09 Junho 2016
“A prioridade de um país deve ser a preservação de sua gente. (...) A prioridade é pensar no povo brasileiro, mas pensá-lo com realismo”, adverte o economista.
Fonte: www.vlaudeyliberato.com |
Na avaliação dele, “infelizmente” o atual governo tem “uma inspiração neoliberal muito forte e não está colocando em primeiro plano a grande questão do Brasil de hoje: o Brasil é urbano e dentro das cidades há muitas pessoas desempregadas, sem seguro-desemprego e, inclusive, passando fome”. Aliás, frisa, “temos de aceitar como fato terrível que temos uma situação de fome avançando sobre a população urbana”.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone na manhã de ontem (08-06-2016), Lessa afirmou que é “contra a política econômica que está sendo executada, o que não quer dizer que fosse a favor da política econômica que Dilma fazia”. Para ele, no atual momento, o Brasil está “caminhando em uma direção muito perigosa, aliás, o perigo da situação foi visto com a própria situação que Dilma transmitiu de herança, ou seja, deixou um cenário político em que todas as lideranças dos partidos estão vulneráveis”.
No que diz respeito à economia, explica, a “crise econômica é de difícil resolução” porque “se acentuarmos a contração da atividade da indústria metalomecânica, teremos uma recessão e uma situação de desemprego trágico dentro do Brasil, e se tentarmos proteger essa indústria, teremos uma situação de mobilidade cada vez mais dramática”.
Ex-presidente do BNDES, Lessa também comenta as mudanças anunciadas por Temer referentes ao Banco e pontua que “o BNDES é visto, no atual governo, como uma roda quase inútil, porque a ideia de que o investimento privado é compatível com o clima de cortes e de redução dos fundos disponíveis é uma característica da visão neoliberal. Essa moça que virou a presidente do BNDES [Maria Silvia Bastos Marques] é uma neoliberal e creio que ela fará a lição de casa, que é rigorosamente atrofiar as operações do BNDES. Agora, isso não quer dizer que eu faça minha a orientação que foi dada ao BNDES no período que vai praticamente de 2005 até agora; não faço”.
Na avaliação do economista, entre as soluções para resolver as atuais crises no futuro, destaca-se a necessidade de fazer uma reforma política e o aperfeiçoamento da consciência do voto. Nesse sentido, menciona, a população precisaria mudar a perspectiva durante o voto e se perguntar: “Eu voto a favor do quê? E não contra quem”.
Carlos Lessa é formado em Ciências Econômicas pela antiga Universidade do Brasil e doutor em Ciências Humanas pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Campinas - Unicamp. Em 2002, foi reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e presidente do BNDES.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como o senhor está acompanhando o atual momento político e econômico do país? O que está acontecendo no país na sua avaliação?
Fonte: www.aepet.org.br
Carlos Lessa – Penso que estamos assistindo a uma superposição de crises de diversas configurações. A primeira, a mais visível, mais midiatizada e emocionante, é a crise política, mas por baixo dela está uma crise social que é muito ampla. Porém, essa não é uma novidade na vida brasileira, no sentido de que as dificuldades dos vários grupos sociais vulneráveis se acentuaram, embora jamais tenham tido um refresco. Finalmente há uma crise do modelo econômico, a qual interpreto como sendo um corredor polonês extremamente difícil entre o que é necessário para manter a atividade da economia brasileira e o que é necessário fazer para diminuir a sua vulnerabilidade.
Estamos vivendo uma situação muito complicada do ponto de vista de modelos de encadeamentos de atividades econômicas e estamos extremamente vulneráveis por uma razão muito simples: o coração da nossa atividade industrial é a indústria metalomecânica e seus diversos segmentos, em que a mais importante é a indústria de montagem de veículos. Contudo, os números desse mês não deixam dúvidas de que a contração das empresas de automóveis em relação ao mesmo mês do ano anterior foi da ordem de quase 20%, e a contração das vendas de veículos de trabalho, basicamente de caminhões, foi de 30%, ou seja, estamos vendo na estrutura industrial que o produto de maior visibilidade, que é o veículo automotor - seja para consumo, seja para produção -, diminuiu dramaticamente em um ano.
IHU On-Line - O que é necessário para resolver as crises política e econômica?
Carlos Lessa – Essa crise econômica é de muito difícil resolução pela seguinte razão: não se pode diminuir a produção dos veículos automotores sem gerar uma cadeia extensa de desemprego, sem gerar uma crise de arrecadação em diversas instâncias da federação, porque União, estados e municípios dependem muito do que acontece na indústria; porém, se mantivermos o Brasil produzindo, se descobrirá que é impossível resolver a crise de mobilidade urbana. Então, estamos numa situação de “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. Quer dizer, se acentuarmos a contração da atividade da indústria metalomecânica, teremos uma recessão e uma situação de desemprego trágico no Brasil, e se tentarmos proteger essa indústria, teremos uma situação de mobilidade cada vez mais dramática. E nós sequer tomamos consciência dessa encruzilhada, que será muito difícil de ser enfrentada, mas que tem de ser enfrentada, debatida.
Além disso, precisamos aceitar como fato terrível que temos uma situação de fome avançando sobre a população urbana: está aumentando a fome entre as pessoas no país. Aí alguém pode dizer que existe o seguro-desemprego, mas ele só funciona para quem já teve emprego. E quem nunca teve?
Crise política
Sobre a crise política, na minha avaliação, as reformas que foram feitas com a Constituição de 88 tiveram sucesso na dimensão da garantia dos direitos civis, de livre circulação, de não ser preso sem processo, sem possibilidade de defesa etc. Nesse plano o Brasil avançou muito, porém no plano da representação política o sistema perdeu a vitalidade, a promessa de esperança que trouxe quando a Constituição foi proclamada em 88. Então, é necessário discutirmos com seriedade uma reforma política. De novo, trata-se de uma discussão difícil: você acha que os parlamentares vão renunciar a dois anos de mandato e os senadores a seis anos? De forma nenhuma. Então, como se faz uma reforma política com a própria representação política decidindo a respeito? É muito difícil fazer isso. Estamos vivendo impasses: há o impasse da economia e o impasse da vida pública.
Nós brasileiros temos de colocar em discussão o Brasil; o país tem de ser discutido para valer e não podemos ter ódio nesse processo, porque ele é assustador e permite cultivar soluções extremas que não resolvem a situação, mas aumentam o grau de insegurança.
"O sonho não pode ser o de destruir ou esmagar fulano, porque se for isso, estamos convertendo a vida num conflito, cujo prêmio é duvidoso" |
IHU On-Line - Que leitura está fazendo dos desdobramentos da Lava Jato, que trouxe à tona uma série de informações envolvendo políticos do PT, PMDB, PSDB e outros, e as últimas notícias sobre o pedido de prisão de Renan, Jucá e Sarney por tentativa de obstrução da Lava Jato?
Carlos Lessa – A Lava Jato está pegando um partido muito grande, o PT, o segundo maior partido em tamanho, também o PMDB e o PSDB, sem falar nas organizações políticas menores. Como a população vê isso? Pode ver como sendo um descrédito do sistema de representação, mas com isso não se pode esquecer de uma coisa: só é possível mudar o sistema pelo voto, mas é preciso aperfeiçoar a consciência do voto. As pessoas têm de perguntar o seguinte: eu voto a favor do quê? E não contra quem. Tem de mudar essa perspectiva.
Acho que a população tem a perspectiva de que se trata de uma crise muito complicada, porém, a maneira como ela está lendo a crise é de que há uma crise entre A x B e B x C, mas isso não aponta solução. A grande característica da ordem democrática é que ela leva à vitória e não destrói a oposição. Mas quando cada elite quer destruir a outra, não se tem ordem democrática. Nós estamos vivendo um momento de crise profunda.
A resposta que dou a essa pergunta é parecida com a da maioria da população: estou vendo a situação extremamente difícil a curto e longo prazo. Sei que o longo prazo é feito de sucessivos prazos curtos, mas no curto prazo há um componente fortuito, ou seja, o acidente de percurso, que nenhum de nós controla. O que podemos controlar e discutir é qual é o nosso sonho, para assim nos aproximarmos dele. O sonho não pode ser o de destruir ou esmagar fulano, porque se for isso, estamos convertendo a vida num conflito, cujo prêmio é duvidoso.
Vou dizer uma coisa com toda sinceridade: tenho 80 anos e acho que não vou ver a solução dessa crise, mas a geração que vai ver a resolução dessa crise e levar o Brasil ao patamar de uma sociedade mais avançada é a geração que está na universidade agora e a garotada que está entrando na escola. A briga dessa geração por melhoria de ensino é um dado extremamente importante para a vida brasileira. Eles vão se perguntar por que a educação não melhora.
O Brasil quer ser celeiro do mundo, mas como isso será possível se ainda existe fome no Brasil? Isso é um absurdo. Essas questões serão discutidas pelos jovens, do mesmo modo que a questão da educação, pois se todo mundo diz que a educação é importante, por que não se resolve essa questão? O tema da educação vai politizar, no bom sentido, a sociedade brasileira, e as universidades estão contribuindo para esse debate.
IHU On-Line - Como analisa os primeiros dias do governo interino? Percebe uma tensão interna no governo, que avança e recua em suas decisões? Quais as razões disso?
Carlos Lessa – Durante o governo Dilma eu dizia que a presidente sabe das coisas, mas tem muito medo de fazê-las, então enunciava uma medida e não a fazia ou fazia apenas um pedaço, e com isso conseguia unir críticas a ela por fazer e por não fazer. Temer está na mesma situação e tem um comportamento muito parecido com o de Dilma. Infelizmente, o atual governo tem uma inspiração neoliberal muito forte e não está colocando em primeiro plano a grande questão do Brasil de hoje: o Brasil é urbano e dentro das cidades há muitas pessoas desempregadas, sem seguro-desemprego e, inclusive, passando fome.
Nenhuma sociedade consegue avançar com pessoas tendo essa sensação de vulnerabilidade enorme, que hoje atravessa a sociedade brasileira. A questão da mobilidade urbana continua intocável e, como eu disse, é uma situação muito difícil de resolver. A questão do desemprego e dessa política de exportar alimentos nos joga num corredor polonês, ou seja, estamos numa fila em que dos dois lados tem gente com chicotes e começamos a correr e não podemos parar de correr porque estamos no meio do corredor. Mas só tem um jeito de sair dali: apesar de tomar chicotadas, se continua correndo e no final se vê a luz. Eu acho que temos uma luz no final. O Brasil tem fortes luzes no final, mas ainda está no corredor polonês.
"Nenhuma sociedade consegue avançar com pessoas tendo essa sensação de vulnerabilidade enorme, que hoje atravessa a sociedade brasileira" |
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IHU On-Line - O que é possível esperar da política econômica do governo interino? Já é possível fazer avaliações?
Carlos Lessa – Quando uma pessoa está desempregada, a inflação de 4% ou de 6% tem algum efeito sobre essa pessoa? Nenhum, porque ela não tem acesso às coisas de que precisa. Então, a população convive com as mais variadas taxas de inflação, e todas elas são terríveis para quem está desempregado. O preço do arroz está subindo, mas se a pessoa está desempregada, mesmo se o preço estivesse baixando, ela não teria condições de comer.
O que quero dizer é que a prioridade de um país deve ser a preservação de sua gente. A minha gente brasileira está nas cidades, porque 80% da população é urbana e só vive se puder comprar as coisas. E se não puder comprar, como vive? Quem está com fome tem de comer. Então me pergunto por que os municípios brasileiros não lançam um mutirão de frente de trabalho para quem quer trabalhar, porque quem está desempregado trabalha por um salário mínimo; se o salário mínimo é, na nossa definição, o mínimo que uma pessoa precisa para sobreviver, nós precisamos garantir a sobrevivência dos trabalhadores urbanos. A prioridade é pensar no povo brasileiro, mas pensá-lo com realismo.
IHU On-Line – A política econômica atual não está contemplando essas questões no sentido de encontrar saídas para a situação do desemprego e da retomada do crescimento da indústria?
Carlos Lessa – Não, não vi nenhuma posição em relação a isso. A única notícia positiva que ouvi do governo Temer é que não venderá a Petrobras. Isso é positivo, mas não é suficiente, porque se puxar o tapete dos negócios que a Petrobras precisa, ela irá se converter cada vez mais numa empresa vulnerável. Então, não pode mexer no regime de concessões. Se mexerem para tornarem a Petrobras mais frágil, estaremos mal.
O grande ativo que o Brasil tem hoje são os 300 bilhões de dólares de reserva internacional. Eu usaria uma parte dessas reservas para comprar ações da Petrobras na Bolsa de Nova York, para recuperar o controle. Como vamos aceitar que a maior empresa brasileira seja tornada um ativo cada vez mais barato? Não consigo entender. Prefiro ter ações da Petrobras do que dólares ou euro. Aí alguém pode dizer que ter dólar e euro dá oxigênio. Mas não, isso está retirando o nosso oxigênio, porque ao invés de estarmos com a Petrobras correndo risco de ser condenada a pagar bilhões de dólares, nós deveríamos estar comprando ações da Petrobras. Foi irresponsável a atitude de vendê-las, e se as ações estão muito baratas, está na hora de o Brasil comprá-las. O que estou querendo dizer é que algumas questões podem ser discutidas com seriedade.
IHU On-Line – Como o quê, por exemplo?
Carlos Lessa – Não acho que os processos burocráticos brasileiros possam ser aplaudidos. Não acho que possa ser aplaudido o fato de o governo estar dividido em mais de vinte ministérios, e também acho um erro brutal que quase 40% dos cargos públicos sejam de comissões, mas é possível repensar a organização do Estado brasileiro. Não acho nada interessante que as pessoas saiam do setor privado e vão para o Banco Central e depois retornem para o setor privado. É uma promiscuidade terrível. Os funcionários de carreira do Banco Central que deveriam ser os diretores do Banco. Do mesmo modo, os funcionários de carreira deveriam substituir os cargos de comissão.
Ontem foi sabatinado o presidente do Banco Central [Ilan Goldfajn], e ninguém perguntou a ele como se sentia transitando do Banco Itaú para o Banco Central e depois voltando para o Itaú. Isso é terrível. O cargo de presidente do Banco Central é um cargo de Estado e deveria ser, em princípio, ocupado por um funcionário do Banco Central.
Para fazermos uma analogia, nós temos uma boa diplomacia, porque é uma diplomacia de carreira, temos Forças Armadas com carreira definida, ninguém pode nomear um general, e por isso acredito que poderia haver uma carreira no Banco Central. Como você sabe, [Luiz Carlos] Trabuco indicou um presidente do Banco Central. Ele tem 6% das ações do Grupo Bradesco. Logo, essa não é uma situação correta. Assim como não é uma situação correta o atual presidente do Banco Central sair de uma carreira extremamente bem nutrida no Banco Itaú para ir para o BC. Os diretores do Banco Central sempre são recrutados de bancos privados, e sabem que ao saírem do Banco Central poderão fazer carreira nos bancos privados. Você quer fazer o favor de me explicar que promiscuidade é essa? É como se generais pudessem fazer assim: saem da carreira como major e voltam para a carreira como generais. O que você acha? Isso é muito complicado e essas questões precisam ser discutidas.
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"Não se pode fazer com que o ganho do exportador seja aumentar a fome dos brasileiros desempregados" |
Também não acho correto fazer o país prisioneiro da taxa de câmbio, porque, para proteger a indústria, a taxa de câmbio tem que estar mais alta, mas protegendo a indústria com a taxa mais alta, premia muito além do razoável quem exporta. Então, seria necessário algum imposto de exportação, pois nem isso nós temos no Brasil, e o imposto de importação pode ser aplicado em alguns momentos como diferencial para manter o preço interno e ao mesmo tempo permitir que o exportador ganhe. Mas não se pode fazer com que o ganho do exportador seja aumentar a fome dos brasileiros desempregados. Espero que decisões desse tipo sejam discutidas.
Sou contra a política econômica que está sendo executada, o que não quer dizer que eu fosse a favor da política econômica que Dilma fazia. Estamos caminhando em uma direção muito perigosa, aliás, o perigo da situação foi visto com a própria situação que Dilma transmitiu de herança, ou seja, deixou um cenário político em que todas as lideranças dos partidos estão vulneráveis. Portanto, é óbvio que precisa haver um reforma política. Mas dá para fazer a reforma política com os políticos que querem manter seus mandatos? Como fazer a reforma política certamente é o ponto, porém como fazer começa por uma discussão muito séria sobre educação, comida, desemprego, e não com essa discussão de “corta, corta”. Aceito uma taxa de inflação mais alta se não houver desemprego no país porque, como disse, para o desempregado, a taxa de inflação é sempre infinita. Então, se tiver que ter alguma inflação para gerar emprego produtivo, eu estou dentro.
Acredito que há emprego produtivo no país para toda a força de trabalho urbana desempregada. E sabe qual é? Não estamos com um mosquito [Aedes Aegypti] pela frente? Por que não fazemos uma frente de trabalho para enfrentar a questão do mosquito na cidade? Poderíamos reduzir poderosamente os locais onde ele pode se multiplicar, como terrenos baldios abandonados e cheios de lixo, construções fechadas. Na verdade, deveríamos estar mobilizando a população disponível para enfrentar o mosquito. Essa questão da saúde pública é prioritária e se começa tentando resolver os problemas de saúde pública e evitar a fome.
IHU On-Line - O senhor já presenciou outros momentos de crise no país. Eles se assemelham à atual ou vivemos um momento peculiar?
Carlos Lessa – Eu vi outras crises no Brasil e vi uma crise absolutamente colossal, que foi a do início dos anos 1960, porém havia no debate da época uma linha que propunha reformas de base e outra linha que propunha uma paralisação conservadora. Ganhou a paralisação conservadora e ela fez uma coisa que é preciso relembrar: tentou degolar a oposição. Porém, o mais curioso de tudo é que dentro do Golpe Militar houve um segundo Golpe em 1967, ou seja, a verdade é que em quatro anos a situação de 1964 se modificou, mas isso não quer dizer que tenha se modificado para ir para o paraíso.
Aliás, nasci em 1936, isto é, na Era Vargas, e acho que o Brasil até 1988 foi um Brasil com Vargas, contra Vargas e sem Vargas, pois Getúlio Vargas se manteve como a expressão de um projeto nacional, que agora acabou. Qual é o projeto? Eu não sei. Qual é a diferença fundamental entre o projeto de Fernando Henrique Cardoso e o projeto do primeiro governo Lula? Qual é a mudança fundamental entre o Lula do segundo mandato e a Dilma do primeiro mandato? Qual é o projeto nacional que anima o Brasil? Em 1988 tivemos um projeto nacional, que era recuperar os direitos que haviam sido afrontados, desprezados e violentados no processo autoritário, e nós queríamos melhorar a questão social. Eu interpreto que os direitos civis foram recuperados e a tentativa de enfrentar um pouco a questão social foi feita no governo do PT. Porém, qual é o combustível de agora? É o combustível que “mata e esfola”?
O Brasil precisa lutar contra a corrupção, porém se luta contra a corrupção lançando mão da violência? Não é por aí. Temos de formar uma consciência contra a corrupção, uma consciência a favor do Brasil e do povo brasileiro.
IHU On-Line - Alguns criticaram o BNDES nos últimos anos por conta da sua intervenção e apoio aos gigantes econômicos. O que deu errado no projeto lulista em relação ao BNDES e que mudanças é possível esperar da nova gestão?
Carlos Lessa – Essa é uma pergunta extremamente interessante. Diria que o BNDES é visto, no atual governo, como uma roda quase inútil, porque a ideia de que o investimento privado é compatível com o clima de cortes e de redução dos fundos disponíveis é uma característica da visão neoliberal. Essa moça que virou a presidente do BNDES [Maria Silvia Bastos Marques] é uma neoliberal e creio que ela fará a lição de casa, que é rigorosamente atrofiar as operações do BNDES. Agora, isso não quer dizer que eu faça minha a orientação que foi dada ao BNDES no período que vai praticamente de 2005 até agora; não faço.
O Brasil apoiar as atividades dos grandes grupos brasileiros ligados à exportação de produtos brasileiros não é uma ideia errada. A ideia errada é fazer isso sem nenhum critério com respeito a investimento dentro do Brasil. Por exemplo, só para mencionar o exemplo da Petrobras, a compra da refinaria de Pasadena e a compra da refinaria do Japão são erros imensos, porque o que tínhamos de fazer era desenvolver internamente as atividades energéticas no Brasil, ao invés de comprar ativos duvidosos no exterior, que já viraram hiperduvidosos. Além disso, houve corrupção.
Se somarmos os erros estratégicos e a corrupção, teremos uma equação muito ruim. No entanto, a Petrobras é um sucesso, apesar de tudo. Aliás, a coisa que mais me chamou a atenção foi que nos últimos meses a Petrobras foi a companhia brasileira – das listadas na bolsa de valores - que mais recebeu novos acionistas, e isso é uma indicação de que o povo brasileiro aplaudiria se o governo retornasse as ações que foram mandadas para o exterior.
Também considero que a fusão da Petrobras e da Eletrobrás seria fundamental para o nosso Brasil; sou favorável a uma empresa chamada “Energibras”, mas com diretores de carreira. A ideia do cargo em comissão é do cargo que chega com o governo para dar marca daquele governo, porém as funções de Estado são funções de carreira. Nós poderíamos começar a discutir a gestão pública para a democracia, não? Esse é um filão importante para ser explorado.
"Os Estados Unidos não estão moribundos, mas estão tendo uma 'visita da saúde' do velho espírito norte-americano com Trump" |
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IHU On-Line – Vislumbra mudanças na política externa brasileira com o novo governo? Alguns têm feito críticas à postura que está se adotando em relação ao Mercosul. O que o senhor tem percebido e avaliado?
Carlos Lessa – Estou muito preocupado por uma razão: a diplomacia brasileira não está interpretando corretamente, no momento, a situação mundial. Creio que tende, sim, a mudar, e mudar para pior. Não penso que o governo Lula tenha sido um governo brilhante, mas pelo menos tentou afirmar a soberania brasileira nas relações internacionais.
Como abriremos mão do Mercosul? Como abriremos mão do sonho da integração sul-americana em um mundo que está cada vez mais vivendo uma situação geopolítica complicadíssima? Há um projeto Eurasiano que torna a América do Sul mais marginal e mais marginalizada, uma navegação pelo Ártico, deslocando a navegação do Cabo, na verdade, tornando, ao meu juízo, a América do Sul mais ao Sul do mundo.
Nós temos nos Estados Unidos uma ressurgência do velho espírito norte-americano com a candidatura do [Donald] Trump, que se propõe, explicitamente, a fazer um muro em relação ao resto do mundo e especialmente em relação aos latino-americanos. Nós estamos vendo uma desagregação do chamado bloco Anglo-saxão, em que a Inglaterra não sabe se vai ou se fica, se fica ou se vai; mas se for ou não for, Estados Unidos e Europa caminharão em uma ou outra direção. Agora, vemos a Europa, claramente, em uma das alternativas caminhando para a Eurasia.
Nós estamos no Atlântico Sul, com uma enorme perda de trabalho do pré-sal, no baixo ventre da economia norte-americana, com Trump falando de levantar um muro. Dialeticamente pode ser que a vitória do Trump favoreça o Brasil no sentido de pensarmos de novo mais a nação brasileira, porque a vitória do Trump colocará a nação dos Estados Unidos em pauta como uma força muito grande. Eu não acho que a vitória do Trump, se acontecer, será qualquer catástrofe, acredito que não haverá guerra mundial com ele; o Estado norte-americano é suficientemente inteligente para impedir uma coisa dessas. No entanto, creio que o nacionalismo norte-americano será politicamente uma diversão “re-dominante” e rearticulada do mundo.
Antigamente havia uma expressão chamada “visita da saúde”, ou seja, quando um moribundo está péssimo, poucos dias antes do falecimento, apresenta uma melhoria. Os Estados Unidos não estão moribundos, mas estão tendo uma “visita da saúde” do velho espírito norte-americano com Trump. Para nós, isso é hostil, mas a hostilidade fará com que tenhamos consciência da importância de reforçar os laços com nossos irmãos sul-americanos e africanos. Tenho a impressão de que os dados geopolíticos do mundo se modificarão muito, e o Brasil pode ter brechas aí.
Por Patricia Fachin
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'O Brasil tem fortes luzes no final, mas ainda está no corredor polonês'. Entrevista especial com Carlos Lessa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU