21 Mai 2012
“O que o neoliberalismo e o social-liberalismo vêm fazendo no mundo é uma contrarreforma. É destruição de direitos. Temos que estar muito atentos para impedir isso”, afirma o sociólogo
Questionado a refletir sobre as transformações recentes no mundo do trabalho, o professor e pesquisador da Unicamp, Ricardo Antunes, aponta a terceirização como “a porta de entrada para a precarização estrutural do trabalho em escala global”. Ele explica, na entrevista que concedeu por telefone à IHU On-Line, que o argumento de que a terceirização geraria maior qualidade é ideológico e falacioso. “Terceiriza-se para reduzir custos e para aumentar a divisão e, com isso, dificultar a organização sindical e a resistência da classe trabalhadora. A terceirização é, em si e por si, nefasta e tem que ser combatida. Não é verdade que ela seja inevitável”.
A revista IHU On-Line, no. 390, de 30-04-2012, intitulada “As mutações do mundo do trabalho. Desafios e perspectivas”, discutiu o tema.
Ricardo Antunes é mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas e doutor, na mesma área, pela Universidade de São Paulo. Realizou pós-doutorado na University of Sussex e obteve o título de Livre Docência pela Universidade Estadual de Campinas, onde hoje é professor. É autor de Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade no mundo do trabalho (São Paulo: Cortez, 2010), Infoproletários: degradação real do trabalho virtual (São Paulo: Boitempo Editorial, 2009), entre outros títulos. Lançou no ano passado O continente do labor (São Paulo: Boitempo Editorial, 2011), sobre o qual trata também nesta entrevista, ao afirmar que “somos o continente do massacre, mas também da rebelião; do saque, mas da luta; da escravidão, mas que luta pela felicidade social; somos o continente da exploração, mas também da revolução”.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais os desafios que se apresentam ao mundo do trabalho hoje, considerando principalmente a questão da terceirização e da precarização?
Ricardo Antunes – O principal desafio se coloca na medida em que a terceirização, hoje, é a porta de entrada para a precarização. As empresas se desobrigam de cumprir relações contratuais com seus trabalhadores ao terceirizar, ou seja, contratam junto a outras empresas, que passam a ser responsáveis pelo fornecimento da força de trabalho. Neste processo, temos empresas que cumprem, de algum modo, a legislação trabalhista, e temos as que acabam não cumprindo. Isso cria um conjunto muito amplo de trabalhadores e trabalhadoras que se tornam suscetíveis no mercado de trabalho à ausência de legislação, a uma intensificação da jornada de trabalho, a um trabalho extenuante e violento. É por isso que o capital hoje, no Brasil e em escala global, quer a terceirização não só nas atividades meio, mas também nas atividades fins. O argumento que usam é o de que a terceirização gera maior qualidade. É evidente que esse argumento é pura ideologia, é falacioso. Terceiriza-se para reduzir custos e para aumentar a divisão e, com isso, dificultar a organização sindical e a resistência da classe trabalhadora. A terceirização é, em si e por si, nefasta e tem que ser combatida. Não é verdade que ela seja inevitável. A terceirização é – repito – a porta de entrada para a precarização estrutural do trabalho em escala global.
IHU On-Line – Em que sentido a CLT, promulgada em 1943, necessitaria de uma revisão? Em que aspectos ela está mais defasada?
Ricardo Antunes – A Consolidação das Leis do Trabalho – CLT deve ser analisada sob um caráter bifronte. Ela tem dois lados que são, em certo sentido, contraditórios. Por um lado, a CLT traz um conjunto de direitos do trabalho (jornada semanal, descanso, salários, férias, etc.), que são conquistas dos trabalhadores desde a primeira greve que se tem notícias no Brasil, em meados do século XIX. Embora Getúlio Vargas tenha tratado a CLT como se fosse uma dádiva do seu governo, isso não é verdade. A CLT veio de lutas sociais e de greves que reivindicavam salário igual para trabalho igual, descanso semanal remunerado, férias, salário mínimo, etc. Por outro lado, a CLT tem também uma estrutura sindical que nasceu atrelada ao Estado. Era um sindicalismo sobre o qual o Estado tinha controle através do imposto sindical, de uma legislação que proibia atividades políticas dentro dos sindicatos, e através da lei do reconhecimento sindical (só o Ministério do Trabalho poderia reconhecer o direito sindical).
Enquanto a CLT, no que diz respeito à legislação social do trabalho, é avançada e positiva para seu tempo, criando direitos que ficaram na história da classe trabalhadora brasileira, no que concerne ao seu lado sindical, ela consolidou e consubstanciou um sindicalismo estatal e atrelado ao Estado. Isso tem que ser tratado com muito cuidado, porque o capital, hoje, quer quebrar a CLT. Por um lado, ele “arrebenta” com a legislação social trabalhista e, por outro lado, “arrebenta” também com os sindicatos. Isso a classe trabalhadora não pode aceitar. Teríamos que pensar num código de trabalho avançado, que mantivesse todas as conquistas trabalhistas da CLT e que não permitisse, em nenhum sentido, a sua redução, mas ao contrário: que fosse “da CLT para a frente, para cima”. Por outro lado, deveria ser um código que permitisse uma plena e autônoma liberdade sindical, sem imposto sindical e sem sindicato único obrigatório.
IHU On-Line – O que deveria fazer parte de uma reforma trabalhista no Brasil?
Ricardo Antunes – Uma reforma trabalhista, hoje, não poderia contemplar a perda de nenhum direito. Pelo contrário, deveríamos avançar na redução da jornada de trabalho, avançar para uma situação em que os direitos das trabalhadoras fossem iguais aos direitos dos trabalhadores, pois sabemos que ainda hoje as mulheres recebem, em média, algo como 70, 80% do salário dos homens para realizar o mesmo trabalho. Os capitais não querem isso hoje. Eles querem a “lei da selva”, sem direitos sociais do trabalho e com plena desorganização sindical. Por isso que a classe trabalhadora deve caminhar com muito cuidado hoje para não permitir uma reforma da CLT, que seria uma contrarreforma. O que o neoliberalismo e o social-liberalismo vêm fazendo no mundo é uma contrarreforma. É destruição de direitos. Temos que estar muito atentos para impedir isso.
IHU On-Line – Em que áreas cresce e diminui o número de vagas de empregos no Brasil hoje? Que panorama podemos traçar a partir deste cenário?
Ricardo Antunes – O crescimento do emprego no Brasil depende fundamentalmente da expansão ou da retração da economia. Na década de 1990 e nos primeiros quatro anos dos anos 2000, o Brasil viveu um quadro de estagnação e também de crise, com crescimentos pífios. E com a economia brasileira não crescendo, o bolsão de desempregados aumentava. Paralelamente a isso, aumentou enormemente também o bolsão dos terceirizados e dos trabalhadores na informalidade. Chegamos a ter num dado momento desta história recente um contingente de informalidade bastante superior a 50%. Mas a economia brasileira começou a dar sinais de melhora a partir de meados dos anos 2000, com a retomada do crescimento econômico. Esse impulso surgiu, num primeiro momento, pelo cenário favorável. Em segundo lugar, há o fato de existir um enorme mercado de consumo ocioso no Brasil. Como os salários dos trabalhadores são baixos e as condições de vida são precarizadas, temos um mercado consumidor muito restrito e seletivo.
A ditadura militar cresceu, entre 1968 e 1973, com base na expansão da produção para o mercado externo e expansão das classes médias altas e dominantes no Brasil. Então, a partir de meados dos anos 2000, o governo Lula começou a incentivar a produção para o mercado interno, fazendo uma política que significava conciliar capital e trabalho. Lula decidiu reduzir os impostos para os capitais, o que mostra que foi um governo que serviu aos capitais. Então, diminuiu a tributação da indústria automobilística, da indústria de linha branca, da construção civil. São três setores de muita expansão e incorporação da força de trabalho.
Ao mesmo tempo em que a redução de tributos incentivava a produção de geladeiras, fogões, carros e casas um pouco mais baratas do que com a tributação mais alta, houve um pequeno, mas relativo, aumento do salário mínimo. Na medida em que tivemos o aumento do salário e com uma política puramente assistencialista, mas que também traz resultados nessa impulsão econômica de que estamos falando, dada pelo Bolsa Família, acabamos tendo no país uma ampliação também do setor de serviços que igualmente incorpora força de trabalho. Por exemplo, os call centers empregam no Brasil cerca de 1,5 milhão de pessoas, sendo que quase 80% desse contingente é feminino. Isso tudo tem a ver com um contexto de crise nos países avançados (Estados Unidos inicialmente, depois Europa e Japão) a partir de 2007, 2008, em que países como China, Índia, Brasil, Rússia e outros compensaram a retração da venda de commodities para o mercado externo com o aumento da produção para o mercado interno. Essa “sacada” foi iniciada pelo governo Lula e está sendo seguida pelo governo Dilma.
IHU On-Line – Em que sentido a América Latina pode ser considerada o “continente do labor”?
Ricardo Antunes – A América Latina “nasceu”, desde 1500, quando os espanhóis e portugueses aqui chegaram, e foi criada como o que Caio Prado Jr. chamou muito bem de “colônia de exploração”. Ao contrário dos Estados Unidos e da América do Norte, que nasceram como colônias de povoamento, nós nascemos sob o signo da exploração. O papel do continente latino-americano era produzir para o mercado externo. Havia a concepção de que a população trabalhadora da colônia deveria produzir para o enriquecimento da metrópole. E isso se baseava sobre o saque, a extração de riqueza, o trabalho escravo, predatório, extraído com a força da violência e da morte.
O que é o labor? É o trabalho como sinônimo do sofrimento, que não envolve a criação. Os termos em inglês nos facilitam o entendimento. Quando falamos em work nos referimos a um trabalho que tem um sentido de construção da vida humana, de criação de bens socialmente úteis. Quando falamos em labor, nos referimos ao lado da exploração do trabalho. E a expressão “continente do labor” associada à América Latina serve para mostrar que fomos “concebidos” desde o início da colonização e da montagem do sistema de produção colonial como o continente da exploração. Por isso que a América Latina é, ainda hoje, o continente da superexploração do trabalho. Mas esse continente e seus povos estão dando sinais de que não aceitam mais esses saques, esse vilipêndio, essa superexploração intensificada do trabalho. Somos o continente do massacre, mas também da rebelião; do saque, mas da luta; da escravidão, mas que luta pela felicidade social; somos o continente da exploração, mas também da revolução.
IHU On-Line – O que caracteriza o olhar latino-americano diante dos dilemas do mundo do trabalho?
Ricardo Antunes – Primeira coisa: o meu olhar, como um intelectual e um pesquisador latino-americano, e o olhar do trabalhador e da trabalhadora na América Latina mostraram o fracasso completo das teses eurocêntricas do fim do trabalho. O mundo e o olhar latino-americano mostram que o trabalho é uma mediação essencial. Se é imprescindível eliminar o trabalho que aliena, que explora, que assalaria, é vital pensarmos em uma sociedade do trabalho que seja dotada de sentido. Pois o trabalho, ao mesmo tempo, é mediação e atividade imprescindível para a criação de coisas úteis. Em uma sociedade do futuro, livre, emancipada, cada vez menor deverá ser o tempo destinado ao trabalho, mas ele é imprescindível para criar utilidades.
Outra coisa que o olhar latino-americano do trabalho mostra, é que temos um trabalho extenuante, agitado, desmedido, que oscila entre formas de assalariamento precarizadas, de informalidade, situações de trabalho escravo, semiescravo. Não queremos um continente do labor. Eu gostaria de escrever um próximo livro que fosse “O Continente da felicidade e da emancipação social”. E um terceiro aspecto do olhar latino-americano se refere ao fato de que somos o continente da rebelião. Afinal, as lutas globais hoje, todas elas, se referem ao trabalho.
Por Graziela Wolfart
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Terceirização: porta de entrada para a precarização. Entrevista especial com Ricardo Antunes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU