20 Janeiro 2009
Considerado um dos maiores epidemiologistas especializados em endemias do Brasil, Paulo Sabroza explica, na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, a ocorrência da febre amarela no Brasil, principalmente no Rio Grande do Sul, esclarecendo que “o que é certamente novo, e muito preocupante, é o registro, nas últimas duas décadas, de epizootias em primatas selvagens em áreas muito próximas de centros urbanos nas regiões Centro-Oeste, Sudeste e, agora, no Sul. Primeiro, porque muitas destas cidades têm índices de infestação elevados pelo Aedes Aegypti, o que as torna vulneráveis a uma desastrosa introdução do ciclo urbano da febre amarela. Segundo, porque atinge áreas onde a população não está imunizada rotineiramente com a vacina contra a febre amarela, obrigando a um esforço de vigilância e vacinação de bloqueio que nem sempre são efetivos e oportunos”.
Ao falar também sobre a dengue, Sabroza considera que “o que todos estes problemas de saúde estão apontando é que nossos modelos de desenvolvimento e de atenção à saúde conseguiram aumentar a expectativa de vida da população, reduzindo muito a mortalidade por doenças infecciosas, mas não impediram o aumento da vulnerabilidade sócio-ambiental em relação a diversos agravos, impondo a necessidade de vigilância e cuidado com estes problemas emergentes”.
Pesquisador-titular da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp) da Fiocruz, Paulo Sabroza possui graduação em Medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestrado em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - O que significa o retorno da febre amarela no contexto social atual do Brasil? Em que condições ela voltou?
Paulo Sabroza – É necessário acentuar que o que estamos observando não é o retorno da febre amarela urbana, que produziu grandes epidemias nas grandes cidades brasileiras no início do século XX. Depois da interrupção da transmissão da febre amarela urbana pelo Aedes Aegypti foi constatado que o vírus continuou circulando como uma zoonose em áreas com cobertura florestal, sendo transmitido por outros mosquitos de hábitos silvestres, e tendo, como hospedeiros vertebrados, diversas espécies de macacos da fauna da América do Sul. Este ciclo silvestre foi identificado inicialmente no estado do Espírito Santo, há mais de cinqüenta anos, mas depois pôde ser comprovado pelo isolamento do vírus em macacos e em humanos, em todas as grandes regiões do país.
Até 1990, a grande maioria dos casos humanos ocorreu na Amazônia, justificando a vacinação obrigatória para todos os seus residentes e viajantes que se deslocavam para aquela região.
Mas pelo menos três grandes epizootias em macacos foram registradas nas últimas cinco décadas no Brasil e países vizinhos, com ocorrência de casos humanos e propagação para áreas onde a circulação do vírus não circulava habitualmente, como as bacias dos rios Paraguai e Paraná.
A ocorrência não é nova
A ocorrência de casos de febre amarela decorrentes do ciclo silvestre não é, portanto, nova e nem houve nenhum retorno, pois as epizootias são características da circulação do vírus no ambiente florestal, com alta mortalidade para os macacos atingidos e grande risco para as pessoas que entram em contato com estes ambientes no período de alta transmissão ou residam perto das matas.
O que é certamente novo, e muito preocupante, é o registro, nas últimas duas décadas, de epizootias em primatas selvagens em áreas muito próximas de centros urbanos nas regiões Centro-Oeste, Sudeste e, agora, no Sul. Primeiro, porque muitas destas cidades têm índices de infestação elevados pelo Aedes aegypti, o que as torna vulneráveis a uma desastrosa introdução do ciclo urbano da febre amarela. Segundo, porque atinge áreas onde a população não está imunizada rotineiramente com a vacina contra a febre amarela, obrigando a um esforço de vigilância e vacinação de bloqueio que nem sempre são efetivos e oportunos.
IHU On-Line - O que representa o reaparecimento dela numa das regiões mais ricas do Rio Grande do Sul, como Santo Ângelo?
Paulo Sabroza – O risco de ocorrência de casos de febre amarela de ciclo silvestre não tem nenhuma relação com a pobreza da população ou com suas condições de habitação ou o saneamento da área de transmissão. Ainda no ano de 2008 tivemos casos humanos em primatas selvagens no Distrito Federal, que tem um IDH bastante alto. A vulnerabilidade das áreas, e, portanto, o risco da doença em populações humanas, decorre da presença de importantes populações de primatas silvestres em áreas com cobertura florestal próximas a núcleos rurais ou mesmo de centros urbanos. Embora não se saiba, com certeza, o que teria produzido um aumento da vulnerabilidade nas últimas décadas, pode-se considerar que a fragmentação das florestas, pela expansão da agricultura comercial e pelo crescimento das cidades, criou mosaicos com cobertura vegetal modificada, onde diversas espécies de macacos se adaptaram, obtendo alimentos com facilidade. E isso vem possibilitando o aumento da densidade populacional de primatas em certas áreas.
Embora a presença destes animais possa ser considerada um marcador de relativa qualidade ambiental, a ausência de seus principais predadores naturais mostra que a saúde destes ecossistemas está fragilizada, com suas populações sujeitas a grandes oscilações e diversas epizootias. Mesmo se considerarmos que o vírus da febre amarela tenha sido importado da África, ele já está presente há tanto tempo nos diferentes biomas brasileiros que já pode ser considerado um componente da biodiversidade destes sistemas, aumentando ou reduzindo sua circulação.
IHU On-Line - Podemos considerar uma grande contradição o reaparecimento da febre amarela no Rio Grande do Sul quando a medicina no estado é considerada excelente e sofisticada?
Paulo Sabroza – A qualidade da medicina e da saúde pública, como foram consolidadas no estado, não tinham mesmo como impedir a ocorrência de casos de febre amarela do ciclo silvestre. A prevenção e a contenção desta doença exigem fundamentalmente mudanças na organização da vigilância em saúde, com ênfase na detecção e investigação de mortes de primatas não humanos, com a participação de moradores e profissionais do setor ambiental, além de agilidade e confiabilidade no diagnóstico laboratorial. Outra questão central é a capacidade dos serviços de vigilância de demarcar a área sujeita a circulação do vírus, seguida da vacinação de todas as pessoas residentes.
IHU On-Line - Há chances de a doença se alastrar? Que condições são favoráveis para isso? O que a população precisa fazer para ajudar na prevenção da doença?
Paulo Sabroza – Certamente há possibilidade de difusão da epizootia para outras localidades e para outras áreas, como tem ocorrido nos últimos dois anos. As mudanças climáticas podem estar implicadas na expansão da epizootia de macacos na Região Sul, atingindo ainda o Paraguai e o norte da Argentina, mas outros processos de natureza antrópica estão contribuindo para aumentar a vulnerabilidade destes ecossistemas em relação ao vírus da febre amarela. As populações das áreas de transmissão podem contribuir muito identificando precocemente e comunicando aos serviços de saúde e de gestão ambiental a ocorrência de problemas de saúde nas populações de primatas não humanos. Estes não devem ser considerados animais potencialmente nocivos, mas, sim, importantes marcadores da condição de saúde dos ecossistemas.
Vacinação: contribuição essencial
Outra contribuição essencial é a participação das pessoas nas campanhas de vacinação, atuando de forma decisiva no convencimento daqueles mais refratários, e que muitas vezes acabam sendo os que acabam adoecendo. É importante destacar que, ao contrário do que acontece em muitas outras doenças, mesmo se 99,9% da população tiver sido vacinada, aqueles que não receberam a vacina continuarão sob o mesmo risco, não havendo proteção dada pela imunidade de grupo. Também é indispensável a divulgação da informação de que qualquer pessoa que, em decorrência de atividade profissional ou de lazer, for entrar em áreas com cobertura florestal onde existe o registro de ocorrência de macacos, precisa ser vacinada anteriormente.
IHU On-Line - O Rio Grande do Sul não registrava um caso de febre amarela há mais de 40 anos. Esses casos recentes podem servir de alerta para a ocorrência de mais casos semelhantes e até de dengue?
Paulo Sabroza – Certamente existe a possibilidade de ocorrência de outros casos de febre amarela de transmissão pelo ciclo silvestre no Rio Grande do Sul, nas mesmas localidades ou em outras localidades com características semelhantes, entre pessoas que não tenham sido vacinadas. Ainda este ano ou nos anos seguintes. Mas isso não significa que a ocorrência de casos de febre amarela de ciclo silvestre seja um indicador de aumento de risco de dengue, nem nenhum indicativo de risco de febre amarela de transmissão urbana. Seus vetores, assim como os grupos e fatores de risco são diferentes. O que todos estes problemas de saúde estão apontando é que nossos modelos de desenvolvimento e de atenção à saúde conseguiram aumentar a expectativa de vida da população, reduzindo muito a mortalidade por doenças infecciosas, mas não impediram o aumento da vulnerabilidade sócio-ambiental em relação a diversos agravos, impondo a necessidade de vigilância e cuidado com estes problemas emergentes.
IHU On-Line - A palavra epidemia tem sido bastante usada para alertar sobre estas doenças. No entanto, o ministro Temporão disse que não se trata disso. O que caracterizaria uma epidemia?
Paulo Sabroza – Certamente a ocorrência de alguns casos esporádicos de febre amarela em humanos, decorrente de ciclo de transmissão silvestre, não pode ser considerada uma epidemia, embora certamente não fosse esperado nenhum caso para esta região. Seria considerado um surto epidêmico se houvesse uma concentração de casos em uma mesma área, em um período que pudesse caracterizar uma exposição comum, como aconteceu anteriormente com excursionistas na Chapada dos Veadeiros, em Goiás. O que certamente os casos indicam é a ocorrência de uma epizootia nos primatas não humanos, com grande mortalidade destes animais.
IHU On-Line - Que fatores estão envolvidos no comportamento epidemiológico da febre amarela? E da dengue?
Paulo Sabroza – Aqui é preciso insistir que estamos falando de febre amarela de transmissão pelo ciclo silvestre, embora este ciclo esteja agora presente nas proximidades de várias cidades. Os vetores são mosquitos que só estão presentes nas florestas e as pessoas em risco são aquelas que entram nas matas sem terem sido vacinadas, para realizar atividades ocupacionais ou de lazer. Uma pessoa infectada não é uma fonte de infecção, não havendo propagação de pessoa a pessoa pelos mosquitos. A doença é mais freqüente em homens adultos, embora também possam ocorrer casos em mulheres e crianças, quase sempre residentes em casas perto das matas.
Dengue
Já a dengue é uma doença transmitida de pessoa a pessoa por um mosquito essencialmente urbano, o Aedes Aegypti, com sua força de transmissão determinada pela ocupação desordenada das cidades, pela presença de criadores de mosquitos nos domicílios e pela descontinuidade das ações de controle. A circulação do vírus da dengue é modulada pela imunidade de grupo da população e ocorrem casos tanto em homens, como em mulheres. A transmissão da febre amarela através do ciclo urbano, também veiculada pelo Aedes Aegypti, não ocorre mais no Brasil nem em nenhum outro país das Américas. Como a densidade do vetor continua alta em muitas cidades e existe a circulação do vírus da febre amarela nas matas, teme-se que possa ocorrer a passagem do vírus para o ciclo urbano, com resultados desastrosos, em decorrência da falta de imunidade nestes centros e da alta letalidade da febre amarela. Se acontecesse isso, poderiam ocorrer grandes epidemias se não fosse possível a imunização maciça das populações dos grandes centros urbanos.
IHU On-Line - É possível erradicar a febre amarela e a dengue do Brasil?
Paulo Sabroza – Não. Não é possível a erradicação de um agente infeccioso que se mantém em reservatórios silvestres em diversos ecossistemas naturais, circulando nas matas, como o vírus da febre amarela. O que se pode e se precisa fazer é assegurar ações permanentes de vigilância, controle e cuidado com a saúde das pessoas, vacinando as populações em risco e trabalhando junto com o setor ambiental no monitoramento da circulação viral. Quanto à dengue, também não faz sentido atualmente falar em erradicação. O que se precisa assegurar é que esta endemia seja mantida em níveis toleráveis, através de ações de controle orientadas para a redução das condições de transmissão, sendo indispensáveis a ordenação dos espaços urbanos, a regularização do abastecimento de água, o controle dos focos geradores do vetor nos domicílios e a redução da letalidade através do diagnóstico precoce das formas graves e seu tratamento oportuno.
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Febre amarela no Rio Grande do Sul. Entrevista especial com Paulo Sabroza - Instituto Humanitas Unisinos - IHU