19 Agosto 2013
“Por causa da convivência com os pobres, Francisco percebeu quais são as questões importantes. A prioridade dele é estar junto desse povo, dar atenção a ele, incentivar que levante e caminhe”, diz o bispo emérito da Diocese de Duque de Caxias e São João de Meriti.
Confira a entrevista.
“Francisco é um bispo que Deus colocou num submundo de periferia, por isso o apelo dele é voltar-se para
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este mundo”, diz Dom Mauro Morelli, bispo emérito da Diocese de Duque de Caxias e São João de Meriti, no Rio de Janeiro, em entrevista concedida à IHU On-Line pessoalmente. Para ele, o pontificado de Francisco acena para “algumas questões que precisam ser entendidas”. Entre elas, enfatiza, “resgatar a dimensão humana, porque, do contrário, tudo perde o sentido. A grande demonstração dele é a humanidade no sentido de ser gente, comportar-se como gente, comover-se como gente. Esse é o grande foco de sua transformação”.
Dom Mauro Morelli esteve presente no encontro do Papa com os bispos brasileiros durante a Jornada Mundial da Juventude – JMJ, e avalia que seu discurso sinalizou para a importância da “conversão pastoral”, para a necessidade de “entender que os bispos são servidores desse povo, portanto, não estão em um andar superior”. E acrescenta: “Conversão pastoral significa saber, aceitar e viver o pastoreio”.
Mauro Morelli (foto abaixo) foi o fundador do Instituto Harpia Harpyia e um dos fundadores do Movimento pela Ética na Política. Fortaleceu a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida. Esteve à frente da criação do conceito de segurança alimentar como combate à fome e foi um dos articuladores do programa Mutirão de Combate à Desnutrição Materno-Infantil. Foi membro do Comitê Permanente de Nutrição da ONU, e atualmente é presidente do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável de Minas Gerais – CONSEA/MG.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como foi seu encontro com Papa Francisco durante a Jornada Mundial da Juventude - JMJ?
Dom Mauro Morelli – Minha participação na Jornada Mundial da Juventude – JMJ foi muito restrita por várias razões, inclusive por questões climáticas de chuva e frio. Participei da missa na Catedral e do encontro do Papa com os bispos do Brasil. Depois do almoço, cada bispo pode se aproximar brevemente dele para uma saudação, tendo o bom senso de perceber que éramos mais de 200. Ao saudá-lo disse-lhe três coisas. A primeira delas: “O senhor é uma surpresa de Deus”. Ele é uma surpresa de Deus porque a Igreja passa por uma profunda crise, e alguém inserido no sistema seria incapaz de ter a liberdade de espírito de entender a crise, e ter coragem de dar passos novos. Por isso, os cardeais chamaram um bispo de longe, que trouxe uma provocação para a Igreja e para a humanidade. Há pouco tempo soube da afirmação membro da Cúria Romana que o Papa escolheu um grupo de cardeais para propor reformas, os quais nada entendem da Cúria. Ótimo que não entendam, porque se entendessem, ficariam impotentes e não fariam modificações.
Uma segunda palavra em referência aos bispos eméritos em seu discurso aos bispos brasileiros, afirmando preservar a participação dos eméritos e dos idosos na Igreja para dialogar com os mais jovens, para ajudar a compreender e a entender o caminho. Afirmei com tristeza que sendo 160 bispos eméritos não integramos a CNBB. Em conversa com o cardeal Peter Kodwo Appiah Turkson, entendi que em Gana, seu país, os eméritos são membros da Conferência. No Brasil, o bispo emérito não é membro da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. Se houver um Concilio Ecumênico, a maior reunião da Igreja, o bispo emérito tem participação com direito pleno. Na CNBB, contudo, é apenas um convidado.
A terceira coisa que disse ao Papa é que me dedico à questão da fome há muitos anos, como é do conhecimento do Cardeal Maradiaga Depois espontaneamente peguei no braço dele dizendo: “Deus te abençoe”, porque ele tem uma grande missão a realizar. Ele deve ter pensado que eu “estou fora do eixo”. (risos)
IHU On-Line – Qual foi sua impressão do encontro com o Papa, e que mudanças vislumbra no pontificado?
Dom Mauro Morelli – Confesso a você que tenho um grau de identificação com o Papa Francisco, porque nosso itinerário de vida pastoral é bem semelhante. Nesse sentido, a experiência de enxergar o mundo a partir da realidade em que se está situado é fundamental e decisivo. Ele nunca ensaiou ser Papa. Dá-me a impressão de ser autentico, não faz show, é coerente, e cultiva os mesmos valores enquanto bispo em Buenos Aires.
Vivi algumas tensões na vida de bispo, porque uma coisa é entender o mundo a partir da Baixada Fluminense e, outra, entendê-lo do Sumaré. Veja, Francisco é um bispo que Deus colocou no submundo de periferia, por isso o apelo dele é voltar-se para a periferia. Fiquei contente vendo o Papa entrando na casa de família que mora na favela; dando atenção às pessoas, revelando-se muito humano. Tenho certeza de que para muitos que vivem em Roma, essa surpresa virou um susto. Disse recentemente que é uma pessoa indisciplinada e, portanto, ninguém em Roma está seguro, porque não se sabe como o Papa irá agir e aprontar.
Para o Papa Francisco é de primordial importância resgatar a dimensão humana, do contrário tudo perde o sentido. Sentir-se gente, comportar-se como gente e comover-se como gente. Eis o grande foco de seu entendimento da natureza do pastoreio na Igreja.
Condição humana
Pessoalmente penso que um Papa enfrenta dois problemas: o seu endeusamento na Igreja e a condição de chefe de Estado. O Papa Francisco parece recusar a assumir esses papéis. Na Igreja as coisas devem ser feitas dentro da condição humana, porque ninguém faz nada sozinho. Até o Deus em que cremos é comunitário. Portanto, o Papa está dizendo que tudo na Igreja tem de ser trabalhado de forma participativa, corresponsável, colegiada e sinodal. Essa dimensão é o reconhecimento de que nenhum de nós esgota a verdade, e que ela é maior do que todos nós.
Ele já acenou que o sínodo deve ser mais valorizado e, portanto, não deveria ser apenas uma experiência consultiva. Acredito que no próximo sínodo ele participará e abençoará o consenso. Recentemente declarou que se sente enjaulado, expressando a vontade de viver com liberdade e não amarrado a estruturas e conveniências.
Reformas
Alguns falam que a Igreja deve vender tudo que tem e doar o dinheiro aos pobres. Essa é uma conversa um tanto desqualificada, porque não se resolve problema dos pobres vendendo museus. Além do mais, a Igreja tem a custódia de herança histórica, cultural e artística, que não pode ser jogada fora. Mesmo que o Papa quisesse se livrar disso, seria um processo lento para encontrar uma equação adequada. Trata-se de um assunto complexíssimo.
Particularmente penso que seria um grande passo se o Papa confiasse as atividades diplomáticas, problemas sociais e ambientais, junto à ONU e Governos à Secretaria de Estado, integrada por mulheres e homens escolhidos dentre os quadros das Comissões de Justiça e Paz, chefiada por um primeiro ministro; cabendo à Congregação dos Bispos em diálogo com as Conferências Episcopais as questões relacionadas ao processo de constituição e provisão de dioceses. Considero importante que a Igreja possa participar de organismos da ONU através de leigos e leigas eminentes na fé e no saber.
Cada Conferência Episcopal poderia ter uma comissão integrada por um delegado do Papa. Esse serviço deveria ser ligado à Congregação dos Bispos, e não à Secretaria de Estado. Hoje o núncio, que é o embaixador, tem em sua mão toda a relação com o poder político e com a Igreja. Ele quem faz os processos de constituição de dioceses e eleição de bispos, sem um bom conhecimento do país e da realidade. Considero princípio básico que Deus só pede para você fazer alguma coisa que ordinariamente está dentro da condição humana. O Papa tem uma consciência da grandeza da missão e da limitação humana. Vejo que um equacionamento nessas duas direções seria fundamental. Obviamente que a descentralização do serviço, permite encontrar outros mecanismos de participação.
Nós chegamos, na Igreja, a um paralelismo semelhante ao dos governos, com um grau de burocracia que ninguém consegue mais operar. Estamos chegando a um impasse na capacidade de funcionar. Por isso, é importante que o Papa mantenha a sua humanidade. Esses dias ele falou que não pode ir para rua, quer dizer, a ponto chegamos se o pastor da Igreja de Roma não pode mais andar na rua?
IHU On-Line – Que interpretação fez do discurso do Papa aos bispos do Brasil? Como os bispos brasileiros reagiram às mensagens de Francisco?
Dom Mauro Morelli – O ponto fundamental afirmar que bispo é pastor. A conversão pastoral é justamente entender que os bispos são servidores desse povo, portanto, não estão em um andar superior. O Papa disse: “Sejam pastores, andem na frente das ovelhas para abrir caminho, no meio delas, para conseguir entendimento e, atrás, para ninguém ficar isolado”. Então, conversão pastoral significa saber, aceitar e viver o pastoreio.
Francisco recomendou que nos livremos da psicologia de príncipes. O processo histórico fez do Papa um rei e, dos bispos, príncipes. No Brasil também construíram palácios para os bispos. Na diocese, a primeira vez que me chamaram de Vossa Excelência, eu disse: “Nunca mais me xinguem com esse nome”. Toda criança que nasce no mundo é excelentíssima e reverendíssima. Quer dizer, é excelente e tem de ser reverenciada. Não é porque eu sou bispo que tenho de ser excelência. O Papa demonstra querer romper com essa cultura.
Obviamente, não podemos ignorar a história, mas o Papa pode mudá-la. Francisco desmistificou o papado, mostrando que o Papa também é gente. Além do mais, ele está dizendo que a Igreja está cheia de estruturas velhas e é preciso mudá-las.
Por causa da convivência com os pobres, Francisco percebeu quais são as questões importantes. E a prioridade dele é estar junto desse povo, dar-lhe atenção, incentivar que levante e caminhe. O Papa está dizendo para a Igreja: “Saia de si mesmo e vá para a periferia”. Lembro das diretrizes de Dom Paulo Evaristo Arns. Unidos cada um caminhando numa direção, ou seja, a ordem era os bispos irem para fora, para a periferia; voltando à Catedral no dia de Corpus Christi, para simbolizar a unidade do povo de Deus. O Papa está clamando pela periferia. Sinto-me muito identificado com ele. Alegro-me pelas escolhas que faz, semelhantes às minhas.
Rogo a Deus para que o Papa tenha força e determinação. Penso que ele vai sofrer muito. Sua missão exige muito amor e doação. Ele não aceita ser enquadrado num molde e num estilo de vida que não corresponde ao Evangelho. Sempre digo que quanto mais humana a pessoa for, mais Evangélica será. A grandeza da vida em comunhão fraterna e solidária é o Reino de Deus. O segmento de Jesus me põe num caminho, no qual o mais preciosa é a vida em comunhão, a integração das pessoas. A essência do Evangelho é a comunhão.
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Francisco: uma bela surpresa de Deus. Entrevista especial com Dom Mauro Morelli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU