A história revela: desenvolvimento econômico ocorre quando o padrão de vida da população aumenta. Entrevista especial com Thales Zamberlan Pereira

Para o pesquisador, as marcas da escravidão no Brasil, mesmo passados mais de 130 anos da abolição, ainda podem ser vistas e isto tem impacto direto na desigualdade e na dificuldade do país em se desenvolver economicamente

Foto: Acervo Senac

Por: João Vitor Santos | Edição: Ricardo Machado | 17 Fevereiro 2021

A história da escravidão no Brasil tem suas peculiaridades que colocam o país no topo do ranking das últimas nações a acabarem com o regime escravocrata no mundo. E saber quais foram as escolhas no modelo agrícola da plantation é essencial, também, para compreender por que nestes tristes trópicos a escravidão se manteve por séculos. “A cana-de-açúcar foi o produto que tornou o trabalho escravo no Brasil lucrativo. A produção de açúcar, por necessitar de mais mão de obra que outras commodities como o tabaco, algodão e café, claramente estimulou o aumento do tráfico para o Brasil”, explica o professor e pesquisador Thales Zamberlan Pereira, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

 

Os impactos nocivos desta exploração contínua ultrapassam as questões civilizatórias de colocar pessoas sob condições desumanas e seus efeitos alcançam o próprio desenvolvimento do Brasil. “A escravidão limitou o desenvolvimento de um mercado de trabalho livre no Brasil. Escravos trabalharam em indústrias no Brasil, mas não existe evidência de sociedades que conseguiram expandir o setor industrial sem um mercado de trabalho livre. O que a nossa pesquisa indica é que fatores normalmente apontados como positivos para a industrialização, como capital humano, só foram importantes para o surgimento de fábricas após o fim da escravidão”, descreve o entrevistado.

 

O efeito negativo, hoje ainda, é transoceânico. “As marcas da escravidão estão presentes em todas as regiões que participaram desse sistema deplorável. Está nas regiões africanas que participaram do tráfico. Pesquisas mostram que, atualmente, regiões onde ocorreu a captura de escravos para o tráfico transatlântico possuem menor nível de confiança interpessoal. Não ter confiança em concidadãos, claramente, é negativo para o desenvolvimento econômico. A marca da escravidão também está presente nos países que inicialmente intermediaram o tráfico”, frisa Pereira.

 

Além disso, o pesquisador chama atenção para o foco nas pessoas, no investimento humano. “Ampliar a potencialidade das pessoas através da educação é um caminho mais provável para o desenvolvimento econômico. Claro que não é o único, desenvolvimento é algo complexo e não existe uma fórmula para que ocorra. No entanto, se os recursos são escassos, a literatura sugere que investir nas pessoas é mais vantajoso que repassar dinheiro para o dono da fábrica”, pontua.

Thales Pereira (Foto: Arquivo pessoal)

Thales Zamberlan Pereira é graduado em economia pela Universidade Federal de Santa Maria, com mestrado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e doutorado na Universidade de São Paulo - USP, ambas formações também em economia. Atualmente é professor da Escola de Economia de São Paulo EESP-FGV, Visiting Fellow do Institute of Latin American Studies, University of London, Visiting Graduate Researcher na Universidade da Califórnia, Los Angeles - UCLA e Visiting Scholar (Newton Fund - British Academy) da London School of Economics – LSE. Juntamente com Nuno Palma, Andrea Papadia e Leonardo Weller, é autor do artigo Slavery and development in nineteenth century Brazil.

 

A entrevista concedida ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU foi originalmente publicada no dia 29-01-2021.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Qual o papel da escravidão no desenvolvimento econômico de longo prazo no mundo? Que relações podemos estabelecer entre a escravidão e o surgimento e desenvolvimento do capitalismo?

Thales Zamberlan Pereira – A escravidão esteve presente em diversas sociedades ao longo do tempo, no entanto, o debate sobre o papel da escravidão no desenvolvimento econômico refere-se ao período da primeira Revolução Industrial (aproximadamente 1780-1820). Esse debate começa com o trabalho de Eric Williams no início da década de 1940 (apesar de ter sido discutido anteriormente). Williams argumenta que o sistema mercantilista dos séculos 17 e 18, que era caracterizado por monopólios e pelo uso da escravidão, ajudou no surgimento do “capitalismo industrial”. O desenvolvimento econômico da Inglaterra, portanto, dependeu da expansão dos mercados coloniais nas Américas e do trabalho escravo.

 

 

Essa visão foi contestada posteriormente com estudos que mostravam que o comércio de escravos representava uma fração pequena da renda total da Inglaterra e, portanto, não poderia ser algo essencial para o surgimento da Revolução Industrial. Por ser um debate amplo, recomendo aos interessados o livro da Barbara Solow, Slavery and the Rise of the Atlantic System (Solow bridge University Press, 1991), e o livro do Kenneth Morgan, Slavery, Atlantic Trade and the British Economy, 1660–1800 (Cambridge University Press, 2001). Esse último possui um excelente resumo do debate. Esse debate, contudo, não terminou e estudos quantitativos como o de Ellora Derenoncourt (Atlantic slavery's impact on European and British economic development [Harward University, 2008]) mostram que cidades europeias ligadas ao tráfico transatlântico cresceram mais que a média durante o período que antecede a Revolução Industrial.

É importante salientar que o nosso estudo sobre o papel da escravidão no Brasil (Slavery and Development in Nineteenth Century Brazil, que será publicado na revista Capitalism: a journal of history and economics) não está ligado diretamente ao debate do Williams. O nosso objetivo é ver como a escravidão impactou o desenvolvimento industrial em um país periférico no final do século 19. O fato de apresentarmos algumas evidências que a escravidão foi negativa para a industrialização brasileira não invalida a hipótese levantada por Williams.

 

 

 

IHU On-Line – A produção de monocultura baseada em trabalho escravo foi desenvolvida em diversos lugares do mundo desde o período das grandes navegações e conquistas no século XVI. Quais foram as particularidades do Brasil com relação a esse modo de produção?

Thales Zamberlan Pereira – As particularidades do Brasil não foram no uso de escravos na produção de commodities, mas na presença e atuação dos escravos nas outras esferas da sociedade. Diferente de outras regiões escravocratas nas Américas, como o sul dos Estados Unidos e o Caribe, no Brasil existia uma grande quantidade de escravos que participavam em uma série de atividades que não se encaixam na visão tradicional da monocultura.

Nas cidades, durante o início do século 19, muitos escravos trabalhavam como vendedores de alimentos e outros bens e eram relativamente independentes dos seus “senhores”. Existe evidência de escravos que eram donos de “tendas” (pequenos comércios), escravos proprietários de outros escravos e até mesmo escravos capitães de barcos que faziam comércio de cabotagem. De forma surpreendente, esses escravos eram capitães em barcos com trabalhadores brancos e livres. Claro que escravos em posições de poder não era a norma, mas a sua existência mostra como a escravidão era um sistema disseminado na sociedade brasileira.

 

 

IHU On-Line – Quando e como se institucionaliza o trabalho escravo como um modelo de produção no Brasil? Qual o percentual de escravizados africanos que chegam ao Brasil entre os séculos XVI e XIX e como esse contingente impacta o modelo de produção?

Thales Zamberlan Pereira – A institucionalização do trabalho escravo ocorre no período do crescimento da produção de açúcar no Brasil, entre o final do século 16 e primeira metade do século 17. Existe evidência mostrando que na década de 1630, quando o Brasil era o maior produtor e exportador de açúcar do mundo, o trabalho escravo já era dominante no Brasil. A partir desse momento, o tráfico de escravos no Brasil cresceu até a década de 1820, quando o transporte forçado de pessoas caiu no Nordeste e se concentrou no Sudeste. Se pegarmos o período de 1550 até o fim do tráfico de escravos no Brasil, em 1850, o Brasil recebeu 36% do total de escravos que saíram de portos no continente africano.

 

 

IHU On-Line – O senhor estuda o trabalho escravo na produção de algodão, mas antes os escravizados já atuavam nas lavouras de cana-de-açúcar e, mais tarde, nos engenhos de beneficiamento. Como analisa esse período?

Thales Zamberlan Pereira – A cana-de-açúcar foi o produto que tornou o trabalho escravo no Brasil lucrativo. A produção de açúcar, por necessitar de mais mão de obra que outras commodities como o tabaco, algodão e café, claramente estimulou o aumento do tráfico para o Brasil. O motivo para essa diferença ocorre porque a cana-de-açúcar precisa ser processada em um curto período após o seu corte, ela não pode ser armazenada como as outras commodities.

 

 

Como esse processamento exige algum maquinário, a produção de açúcar sempre demandou mais investimento do que as outras commodities citadas. No entanto, é importante ressaltar que a existência de maquinário no setor agrícola não implica que ocorreu um processo de industrialização no país. Sempre existiram máquinas na produção agrícola. Industrialização é um termo que remete ao que chamamos de era moderna, que começa no final do século 18 (ou com o fim das guerras napoleônicas, em 1815).

 

 

IHU On-Line – Voltando ao Brasil do algodão, como analisa esse período de extensa produção e exportação dessa matéria-prima que, segundo alguns, alimentou a indústria inglesa de produção de tecidos. Como o trabalho escravo no Brasil se inseria nessa cadeia?

Thales Zamberlan Pereira – A escravidão não era uma condição necessária para a produção de algodão. Como exemplo, após o fim da escravidão no sul dos Estados Unidos, na década de 1860, o plantio do algodão ocorreu com trabalhadores livres. No mesmo período, apesar da escravidão, o plantio de algodão no Brasil era feito em grande parte por trabalhadores livres. No entanto, durante o início da produção de algodão no Brasil (aproximadamente entre 1760 e 1830) a escravidão era utilizada porque a oferta de trabalhadores era escassa. Em uma região com baixa densidade populacional, como era o caso do Maranhão, a forma mais lucrativa de começar a produção de commodities para exportação era o transporte forçado de trabalhadores.

 

 

IHU On-Line – Seus estudos têm apontado que a escravidão atrapalhou o desenvolvimento industrial do Brasil. Gostaria que recuperasse esses seus argumentos.

Thales Zamberlan Pereira – A escravidão limitou o desenvolvimento de um mercado de trabalho livre no Brasil. Escravos trabalharam em indústrias no Brasil, mas não existe evidência de sociedades que conseguiram expandir o setor industrial sem um mercado de trabalho livre. O que a nossa pesquisa indica é que fatores normalmente apontados como positivos para a industrialização, como capital humano, só foram importantes para o surgimento de fábricas após o fim da escravidão. Esse resultado é coerente com o argumento qualitativo que muitos historiadores fizeram anteriormente, mas nós oferecemos alguma evidência quantitativa para essa hipótese. É claro que o nosso estudo não encerra essa questão, mas o nosso objetivo é contribuir para o debate, não o encerrar.

 

 

IHU On-Line – Algumas províncias do nordeste, que também foram destaque na produção algodoeira, demoraram menos do que outras do sul e sudeste para reconhecer a necessidade do fim do trabalho escravo. O que isso significa?

Thales Zamberlan Pereira – O fim da escravidão ocorreu também pela necessidade decrescente do trabalho escravo em algumas regiões. Quando a escravidão estava presente em todas as partes da sociedade brasileira, o que ocorreu até a primeira metade do século 19, era difícil pensar em abolição. Quem discutia o fim da escravidão nesse período era considerado um revolucionário, alguém inconsequente e potencialmente perigoso. No entanto, com o aumento dos preços dos escravos após o fim do tráfico transatlântico, em 1850, a escravidão diminuiu nas cidades e se concentrou no campo, especialmente os campos de café no Sudeste.

Durante a segunda metade do século 19, a escravidão se tornou algo distante na vida de muitas pessoas, especialmente em algumas regiões no Nordeste. O Ceará, por ser a primeira província a abolir a escravidão, em 1884, é um bom exemplo. Sem um setor agrícola ou industrial que necessitasse grande quantidade de trabalhadores, o uso de escravos se tornou cada vez menos lucrativo ao longo do século 19. Em 1872, o Ceará (junto com o Amazonas) era a província brasileira com o menor percentual de escravos na população total. A não dependência econômica da escravidão ajudou, portanto, na compreensão que esse sistema era bárbaro, contrário a qualquer princípio civilizatório. Não é coincidência que muitos movimentos abolicionistas surgem no Nordeste na segunda metade do século 19.

 

 

IHU On-Line – O que desencadeia o processo de industrialização no Brasil? Como ficam os escravizados bem no começo desse processo? Qual o peso da imigração no desenvolvimento industrial do Brasil? E como ficam os escravizados durante a entrada de mão de obra estrangeira?

Thales Zamberlan Pereira – Existe um longo debate sobre o início do processo de industrialização no Brasil. A visão tradicional argumenta que a industrialização durante o final do século 19 foi resultado da expansão do setor exportador. Essa expansão induziu investimentos em bens de consumo que eram anteriormente importados, como vestuário e alimentos processados. Além desse processo mais conhecido, pesquisas mais recentes indicam que o crescimento das exportações também estimulou a produção nacional de maquinários que eram utilizados no setor agrícola.

Apesar do papel das exportações, especialmente do café, no processo de industrialização, é importante lembrar que diversos países considerados “periféricos” – como Itália, Japão, Suécia e Rússia – começaram a se industrializar durante esse período, então não podemos interpretar a industrialização brasileira apenas como um efeito de encadeamento da produção de café. O aumento do comércio internacional no último quarto do século 19 provavelmente contribuiu para que a produção industrial, que anteriormente era realizada nos países centrais, tenha se espalhado para países com custo de mão de obra mais baixo. Sobre os escravizados, a visão mais comum é que eles foram deixados “de fora” do processo de industrialização porque foram substituídos por imigrantes. Não existe dúvida que o racismo foi um fator importante na diminuição da demanda por trabalhadores negros e que a chegada de estrangeiros facilitou o isolamento de trabalhadores não-brancos.

No entanto, fatores de oferta de trabalho também foram importantes. Olhar apenas para a demanda de trabalhadores ignora o fato que o mercado de trabalho não é um “jogo de soma zero”, ou seja, a oferta de empregos não é fixa. A chegada de imigrantes trouxe uma série de benefícios para o Brasil, incluindo a expansão do mercado de trabalho através da criação de negócios/empresas. A população negra sofreu exclusão no mercado de trabalho também porque foi privada de acesso à educação. Com o crescimento da economia brasileira e a diversificação de atividades, capital humano ficou mais importante, diminuindo as possibilidades de emprego da população negra. Para se ter uma dimensão do problema, o percentual de alfabetização das pessoas pretas no Brasil (no censo, negros são pretos e pardos) era de 20%, enquanto dos brancos era de 52%.

 

 

IHU On-Line – Diversos pesquisadores apontam que a escravidão deixou feridas ainda não cicatrizadas no Brasil. Na economia e nos processos produtivos de hoje também existem essas marcas? Quais são e como superá-las? Como compreender o papel da escravidão no desenvolvimento econômico de longo prazo no Brasil (das plantations à industrialização plena)?

Thales Zamberlan Pereira – As marcas da escravidão estão presentes em todas as regiões que participaram desse sistema deplorável. Está nas regiões africanas que participaram do tráfico. Pesquisas mostram que, atualmente, regiões onde ocorreu a captura de escravos para o tráfico transatlântico possuem menor nível de confiança interpessoal. Não ter confiança em concidadãos, claramente, é negativo para o desenvolvimento econômico. A marca da escravidão também está presente nos países que inicialmente intermediaram o tráfico. O livro de Nicholas Draper (The Price of Emancipation [Cambridge University Press, 2009]) mostra que fortunas foram feitas com a emancipação do tráfico nas colônias britânicas.

 

The Price of Emancipation (Cambridge University Press, 2009) | Imagem de divulgação

 

Por fim, a escravidão deixou marcas nas sociedades que receberam os escravos. O segregacionismo legal dos Estados Unidos até a segunda metade do século 20 é apenas o exemplo mais explícito desse processo. No Brasil, portanto, esse legado negativo claramente está presente. A discriminação no Brasil é explicita, mas se diz velada. Ela ocorre pela ausência histórica de negros em espaços de possibilidades: nas escolas e universidades, e em postos de trabalho mais qualificados. Existem diversos estudos mostrando que pretos recebem menos que brancos mesmo com o mesmo nível educacional e outras características observáveis como idade e sexo.

 

IHU On-Line – No Brasil de hoje, ainda há quem defenda que o desenvolvimento econômico e social só será alcançado com uma reindustrialização. O senhor acredita nisso? Por quê?

Thales Zamberlan Pereira – Desenvolvimento econômico ocorre quando o padrão de vida da população aumenta. Não existe evidência que a existência de indústria em um país seja condição necessária para que isso ocorra. A indústria era importante no passado porque o crescimento da produtividade dos outros setores, como a agricultura, era muito baixo. Isso não é mais verdade. Diversificação econômica é positiva, mas não pode vir ao custo da penalização de outros setores da sociedade. Isso ocorre quando assumimos que o único caminho possível é através da industrialização e, portanto, esse setor deve receber subsídios utilizando recursos extraídos de outros setores. Ampliar a potencialidade das pessoas através da educação é um caminho mais provável para o desenvolvimento econômico. Claro que não é o único, desenvolvimento é algo complexo e não existe uma fórmula para que ocorra. No entanto, se os recursos são escassos, a literatura sugere que investir nas pessoas é mais vantajoso que repassar dinheiro para o dono da fábrica.

 

 

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