertence à linhagem dos autores que revelam o homem cindido, conflituado e não coerente consigo mesmo (como seria o sujeito cartesiano, centrado na razão). Assim também são Machado de Assis, Mário de Andrade, Guimarães Rosa. Ou Kafka, Pirandello e Virginia Woolf. Mas Machado e Kafka são mais céticos, acho eu. Clarice olha o humano em toda a sua multiplicidade, incluindo nela o que nem é propriamente humano, uma dimensão animal e inumana...
Clarice quer chegar nesse núcleo indevassável da matéria, onde tudo começa e termina, para depois recomeçar. A dimensão existencial em Clarice abarca todas as manifestações do ser – bicho, gente, planta, coisas... Ela olha o mundo e percebe como tudo está inter-relacionado, interdependente. A filosofia merleau-pontyana poderia ajudar a elucidar essa forma de entender que todos somos da mesma matéria do mundo e, portanto, podemos sentir o outro como parte de nós mesmos ao invés de nos afastar do que não é espelho. Somos parte da carne do mundo e Clarice sabia disso.
IHU On-Line – Como o bem e o mal são tratados na obra de Clarice Lispector?
Yudith Rosenbaum – O mal e o bem na obra de Clarice podem intercambiar lugares, ou seja, ninguém está isento de ocupar um dos lados da polaridade. Bastam certas condições propícias ou pressões extremas (assim mostra Hannah Arendt quando expõe a “banalidade do mal” em seu livro Eichmann em Jerusalém). Mas certas atitudes, que moralmente consideramos como más, surgem em Clarice como afirmações de modos de ser transgressores a certos padrões construídos e eternizados. Joana, de Perto do coração selvagem, é um feminino de exceção e sua recusa a cumprir o que dela se espera nos papéis de mãe e esposa pode ser um ato mau ou, ao contrário, um gesto em que o Bem se coloca acima do sistema. Ela é uma artista em formação e para isso precisa experimentar a vida fora dos laços que a amarram. E quando G.H. atravessa tabus no confronto com o imundo da barata, também parece subverter a moral do bem e do mal.
Ela quer o insosso, o neutro, o que não pertence ao binarismo certo/errado. Mas, antes que relativizemos tudo, Clarice não é ingênua de acreditar na ausência do mal. Thânatos, as pulsões de morte que a psicanálise teorizou, são um território presente na obra e podem conter também (mas não só) a agressividade pura, aquela que não é apenas uma reação de medo, por exemplo. Os policiais que matam com 13 tiros o bandido Mineirinho, em crônica famosa de 1964, são vistos pela autora como agentes do mal porque “uma bala bastava. O resto era vontade de matar”, diz ela na entrevista a Júlio Lerner na TV Cultura em 1977.
O texto da escritora quer falar deste “resto”, que a psicanálise entenderia como gozo com a morte de um ser indefeso. O psiquiatra e psicanalista Mário Eduardo Costa Pereira analisou muito bem essa crônica a partir deste viés. O outro é feito objeto do meu feroz desejo de aniquilação. Todos somos maus e todos somos bons. O sentido ético da vida nem sempre se coloca para um sujeito que abraça suas pulsões sem mediações simbólicas. O que diria Clarice de nossos tempos atuais em que se abriu a caixa de Pandora e vivemos um “salve-se quem puder”? No entanto, como eu disse acima, há o Bem que pode ser cultivado comunitariamente, como se lê no belo texto “A repartição dos pães”, no qual a generosidade, a solidariedade, a graça de compartilhar pelo puro gesto amoroso geram um estado sagrado entre seres que se desconhecem mas se encontram na dádiva da partilha desinteressada.
IHU On-Line – Como existir diante de um Outro? Seria esse o maior mistério da vida?
Yudith Rosenbaum – É importante registrar que o lugar do outro na obra de Clarice é central, já que o eu só pode ser um eu diante de um outro que o reconhece como tal. O eu se reflete e se embate com o outro para que exista como um eu. No início da nossa existência, não há um eu autônomo e sim uma indiscriminação entre dentro e fora, entre eu e o outro. O bebê toma o seio como o ser total no qual ele está fundido. O processo de diferenciação lento e gradual permite que se constitua um sujeito, entre identificações e estranhamentos, projeções e expulsões do que é sentido como ruim para o bebê e introjeções do que é vivido como bom e agradável. Melanie Klein teorizou sobre a constituição do que chamou de “objetos internos”, que buscariam organizar o caos e a angústia do bebê diante do que o ameaça intrassubjetivamente (a fome, o frio, dores etc.) e também do mundo externo. O que está fora do sujeito e se torna um outro para ele acaba recebendo a carga emocional e afetiva de muitos “objetos internos”. A mãe interna pode não corresponder à mãe externa etc. Portanto, o outro como alteridade ao eu é a resultante de um longo caminho de encontros e desencontros entre o ser humano (que nasce sempre prematuro e desaparelhado) e o mundo que o recebe. Klein mostra como as fantasias participam desse processo de constituição de objetos e os tantos outros – pais, irmãos, amigos, professores etc. – são objetos atravessados pelos nossos desejos amorosos e/ou raivosos, fantasias de incorporação e/ou destruição.
Na obra de Clarice, o outro pode ser uma pessoa, um animal, uma coisa material, um alimento (vide a importância do ovo no conto “O ovo e a galinha” ou no conto “Uma galinha”.) Como “outro”, cada ser se mostra como diferença em relação ao eu, mas também como um espelho, um duplo que traz identificações muitas vezes ameaçadoras. A figura da barata, por exemplo, a princípio uma alteridade radical à espécie humana, porta algo que enoja e atrai, ao mesmo tempo, a protagonista G.H. O inseto repugnante acaba condensando simbolicamente o que foi expulso da consciência como indesejável e o primeiro gesto de G.H. (tão natural e comum) é esmagar a barata na porta do armário. É preciso destruir no ser abjeto a primitividade negada e o selvagem recalcado, projetados para fora de G.H. para que ela se livre de suas impurezas. Todos nós, pequenos narcisos, fazemos isso para nos proteger. Como também a narradora de “A quinta história”, do livro A legião estrangeira (1964). Os dois textos precisam ser lidos juntos, pois se a dona de casa do conto não suporta se ver impura e quer matar “todas as baratas que existem” (elas seriam nosso desassossego), G.H., por outro lado, enfrenta o duelo com o outro e termina por incorporar o inumano da barata como matéria viva do humano. Em ato ritualístico e transgressor, comunga com a massa branca, esse componente ancestral do qual o ser humano se afastou para ser pessoa cultural.
Portanto, há uma familiaridade incômoda neste ser tão avesso à nossa humanidade, mas que também é parte dela. Não é isso que Freud nos ensina no ensaio O infamiliar (Das unheimliche), de 1919? O outro em Clarice é a aparição, entre nojo e fascínio, do nosso estranho familiar, do que no passado já nos foi conhecido e tornou-se estranho em função do recalque. Ele é “tudo o que deveria ter ficado oculto, mas vem à tona”, frase de Schelling citado por Freud em seu ensaio. Galinhas, búfalos, ovos, cachorros, rosas, livros, pintinho e tantos outros espalham-se na obra de Clarice trazendo de volta o que foi esquecido no inconsciente e precisa ser reassimilado. A estranheza com que reagem as personagens de Clarice diante desses múltiplos outros as leva à transformação de si mesmas.
O eu e o outro não se excluem para a nossa escritora, posto que são partes do mesmo e precisam ser vividos em sua radicalidade e respeitados em sua singularidade. É o caso do conto A bela e a fera ou a ferida grande demais, em que uma burguesa encontra na calçada um mendigo com uma ferida na perna. Após uma difícil conversa entre eles, ela percebe que a ferida do pobre atualiza as feridas internas que ela não consegue cicatrizar em si mesma. Eu e outro novamente se afastam e se aproximam. O que sou para o outro? Como me vê? Como eu o vejo? Como podemos ser diferentes sendo semelhantes?
Nada resume melhor essa complexa dinâmica do que o pequeno trecho intitulado “A experiência maior”, publicado em A descoberta do mundo, de 1984, livro póstumo que reúne as crônicas do Jornal do Brasil (1967-1973):
“Eu antes tinha querido ser os outros para conhecer o que não era eu. Entendi então que eu já tinha sido os outros e isso era fácil. Minha experiência maior era ser o âmago dos outros: e o âmago dos outros era eu” (6/11/1971).