09 Janeiro 2012
“Quando magistrados e autoridades em geral reagem contra o fato de serem investigados, na verdade estão se comportando como se fossem os donos do poder. Parece que a 'coisa pública' no Brasil ainda está muito privada”. A declaração é do jurista Lênio Streck, professor da Unisinos, na entrevista concedida por e-mail, em que reflete a respeito das investigações realizadas pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ nas movimentações financeiras de juízes consideradas atípicas pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF. Em sua opinião, a questão central é que “o CNJ está incomodando setores do poder Judiciário”. Sobre a punição dos magistrados caso essas movimentações sejam consideradas ilegais, Streck pondera: “lei é o que não falta. O grande problema é a funcionalidade das leis, principalmente as leis que tratam dos crimes do colarinho branco, enfim, das leis que tratam dos ‘mal feitos’ do ‘andar de cima’ da sociedade”. Outro tema debatido na entrevista é a questão da impunidade, que se aplica sobretudo “ao andar de cima” da sociedade, nos crimes do colarinho branco. Já para o “andar de baixo”, as leis são muito mais duras, basta ver o contingente carcerário, que ultrapassa 500 mil pessoas.
Lênio Luiz Streck cursou mestrado e doutorado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. É pós-doutorado pela universidade de Lisboa. Atualmente, além de professor da Unisinos, é professor visitante da Universidade de Coimbra, da Univesidade de Roma e da Universidade Javeriana, na Colômbia. É presidente de honra do Instituto de Hermenêutica Jurídica, membro catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucional e procurador de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Entre seus livros publicados citamos Hermenêutica jurídica E(m) Crise (10 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008) e Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas – da possibilidade à necessidade de respostas corretas em direito (4.ed ed Saraiva, 2011). Seu site pessoal é http://www.leniostreck.com.br/.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como analisa a reação dos magistrados a respeito da investigação da movimentação financeira atípica dos juízes realizada pela ministra Eliana Calmon (foto)?
Lênio Streck – Trata-se de uma reação que deita raízes na história brasileira. Stuart Schwarz tem um trabalho muito antigo, retratando o funcionamento do Judiciário brasileiro nos idos do século XVIII. Uma leitura de Schwarz com uma pitada de Os donos do poder, de Raymundo Faoro, fornece a receita para a compreensão não somente desse tipo de reação de setores do Judiciário, como também fornece componentes para a compreensão do comportamento das autoridades de outros poderes da República. Por que é tão difícil combater a corrupção no Brasil? Por que é tão difícil tornar transparentes o funcionamento dos diversos setores da vida pública brasileira? Quando magistrados e autoridades em geral reagem contra o fato de serem investigados, na verdade estão se comportando como se fossem os donos do poder. Parece que a "coisa pública" no Brasil ainda está muito privada.
IHU On-Line – Como esse fato repercutiu junto à população? Acredita que a imagem do Judiciário foi prejudicada com esse episódio? Por quê?
Lênio Streck – A repercussão é péssima. É evidente que a imagem do poder Judiciário fica prejudicada. O que as pessoas devem pensar quando leem que um desembargador recebeu, de uma só tacada, um milhão de reais pagos pelos cofres públicos? E o que as pessoas que “ralam” o mês todo para ganhar um pouco mais do que 600 reais pensam da notícia de que foram vários os magistrados que receberam valor semelhante, e não somente um deles? E o que devem pensar sobre o fato de existirem mais de um milhar de autoridades (juízes) sendo investigados? Ora, considerando que, simbolicamente, a figura do juiz tem uma importância social imensa, sem dúvida que os episódios geram efeitos colaterais.
IHU On-Line – Alguns magistrados abriram mão do sigilo fiscal, telefônico e bancário. Essa atitude é exemplar para os demais? Por quê?
Lênio Streck – Veja. Isso não deveria ser necessário. Em uma democracia, há mecanismos para investigar a atitude de autoridades envolvidas com mal feitos (para usar a palavra da moda). O que acontece é que parcela das autoridades se considera acima e fora do alcance da lei. Talvez por isso é que tantos membros do poder Judiciário não tenham obedecido à lei que determina que, ano a ano, sejam fornecidos os detalhamentos de sua movimentação financeira e econômica. O fato positivo nesse "abrir mão dos sigilos" é o aspecto político, porque deixa os envolvidos em maus lençóis.
IHU On-Line – Qual é a medida que será tomada caso essas movimentações consideradas atípicas pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF sejam concluídas como ilegais?
Lênio Streck – Há um conjunto de leis que tratam de improbidade administrativa e outros atos ilícitos. Uma atividade atípica, por si só, não quer dizer que represente um crime ou um ato de improbidade. Cada caso deverá ser examinado em suas especificidades, com abertura de prazo para as explicações, defesa, etc. Aliás, nesse sentido, lei é o que não falta. O grande problema é a funcionalidade das leis, principalmente as leis que tratam dos crimes do colarinho branco, enfim, das leis que tratam dos "mal feitos" do "andar de cima" da sociedade.
IHU On-Line – Hoje há 1.710 juízes sob suspeita, segundo dados do próprio CNJ. A partir de informações como essa, como analisa a questão da credibilidade desse poder em nosso país?
Lênio Streck – Creio que esse número, após as investigações, ficará bem menor. Mas esse não é o ponto. A questão fulcral é que o CNJ está incomodando setores do poder Judiciário. Talvez isso dialeticamente seja a coisa mais importante que esteja acontecendo. Antigamente, dizia-se que a pessoa que tivesse problemas com altas autoridades (pensemos, aqui, na especificidade da pergunta, nos juízes e altos membros dos tribunais, incluindo membros de outras esferas da República) deveria se queixar "para o bispo". Houve um grande movimento de juristas brasileiros em favor da criação do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público. Muitos talvez tivessem apoiado a ideia pensando que "isso não daria certo mesmo", seguindo a tradição da crítica feita por Raymundo Faoro e tantos outros autores sobre a história patrimonialista do Brasil. Ocorre que, ao que tudo está a indicar, o CNJ está dando certo. O pico da crise se colocou no episódio envolvendo a ministra Eliana Calmon, corregedora do CNJ. Aqui talvez valha a máxima de que "não se faz uma omelete sem quebrar os ovos". De todo modo, talvez eu esteja sendo otimista. Posso estar subestimando a força dos setores do velho patrimonialismo que ainda resistem no interior dos diversos setores da vida pública brasileira.
IHU On-Line – O CNJ é um órgão do próprio Judiciário e que existe para fiscalizá-lo. No entanto, está sendo impedido de exercer sua função. Como podemos compreender que o Judiciário seja tão avesso ao controle que ele mesmo exerce?
Lênio Streck – Como já disse, a resposta está no imaginário brasileiro permeado pelo patrimonialismo. Veja o que disse o juiz João Batista Damaceno, do Rio de Janeiro, acerca do episódio: "Isso tudo me parece um embate entre o CNJ e as oligarquias regionais (os tribunais). Somos agentes públicos e devemos prestar esclarecimentos". Observe-se: ele fala em oligarquias. Por isso tudo, insisto na tese de que nesse episódio, apesar de o poder Judiciário sair arranhado, há um ganho político para a sociedade.
IHU On-Line – Em entrevista à IHU On-Line recentemente o senhor afirmou que “os desafios da justiça começam pela democratização dela mesma”. Em que aspectos essa democratização está se concretizando e quais são os principais entraves para que isso aconteça?
Lênio Streck – Há dois âmbitos nessa democratização. A primeira diz respeito à relação poder Judiciário/sociedade (leia-se, aqui também, Ministério Público/sociedade). Quando um ministro do Supremo Tribunal Federal – STF diz que "debaixo da toga bate um coração", podemos pensar em duas coisas. Ou, de fato, ele fez uma crítica ao modo como se exerce o poder judicial no Brasil ou ele fez um discurso "recuperando ideologicamente" o papel de "nobreza" (no sentido não republicano) da função. Nessa linha, "juízes são como as demais pessoas", mas "são juízes" e por isso devem ser tratados de um modo diferente. Quero que me entendam bem. Digo isso, por exemplo, a partir de "atos falhos" constantes nos diversos discursos que conformam a atividade judicial, como é o caso de os tribunais serem chamados de "cortes". Isso também pode ser visto no Parlamento, quando os pares se tratam por "nobre colega", coisa que vem lá do Império. Quando vejo em alguns estados da federação desembargadores chegando com carros pretos, com seguranças e um séquito de assessores, quase que me vejo imaginando uma liteira chegando ao prédio público, carregada por fâmulos. Como disse, pensemos nisso tudo no plano do "simbólico". Afinal, como dizia Castoriadis, "não que tudo seja simbólico"; mas nenhuma relação social existe fora do simbólico.
Democratização e transparência
A segunda questão tem a ver com a democratização entendida como transparência. Aqui já estamos falando do caso específico dos casos de pagamentos irregulares ou desvios de função. Isto é, se as corregedorias dos tribunais têm a função de descobrir e/ou investigar os "mal feitos" – palavra "tucaneada" pela presidente Dilma para evitar a palavra "corrupção" ou "improbidade" –, a pergunta que se coloca então é: Por que tantos casos são descobertos via CNJ? Ou seja, se a Associação dos Magistrados tem razão quando diz que a atividade do CNJ é subsidiária, qual a razão de persistirem tantos problemas? De todo modo, repito: haverá um ganho social nisso.
IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?
Lênio Streck – Há alguma coisa em terrae brasilis que resiste ao caráter público que deve ser inerente à República. Isso está difusamente espalhado, como que capilarizado nos diversos setores da vida pública. Isso forma uma espécie de imaginário ou, para de novo recuperar um autor quase que já não lido, Cornelius Castoriadis, um "magma de significações", no interior do qual já não se sabe quais gatos são pardos e quais são os não pardos. Falo, aqui, em um âmbito geral da sociedade brasileira. Por exemplo, o discurso contra a impunidade incorpora conteúdos mitificatórios. Quando se fala em impunidade, fica a impressão de que "ninguém é punido". Ora, as estatísticas mostram que já passamos de 500 mil presos. E quem é essa gente? Do "andar de baixo". Veja-se o Cacciola. No Natal, mesmo em pleno cumprimento da pena, foi autorizado a ir a uma festa aqui no Rio Grande do Sul. Quando estava preso, sua cela tinha um conjunto de regalias. E assim por diante. Ninguém "faz lei contra si mesmo". Os deputados e senadores falam em impunidade, mas, na prática, aprovam leis que punem sempre com mais rigor os setores pobres da sociedade. Assim, de certo modo, comportam-se os agentes encarregados de aplicar a legislação: quando se deparam com delitos do colarinho branco ou "mal feitos" cometidos pelo andar de cima, há sempre – lembremos do "magma de significações" – um olhar diferenciado. Por razões objetivas ou subjetivas, por questões de legislação ou por questões da própria desfuncionalidade do sistema judicial. Mas há sempre uma névoa proveniente desse "magma" que obnubila o olhar.
Só para fornecer um número, inserido nas estatísticas oficiais: desde o surgimento da Lei da Lavagem de Dinheiro (1998), somente 17 casos foram objeto de sentenças condenatórias finais. Já os números relacionados aos "mal feitos", envolvendo furtos e estelionatos, passam de 100 mil no mesmo período. Tudo isso se corrige com transparência. Mas que essa palavra não se transforme em um enunciado performativo. Ou em uma palavra "anêmica", como "resgatar a cidadania", etc., que acabou empalidecendo e perdendo o vigor.
Por Márcia Junges
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''O CNJ está incomodando setores do Judiciário''. Entrevista especial com Lênio Streck - Instituto Humanitas Unisinos - IHU