29 Abril 2013
"Com o trabalho mediado pelas inovações tecnológicas existe um grau de abstração um pouco diferente, pois tem uma mediação diferente, já que às vezes você não está vendo o que está acontecendo, mas você recebe informações pela tela de um computador", constata o coordenador do Observatório da Inovação e Competitividade do Instituto de Estudos Avançados da USP.
Embora a indústria tenha passado por inúmeras revoluções técnicas, sobretudo após o taylorismo-fordismo no início do século passado, as novas tecnologias reorganizaram de forma significativa o trabalho na contemporaneidade. Para o professor Mário Sergio Salerno da Universidade de São Paulo – USP, a intermediação do trabalho pelo computador reorganiza-o profundamente nas linhas de produção. “O trabalho mediado pelo computador em uma indústria química, se o processo funciona normalmente, o empregado não vai fazer nenhuma intervenção física. Aparentemente ele não está fazendo nada, mas na verdade ele está o tempo todo verificando o estado do processo”, explica Salerno, em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line. “O melhor operador automatizado é o que menos esforço faz, pois ele antecipa o problema. Então, o conceito do que é um bom operador, como será a formação e a remuneração dele muda”, complementa.
Mário Sergio Salerno (foto) é professor do Departamento de Engenharia de Produção da Escola Politécnica da USP, onde coordena o Laboratório de Gestão da Inovação. É coordenador do Observatório da Inovação e Competitividade do Instituto de Estudos Avançados da USP. Também é organizador de diversos livros sobre o tema e autor da obra Projeto de organizações integradas e flexíveis: Processos, grupos e gestão democrática via espaços de comunicação-negociação (São Paulo: Atlas, 1999).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – A revolução tecnológica impactou profundamente a produção. É possível identificar as grandes mudanças em curso resultantes dessa revolução produtiva no mundo do trabalho?
Mário Sergio Salerno – Esse impacto teve várias pontes. Dá para identificar uma tecnologia stricto sensu, que é a hegemonia capitalizada pelas tecnologias de informação e comunicação, ou seja, a computadorização dos meios de produção e a quimificação da indústria. Há processos e produtos mais baseados em química do que em metalurgia. Um exemplo pode ser o para-choque ou o revestimento dos carros. Se entrarmos em um carro dos anos 1960/1970, as partes internas eram todas metálicas e, hoje, elas têm muitos plásticos, com processos muitos diferentes e, normalmente, poupadores de mão de obra. Fora da mudança tecnológica stricto sensu, existe um conjunto importante de mudanças organizacionais dentro da empresa, entre empresas e de logística que acabam impactando a forma como as pessoas trabalham.
Exemplos
Para exemplificar vamos pensar no contêiner. Você pega uma série de sacos de café na fábrica ou na fazenda, coloca no caminhão, vai para o porto, onde se tem terminal de contêineres. Um guindaste pega-o e coloca dentro do navio. Antes do contêiner você precisava carregar saco a saco ao caminhão, chegar ao porto e descarregar em determinado local, colocar no guindaste e, em alguns casos, estivadores levavam saco a saco para o navio. Quando a carga chegava ao destino, tinha que repetir o mesmo processo. Já nos contêineres, que em alguns caso mal podem ocupar o espaço, porque nem sempre ele está repleto até o teto e sobra espaço dentro do navio, não ocupam tão bem os espaços como o carregamento a granel, mas o tempo logístico total é muito menor, o número de pessoas que trabalha nesse processo também é menor, porém com atividades diferentes, menos de estiva e muito mais atividades de manipulação de massas.
Se formos pensar em edição de texto, como são feitos os jornais e as revistas, são exemplos muitos simples. Antigamente os redatores datilografavam a matéria, iam a um editor especial onde tinham os tipógrafos ou linotipistas, em que colocavam em ordem as letras do texto, que gerava a chapa da impressão, aí então se imprimia. Hoje o jornalista senta ao computador, existe um editor de texto que já vai corrigindo uma parte dos erros de digitação; o envio para a impressão é por sistema informatizado. Há alguns lugares que nem tem máquina de impressão; vai tudo via internet.
Hoje se fazem livros e tudo é enviado diretamente pelo autor para a gráfica. O processo muda radicalmente, e isso vale para piloto de avião, para torneiro mecânico. Vamos pegar o Lula, por exemplo, cuja profissão é torneiro mecânico. Torneiro mecânico é uma profissão difícil até hoje. Ele precisa conhecer os processos de fabricação, saber ler os desenhos técnicos, conhecer materiais. Então, ela pega a peça e planeja a execução do seu trabalho. É por isso que os torneiros de um tempo para cá precisam de uma formação escolar. Esse é o topo dos torneiros, o ferramenteiro, o profissional, que é diferente do torneiro operacional que aperta o botão e tira a peça do outro lado. Esse torneiro ferramenteiro vai planejar e executar isso manualmente. Ela precisa ter habilidade manual. Isso é muito difícil, porque você pode até planejar, mas precisa da habilidade manual que não é tão trivial.
Hoje, você planeja a atividade (ou programa essa atividade) em computador, o que não é muito difícil de fazer, e manda a máquina executar. Isso significa que a sua relação com o meio de trabalho muda a passa a ser mais abstrata, porque no modo operacional você vai executando e pode ir mudando o planejamento. Mas, quando você programa, isso vai até o fim. A abstração é maior, a sua relação com o produto que está sendo feito é diferente.
IHU On-Line – O chão de fábrica brasileiro assimilou os princípios de organização do trabalho toyotista ou ainda majoritariamente prevalece o taylorismo-fordismo?
Mário Sergio Salerno – Essa é um discussão de três meses e eu precisaria entender o que você chama de toyotismo e taylorismo. Existem análises no Brasil que alguns setores industriais sequer entraram no taylorismo-fordismo. Tem de tudo. Primeiro, o taylorismo-fordismo não entra em todos os setores produtivos, o que grosso modo se chama de toyotismo muito menos. O que dá para dizer é que existe uma heterogeneidade muito grande nos locais de trabalho; têm experiências muito avançadas de trabalho em equipe autônoma, sem chefe, em que operários trabalham em turnos contínuos, 24 horas por dia, onde os superiores trabalham em turno administrativo. Assim, a maior parte das horas operacionais só tem operário na fábrica e são experiências muito exitosas, que são antitaylorismo e antitoyotismo. O toyotismo é uma extensão dos princípios clássicos do taylorismo, mas isso são coisas do século XIX.
Tendência
A tendência para a indústria de ponta é ela trabalhar com esquemas mais flexíveis, menos hierárquicos, no qual o trabalhador tem muito mais liberdade para tomar decisões e muito mais responsabilidade nas decisões que toma, o que é o contrário do taylorismo e do fordismo, que são muito regrados. Pensamos muito em produção de alto volume, produção de automóvel, mas essa é uma pequena parte dos processos produtivos, embora seja muito importante porque tem um peso enorme no PIB. Do ponto de vista das pessoas que trabalham, mesmo na indústria automobilística, está havendo uma redução dos níveis hierárquicos, do número de cargos dentro de um mesmo nível hierárquico e isso tem a ver com a necessidade de flexibilidade e eficiência da indústria moderna. Essa talvez seja a mudança mais importante que está em curso em termos organizacionais.
IHU On-Line – O crescente recurso do “trabalho em equipe” no chão de fábrica tem sido adotado com o discurso de uma maior autonomia aos trabalhadores. De fato, isso tem ocorrido, ou se trata de uma estratégia para alavancar a produtividade?
Mário Sergio Salerno – Essas são duas coisas que não são antagônicas. É possível uma maior autonomia e maior produtividade. Todos os casos que eu conheço de maior autonomia estão ligados à eficiência, pois nenhuma empresa vai introduzir um sistema que diminua a produtividade. Não tem nenhuma pesquisa no Brasil que consiga dizer que o trabalho em equipe esteja aumentando ou diminuindo, se é majoritário ou se os grupos têm mais autonomia ou não. O que existem são inúmeros estudos de caso onde se pode dizer: em tal caso os trabalhadores têm mais autonomia, em tal caso têm menos. Minha percepção é que estão aumentando os casos em que os trabalhadores têm autonomia decisória, ou seja, no trabalho que ele faz. Às vezes as pessoas confundem e pensam em decisões em geral, mas os operários continuam operários e os gerentes financeiros continuam gerentes financeiros.
Nos sistemas muito automatizados onde há variação de produção, a autonomia é muito funcional para a empresa, pois os grupos de trabalho antecipam problemas. A autonomia versus produtividade, e que está bem escrito em literatura de pesquisa, indica que há uma tendência para o trabalho mais autônomo, em que a pessoa controla mais o seu tempo, tem uma carga de responsabilidade maior e é cobrada por isso, a “faca de dois gumes”.
IHU On-Line – Como remunerar esse tipo de atividade que envolve a tomada de decisões e autonomia?
Mário Sergio Salerno – Todo o trabalho tem um grau de subjetividade inserida, mesmo da pessoa que trabalha na linha de montagem. Existe um mundo de trabalho não fabril e não operário onde esse tipo de coisa existe há séculos. O mundo operário, numa acepção historicamente ampla, nas atividades mais diretas, quem trabalha no comércio, banco, etc., por muito tempo reduziu os salários dos trabalhadores por motivos de economia. Depois houve as lutas sindicais para reduzir abusos, houve muita regulamentação das atividades, trabalho igual, salário igual. Quando a lógica do trabalho passa a ser menos pelo movimento que ele faz e mais pelo raciocínio, fica muito difícil comparar uma atividade com outra.
Mediação
Por exemplo, no trabalho mediado pelo computador em uma indústria química, se o processo funciona normalmente, o empregado não vai fazer nenhuma intervenção física. Aparentemente ele não está fazendo nada, mas na verdade ele está o tempo todo verificando o estado do processo. O padrão operador é se antecipar e não deixar que haja alteração na temperatura, que uma chapa não grude na outra, fazendo correções antes que o problema aconteça. O melhor operador automatizado é o que menos esforço faz, pois ele antecipa o problema. Então, o conceito do que é um bom operador, como será a formação e a remuneração dele muda.
Quando o empregador contrata, ele contrata o potencial das pessoas e não necessariamente o que eles vão fazer. Quando eu contrato um advogado eu não estou pensando que ele vai escrever 300 mandados de segurança em um mês ou mais 50 petições. Eu não pago por isso, eu pago pelo potencial de trabalho por meio de um contrato. Esse tipo de coisa está chegando ao trabalho direto e a tendência é que essa remuneração seja pelo aumento do potencial dele, conforme vai aumentando a experiência e o potencial dele vai subindo no seu grau de remuneração. O trabalhador que faz mais cursos vai subindo no grau de remuneração, mesmo que aparentemente não use aquilo, mas ele tem o potencial de usar se for necessário. É como o corpo de bombeiros: você é treinado para várias situações, mas o ideal é que você nunca precise utilizar.
IHU On-Line – Fala-se muito que com as inovações tecnológicas falta mão de obra qualificada no mercado de trabalho brasileiro. Qual é o real tamanho do problema?
Mário Sergio Salerno – Não sei e ninguém sabe. O Brasil está crescendo em uma condição de pleno emprego, então falta qualquer tipo de mão de obra qualificada. Nós temos um problema no atacado escolar e temos um ponto importante porque o Brasil forma poucos engenheiros atualmente. Tem aumentando o número de engenheiros, mas ainda é pouco. Tem muita análise impressionista de que está aumentando, mas se você faz uma análise comparativamente com países no mesmo nível de industrialização, vemos que temos menos engenheiros, uma escolaridade mais baixa. Existe relação, embora não seja muito direta, entre formação escolar e trabalho, com as novas tecnologias, principalmente as mediadas por computador.
Com o trabalho mediado pelas inovações tecnológicas existe um grau de abstração um pouco diferente, pois tem uma mediação diferente, já que às vezes você não está vendo o que está acontecendo, mas você recebe informações pela tela de um computador. Então a pessoa tem que interpretar o que está acontecendo a partir de dados sintéticos e tomar uma decisão. É diferente de estar lá olhando, pois no tipo de raciocínio que se usa para construir uma abstração do que está acontecendo estão presentes etapas da formação escolar que ajudam. Por exemplo, quando aparece na tela do computador um gráfico do conteúdo de processo e mostra que aquelas peças em fabricação estão com o diâmetro crescendo, eu vou tomar uma decisão antes que a peça cresça e saia do padrão.
Um operário que fez ensino médio e estudou física deve ter feito experiências de velocidade, quando ele trabalha com gráfico, seja da física ou da química. A pessoa que estuda matemática tem muito mais facilidade de trabalhar com abstrações do que uma pessoa que não estuda matemática. Então, tem um tipo de formação que não é tão instrumental, de decorar fórmula, mas de lógica de pensamento, que é dada pelo ensino formal. Isso tem uma relação importante com o trabalhar com novas tecnologias. Independentemente disso, se o sujeito vai trabalhar como robô ou não, ele como cidadão tem direito a uma boa formação. Nesse contexto, eu entendo que há uma relação funcional, sim. O trabalhador melhor escolarizado, em geral, tende a ter um desempenho melhor no trabalho.
IHU On-Line – A indústria brasileira tem produzido tecnologia ou é meramente importadora da tecnologia de fora?
Mário Sergio Salerno – Tem de tudo. A maior parte das cadeias produtivas brasileiras está dominada por empresas multinacionais nos ramos automobilístico, da química e eletrônica. Isso veio do Juscelino, que optou por fazer uma internacionalização para produzir aqui para o mercado interno. Poucos países fizeram esse tipo de política. Desde lá que a governança das cadeias e das redes produtivas está dominada por empresas multinacionais. Tais empresas, como é esperado, têm seu centro decisório fora do Brasil. Há exceções de praxe como a Embraer, por exemplo. O centro decisório é composto pela diretoria e são levadas em conta as decisões financeiras e a estratégia de produto, o que está ligado ao centro de estratégia de pesquisa e engenharia.
Por outro lado, existem as empresas brasileiras e, nesse universo, há um conjunto de organizações que estão investindo mais em pesquisa e desenvolvimento no Brasil. Assim, existe um problema na estrutura de que se inova pouco. Tem um apoio do Estado muito significativo. Depois de 2004 a Finep aumentou o investimento em várias vezes.
IHU On-Line – Quais são as exigências do mercado de trabalho para o trabalhador do século XXI?
Mário Sergio Salerno – Escolaridade, trabalho em equipe com outras pessoas de formação diferente e autonomia para tomar decisões e assumir a responsabilidade pelas decisões tomadas.
Nota: A imagem acima que ilustra a entrevista é de http://bit.ly/12FtxQ6
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O trabalho mediado pelas inovações tecnológicas. Impactos e desafios. Entrevista especial com Mário Sergio Salerno - Instituto Humanitas Unisinos - IHU