Farroupilha, a revolta de uma elite que embranquece os heróis e romantiza as mulheres. Entrevista especial com Carla Menegat

A historiadora convida a um olhar mais complexo, que enxergue além do gaúcho no panteão

Proclamação da República Piratini | tela de Antonio_Parreiras_- 1915

Por: João Vitor Santos | 19 Setembro 2020

20 de Setembro é um dia de festa para quem vive no Rio Grande do Sul, data que lembra uma das mais sangrentas revoltas do período imperial, mas é também o momento de enaltecer a tradição. Mas de que tradição estamos falando? A questão é posta quando nos deparamos com uma abordagem da Farroupilha como faz a professora e historiadora Carla Menegat. Aliás, ela já se coloca no contrafluxo do bairrismo gaúcho quando assume que o fenômeno é uma revolta, e não revolução. “Do ponto de vista da história política em geral, caracterizamos movimentos revolucionários aqueles que propõem uma ruptura no modelo estabelecido. Entre os farroupilhas, claramente não havia um desejo de mudanças grandes na ordem social”, observa, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

 

Carla ainda destaca que não romper com a ordem social consistia em assegurar grandes propriedades de terra a uma elite que ainda apoiava toda a sua produção no trabalho escravo. Como se não bastasse, esses escravizados também foram arrastados para conflitos de uma elite militarizada que buscava assegurar benefícios e posição junto ao poder imperial. Porém, na hora dos louros das guerras, os negros são embranquecidos ou simplesmente apagados. “Ainda no século XIX, embranquecer as imagens dos exércitos era uma forma de tornar mais glorioso o discurso nacional, especialmente no contexto da manutenção da escravidão”, explica.

 

Relação que fica evidente também depois da Farroupilha, pois essa elite não é esfacelada. “Temos a Farroupilha como a única revolta que, mesmo derrotada, não é massacrada”, lembra. Para apreender os dois pesos e duas medidas, a historiadora faz memória da Revolta dos Malês, na Bahia, em que escravizados que organizavam um levante são duramente punidos. “O tratamento na Revolta dos Malês foi exemplar, especialmente porque muitos dos devotos do Islã eram letrados e havia a suspeita de que eles poderiam ter contato com material que os incitasse a fazer algo semelhante ao ocorrido na Revolução Haitiana”, completa. Isso ainda sem citar os Lanceiros Negros da Farroupilha.

 

Por fim, há também as mulheres farroupilhas que vão para o front, lideram a economia da guerra ou tocam as propriedades sem homens, mas que ficam adocicadamente referenciadas como prendas. “A prenda, que é uma figura que surgiu apenas com o tradicionalismo, foi inventada para ser tudo aquilo que a china não foi: educada para entreter, contida no espaço privado, coberta por tecidos que restringem inclusive seu movimento, desprovida de sexualidade”, dispara.

 

Carla Menegat (Foto: arquivo pessoal)

 

Carla Menegat possui graduação, bacharelado e licenciatura, em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, mestrado e doutorado também em História pela mesma instituição. Atualmente é docente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-Rio-Grandense. Seus estudos e pesquisas versam, especialmente, pela História da Bacia do Rio da Prata, com ênfase na História do Rio Grande do Sul, caudilhismo, Revolução Farroupilha, estratégias e fronteiras. Entre as suas publicações, destacamos o livro Fronteiras e Territorialidades: Miradas Sul-Americanas da Amazônia à Patagônia (São Paulo: Intermeios, 2019), em que é uma das organizadoras.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Revolução ou Revolta Farroupilha? Quais dos conceitos é melhor para compreendermos, mesmo que minimamente, a complexidade desse evento?

Carla Menegat – O século XIX foi marcado por mudanças muito grandes, tanto no Brasil como no restante do mundo ibérico. E a noção de revolução estava circulando com muita força nesse período, daí a ser compreensível que esse termo estivesse presente no vocabulário dos farroupilhas. Porém, essa noção também era uma nomeação que tentava dar importância ao movimento.

Do ponto de vista da história política em geral, caracterizamos movimentos revolucionários aqueles que propõem uma ruptura no modelo estabelecido. Entre os farroupilhas, claramente não havia um desejo de mudanças grandes na ordem social. A manutenção da propriedade escrava e da prática produtiva em geral com grandes propriedades não era questionada, ao contrário, a guerra foi feita para proteger esse modelo. E mesmo o republicanismo não era um consenso de todas as lideranças.

Então, seja para evitar homogeneizar os participantes do movimento, seja pelo seu caráter conservador do ponto de vista social, eu prefiro chamar a Farroupilha de Revolta. Mas, também, porque os desdobramentos posteriores ao movimento demonstram que boa parte dessa elite tinha como principal intenção negociar uma posição de maior prestígio dentro do arranjo político do Brasil monárquico.

 

 

IHU On-Line – A senhora trata a Farroupilha como uma Revolta de elite. Por quê? E que elite é essa?

Carla Menegat – A Farroupilha foi debelada por um grupo de importantes cidadãos da província que se reuniam numa loja maçônica, a Philantropia e Liberdade. A maioria desses cidadãos eram deputados na Assembleia Provincial, ocupavam algum cargo militar ou administrativo na Província, ou participavam da rede familiar, de compadrio ou de negócios de alguém que ocupava um destes cargos. Muitos dos líderes farroupilhas eram estancieiros e alguns poucos charqueadores, ou seja, a grande maioria estava diretamente ligada ao principal produto de exportação da província, o charque. Esses são os marcadores que usamos para dizer que os líderes da Farroupilha eram parte da elite da província.

As reivindicações da revolta também eram reivindicações ligadas aos interesses dessa elite e podem ser resumidas muito grosseiramente a dois produtos: sal e carne. Os impostos sobre a importação do primeiro e a exportação do segundo prejudicavam os interesses daqueles que se dedicavam aos negócios ligados à pecuária. Ao mesmo tempo, a posição fronteiriça do Rio Grande do Sul expunha um diferencial dessa elite, que era uma elite militarizada.

E é importante entender esse ponto fugindo da romantização que vai acontecer depois, ao longo do século XX. Essa elite militarizada compreendia as peculiaridades da guerra naquele espaço físico e no contexto das relações do mundo do pampa, algo que as dificuldades em derrotar os farroupilhas evidenciou. Nesse sentido, uma das reivindicações dessa elite, a de que fosse incluída de forma a compor os comandos militares e não apenas como parte das tropas, era uma reivindicação por prestígio, mas também a demonstração de desagrado com um modelo de governo que tinha prejudicado diretamente essa elite com a derrota na Guerra da Cisplatina. Então, para responder à questão de que elite era essa, diria que era uma elite ressentida de que seus interesses não eram vistos como parte da nação.

 

 

IHU On-Line – Recentemente, em conferência, a senhora apontou a Farroupilha como uma revolta que se coloca no extremo oposto da Revolta dos Malês, na Bahia. Gostaria que detalhasse essa sua perspectiva, explicando o que foi a Revolta dos Malês.

Carla Menegat – Essa é uma perspectiva que venho elaborando há algum tempo não apenas sobre a Farroupilha, mas observando o chamado “ciclo das revoltas regenciais”, ou seja, aquele conjunto de revoltas, motins, rebeliões que acontecem durante ou proximamente ao período das regências e que é fruto da observação e discussão com trabalhos de muitos colegas que também trabalharam com esses movimentos. Entendo que, de um lado, temos a Farroupilha como a única revolta que, mesmo derrotada, não é massacrada.

Seus líderes foram anistiados, eles mantiveram seus títulos militares, muitos receberam compensações financeiras do Império para saldar suas dívidas. Enfim, existiu um esforço em reintegrar esse grupo de líderes na elite imperial.

 

Os malês

No outro extremo, e tendo alguns movimentos mais próximos de um extremo que de outro, nós temos a Revolta dos Malês, um levante de escravizados e libertos islâmicos que aconteceu entre 24 e 25 de janeiro de 1835 em Salvador. Esses escravos urbanos, junto com alguns libertos, reivindicaram sua liberdade e seu direito de culto, num contexto em que a escassez de alimentos criava condições precárias de vida na capital baiana. A revolta durou apenas algumas horas, porque o plano foi descoberto antes e desarticulado.

Mesmo assim, as mais duras penas foram empregadas, com mais de 500 pessoas punidas com açoites, prisões, deportações e os dezesseis acusados de liderar a revolta foram condenados à morte. O tratamento na Revolta dos Malês foi exemplar, especialmente porque muitos dos devotos do Islã eram letrados e havia a suspeita de que eles poderiam ter contato com material que os incitasse a fazer algo semelhante ao ocorrido na Revolução Haitiana, quando os escravizados exterminaram seus senhores, talvez o maior medo da elite escravista brasileira no período.

Esse mesmo comportamento se repete em outras revoltas em que líderes populares mestiços, indígenas e negros (escravizados ou libertos) são massacrados, como na Cabanagem no Pará e na Balaiada no Maranhão. Assim como o acordo entre as elites não ocorre apenas na Farroupilha, mas também na chamada Revolução Liberal, que não passou de um complô de parte da elite de São Paulo e de Minas Gerais e foi muito bem definida como “insatisfação armada” pelo historiador Erik Hörner.

 

 

 

Lanceiros Negros

O diferencial do acordo entre elites na Farroupilha está justamente no fato de que esse acordo inclui o extermínio de parte da tropa farroupilha, num ataque combinado contra o corpo dos Lanceiros Negros, que era composto por escravos que tinham se juntado aos farroupilhas em busca de liberdade. O episódio conhecido como o Massacre de Porongos resultou na morte de grande parte do contingente desses libertos e na prisão dos sobreviventes e seu envio ao Rio de Janeiro. O acordo assinado pelos farroupilhas garantia a liberdade a esses sobreviventes, mas na prática, eles nunca puderam deixar o exército imperial.

 

 

 

 

IHU On-Line – Para a senhora, a Farroupilha também pode ser lida como mais um ingrediente que calha na Guerra do Paraguai. Por quê?

Carla Menegat – Alguns dos problemas do modelo produtivo da pecuária da província do Rio Grande do Sul não se resolveram com a Farroupilha. Na verdade, a perda do território da Cisplatina, com a independência do Uruguai, frustrou o projeto de expansão da fronteira agrícola dessa elite, colocando um limite nacional no meio.

Ao longo das décadas seguintes, indivíduos que se reivindicam súditos brasileiros e que produzem gado no norte do Uruguai frequentemente acionaram autoridades imperiais para tentar resolver problemas do outro lado da fronteira. Ao mesmo tempo, as décadas de 1850 e 1860 apresentaram um desafio importante para o Império do Brasil que, com o fim do tráfico de escravos, precisava garantir que suas fronteiras não se tornariam rotas de fuga para a liberdade. Para a manutenção da escravidão no Brasil é fundamental que os vizinhos, que já não mantinham essa instituição, aceitassem ao menos o direito dos brasileiros de manterem a sua propriedade escrava e extraditassem cativos fugitivos.

Ter uma presença forte na região era a forma de forçar essa garantia. Então, a experiência militar dos rio-grandenses era fundamental para o Império, especialmente se considerarmos que essa é a fronteira com povoações dos dois lados, com contato. Para garantir o engajamento desses indivíduos, suas reivindicações não podiam ser ignoradas, e então reclamações que muitas vezes feriam a soberania uruguaia passaram a ser consideradas pelas autoridades do Brasil.

 

Guerra contra Aguirre

Nós geralmente estudamos a Guerra do Paraguai observando seu início com a invasão de Mato Grosso por Solano López e esquecemos que essa invasão foi uma resposta às ações brasileiras no episódio que ficou conhecido como Guerra contra Aguirre e que foi a intervenção militar brasileira para dar suporte à tomada de poder por Venâncio Flores no Uruguai. Aliás, a segunda vez que o Brasil se intrometia na política de seu vizinho em menos de 25 anos.

 

IHU On-Line – Se a Farroupilha foi uma revolta de elite, o termo gaúcho era pejorativo se empregado à população daquele tempo?

Carla Menegat – Ao longo da segunda metade do século XIX, mais para o fim do século, na verdade, o termo gaúcho vai progressivamente mudando de conotação. Antes disso, gaúcho significava homem pobre livre, vago, geralmente mal visto, porque não tinha paradeiro certo e por isso podia viver de roubo de gado e outros crimes.

Seu uso certamente era depreciativo a um indivíduo, era como chamar alguém de vagabundo. O termo era de uso coloquial, e aparece pouco na documentação do período da Farroupilha e nunca numa referência aos líderes da revolta; esses se referiam a si mesmos e aos conterrâneos como rio-grandenses ou sul-rio-grandenses.

 

 

IHU On-Line – Quem são e onde estão as mulheres na Farroupilha? Como analisa a construção da mulher, a prenda, no imaginário do gaúcho?

Carla Menegat – Acho importante o uso do plural quando falamos das mulheres na Farroupilha, porque elas eram muitas e estavam em muitos lugares. Temos a figura, romantizada pela ficção, de Ana Maria de Jesus Ribeiro, conhecida como Anita Garibaldi, que pegou em armas ao resolver acompanhar o amante e pai do filho dela quando ele bateu em retirada de Santa Catarina, mas ainda merece ser estudada e entendida melhor, em suas motivações para abandonar o casamento e viver em concubinato, em meio a uma guerra civil.

E temos as esposas dos líderes revoltosos que ficam nas propriedades das famílias, gerenciando os negócios e cuidando da educação e saúde dos filhos, mas também garantindo a comunicação com amigos e parentes distantes, inclusive em países vizinhos. Assim, vão ajudando de forma pouco conhecida, mas não menos importante, na articulação de recursos para a guerra. Particularmente essas mulheres, também romantizadas pela ficção, precisam ser entendidas na sua atuação como parte importante da sustentação desse modelo de sociedade e de economia, não só nos tempos de guerra.

E temos mulheres como Papagaia, alcunha dada a uma mulher que era amante do general Farroupilha David Canabarro. Alguns acreditam ser esposa do cirurgião da tropa, outros que era uma china, denominação das mulheres que acompanhavam tropas no século XIX na região do Rio da Prata e que prestavam diferentes serviços aos soldados, por vezes estabelecendo relacionamentos temporários com estes.

 

Da china à invenção da prenda

Aliás, para entendermos a construção da prenda, é preciso entender que ela é a oposição da china, que vive num contexto considerado imoral para os padrões que o imaginário urbano vai estabelecer no século XX. A prenda, que é uma figura que surgiu apenas com o tradicionalismo, foi inventada para ser tudo aquilo que a china não foi: educada para entreter, contida no espaço privado, coberta por tecidos que restringem inclusive seu movimento, desprovida de sexualidade.

Ao mesmo tempo que não representa as mulheres populares do período, a prenda não pode representar as mulheres da elite, que tinham escravas para exercer as tarefas domésticas. Tarefas essas tão importantes no ideário da prenda construído pelo tradicionalismo.

 

 

IHU On-Line – Como se dá a forja da ideia do gaúcho? Qual a incidência do romantismo do século XIX na constituição da imagem e do imaginário do gaúcho e quais os limites dessas construções?

Carla Menegat – O processo de constituição do gaúcho como o gentílico, o denominador da identidade local, começa com a publicação do romance de José de Alencar O Gaúcho, em 1870. O projeto romântico de Alencar era o de construir uma tipologia do homem brasileiro e não creio ser possível falar de um projeto romântico único, dado que a recepção regional foi bastante incômoda.

Como resposta, Apolinário Porto Alegre, autor ligado ao Partenon Literário, principal associação intelectual da província, escreveu O Vaqueano, que não apenas dava uma alternativa de denominação ao homem do povo, mas também acrescentava como componente fundamental da narrativa a observação do meio.

Ainda no século XIX, os letrados discutirão como alternativas para o gentílico outras opções como “monarca das coxilhas” ou “centauro dos pampas”. Contudo, o processo de folclorização vai encontrar um caminho bem mais profícuo ao se inspirar na experiência dos países vizinhos, que estarão produzindo sua própria figura de gaucho e sua própria literatura gauchesca.

 

Embranquecido e abrasileirado

A partir desse processo, a construção do gaúcho rio-grandense vai passar por duas questões: o gaúcho precisa ser embranquecido, para que dele se retire todo o conflito racial possível e se construa o mito da democracia de galpão. E o gaúcho precisa ser abrasileirado, num processo em que toda a violência, vagabundagem e criminalidade antes identificada com o termo seja expurgada para o estrangeiro, o gaucho platino, o castelhano.

 

 

IHU On-Line – Tanto a Farroupilha como a Guerra do Paraguai tiveram intensa participação de escravizados. Mas, nas narrativas que se constrói desses dois fatos, há um embranquecimento dos personagens? Por que e quais os desafios para rever essas perspectivas?

Carla Menegat – Essa questão tem vários aspectos. Ainda no século XIX, embranquecer as imagens dos exércitos era uma forma de tornar mais glorioso o discurso nacional, especialmente no contexto da manutenção da escravidão. Era muito difícil justificar o engajamento de tropas que não são livres na defesa da nação, especialmente numa guerra que era impopular.

Esse era o grande drama público do exército brasileiro durante a Guerra do Paraguai, tanto perante os demais membros da Tríplice Aliança, quanto perante a opinião pública brasileira. Antes disso, a mobilização de sentimentos de honra nas revoltas também colocava a questão da liberdade das tropas em jogo. A própria visão dos farroupilhas sobre os escravizados é desabonadora, se lembrarmos o verso do hino que fala que “povo que não tem virtude, acaba por ser escravo”, verso esse que justifica a escravidão como resultado do caráter dos que estão sujeitados a ela. Aliás, vergonhosamente esse é o hino do Rio Grande do Sul.

Depois, no fim do século XIX e início do século XX, esse processo de branqueamento foi ainda mais motivado pelas teorias cientificistas racistas em voga. Segundo essas teorias, negros, indígenas e mestiços teriam tendências incivilizadas inerentes, sendo violentos. Resultado dessa crença se manifesta na exclusão de negros e numa romantização dos indígenas no processo formativo da população do Rio Grande do Sul. O mesmo vai acontecer com a Farroupilha, acontecendo inclusive um embranquecimento de alguns líderes que, se supõe por boatos, eram pardos, como Domingos José de Almeida e Mariano de Matos e depois, seu progressivo ocultamento.

Da mesma forma, o exército brasileiro, no processo que se segue à Guerra do Paraguai e depois ainda, no início da República, vai exaltar como seus heróis os comandantes, homens brancos e de elite. Romper com essa tradição que foi reforçada ao longo do século XX envolve retomar de forma complexa o processo de fazer a guerra na América do Sul como um todo e entender quem eram as tropas e quem eram os comandantes. Muitos trabalhos têm usado artigos e charges da época da Guerra do Paraguai para explorar a questão da presença de negros nas tropas e esse é um recurso interessante em sala de aula, por exemplo.

 

 

 

Voluntários da Pátria

Entender melhor os processos de recrutamento também tem ajudado historiadores e pode ajudar a sociedade como um todo a romper essa visão embranquecida do exército. Eu gosto muito de explicar a situação dos Voluntários da Pátria, esse contingente de recrutados que dá nome a uma rua em quase toda grande cidade brasileira. Raramente os indivíduos que estavam nesse grupo eram voluntários e, muitas vezes, era usado algum expediente enganoso para levá-los até o ponto de encontro de despacho das tropas.

Houve mais de um relato de cidades que, sem cumprir a cota de voluntários, fizeram festas com cachaça liberada e aqueles que compareceram acordaram a caminho da guerra. Quando eu pergunto para as pessoas quem compareceria a uma festa gratuita, logo as pessoas começam a olhar para os lados. E se nossa população hoje não é branca como as tropas que retrataram a posteriori as batalhas da Guerra, por que as tropas seriam?

 

IHU On-Line – A historiografia do Rio Grande do Sul tem duas linhas bem claras, uma que visa afixar a narrativa do modo de vida platino e outra que busca sobrepor a identidade lusitana e, depois, carregar nas tintas dos demais processos de imigração. Como compreender essas duas correntes e quais os desafios para apreender uma história do RS que dê conta dessas complexidades, sem cair num revisionismo militante?

Carla Menegat – A última década deu mostras de que é possível construir uma historiografia que trate do espaço geográfico em que se localiza o Rio Grande do Sul e perceber sua relação tanto com o mundo lusitano, quanto com o mundo platino – e eu diria que essas denominações estão ultrapassadas – e, por vezes, há quem o faça inserindo num contexto Atlântico e num contexto global, e olhando as peculiaridades locais. Ou talvez eu apenas acredito que eu mesma faça um pouco isso, ao tentar entender as muitas conexões que os sujeitos desse espaço tinham em termos tanto da circulação de bens quanto de ideias.

E mesmo aqueles que privilegiam hoje uma das abordagens compreendem que é muito difícil falar, por exemplo, das relações com Montevidéu ou Buenos Aires sem entender as relações com o Rio de Janeiro, ou com Lisboa e Sevilha para os que trabalham com o período colonial. Para entender a Farroupilha é preciso entender muito das relações com os líderes políticos do Prata e das disputas que aconteciam naquele espaço, mas cada vez mais também entendemos que, compreendendo o contexto do Império e as conexões entre diferentes líderes regionais, são peças de um mesmo quebra-cabeças.

Assim como entender as conexões com a África, por conta do tráfico negreiro; com Cuba, um dos principais consumidores do charque exportado para fora do Brasil; com a Inglaterra, que exercia pressão pelo fim do tráfico, mas também teve grande influência nas mudanças no perfil da pecuária no Rio da Prata; e claro, há toda uma nova historiografia surgindo sobre a imigração europeia, que aliás, tem mostrado que fugir dos grandes modelos também é importante e analisar numa escala reduzida explica as motivações particulares das pessoas, em contextos específicos. Esse mesmo olhar tem contribuído muito para entendermos também as peculiaridades da escravidão no Rio Grande do Sul, especialmente no contexto da pecuária, que, por exemplo, exigia que os escravos fossem muito jovens, crianças mesmo quando começassem a trabalhar, para que o investimento no seu treinamento fosse compensado pelos anos úteis de trabalho.

 

 

Para além dos regionalismos

Mais do que tudo, é importante reconhecer que desde o momento em que a historiografia estava dividida em duas correntes regionais, muita coisa foi produzida e não é mais possível observar a mesma divisão. Eu inclusive acho que a pecha de história regional só nos cabe a priori pela localização geográfica, porque muitos trabalhos, incluso o meu, não são pensados como “História do Rio Grande do Sul”, mas, sim, estão preocupados em entender um fenômeno histórico. E de fato, se o palco do fenômeno fosse a província de São Paulo, será que essas pesquisas seriam chamadas de história regional?

De toda forma, acho que a questão da apreensão da história regional passa por darmos visibilidade a todas essas possibilidades, e dando essa visibilidade combatemos visões glorificadoras.

 

 

 

Superando o revisionismo histórico

Sobre a preocupação em produzir pesquisa histórica e divulgação que dê conta de todas as complexidades sem cair em revisionismo militante, considero realmente um desafio complexo, porque historiadores têm preocupações de pesquisa fruto de seu tempo e ambiente intelectual por um lado, e por outro, como todo pesquisador empírico, tendem a adaptar seus métodos aos problemas que suas fontes apresentam. Quando comecei minha tese, nunca imaginei que escreveria um capítulo inteiro sobre escravidão e que esse seria um problema que permearia toda a discussão, afinal, eu estava tentando entender um grupo de elite regional, que inclusive tinha propriedades num país que havia abolido a escravidão.

Mas essa questão ficou clara no meu primeiro semestre de pesquisa. Me lembro de encontrar os amigos nos corredores dos arquivos e perguntar se minha documentação estava me dizendo aquilo mesmo, afinal, era uma documentação manuseada por muitos historiadores ao longo do século XX. O que mudou foi que tanto eu vivia cercada por historiadores que haviam demonstrado a presença da escravidão e sua importância, quanto eu estava por questões tecnológicas conseguindo cruzar diferentes tipos de documentos. Meu panorama era diferente, mas também as preocupações de meu tempo.

Da mesma forma, nos trabalhos em que analiso os usos políticos e sociais das imagens construídas sobre eventos históricos como a Farroupilha, minhas preocupações com esses usos são balizadas pelas preocupações que os eventos do presente colocam à vista. Mas essas análises são baseadas em método e em dados, portanto podem ser contestadas no campo historiográfico. Acredito que numa perspectiva de revisionismo militante o indivíduo irá apenas emitir opiniões.
 

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