08 Junho 2015
"As articulações existentes não se rompem simplesmente colocando 'homens honestos' no lugar dos 'desonestos': trata-se de mudar a lógica institucional, e neste plano nada como associar ao processo o conjunto de novos atores sociais de uma sociedade moderna", escreve Ladislau Dowbor, professor titular de economia e administração da PUC-SP, em artigo publicado por EcoDebate, 03-06-2015.
Eis o artigo.
Um bom ponto de partida é o antropoceno, conceito que ajuda a entender a amplitude do impacto do ser humano, este bípede irrequieto e capaz tanto de criar como de destruir, sobre todo o planeta. De 1750 para cá, com os avanços tecnológicos e a progressão demográfica, geramos uma nova era. O planeta está literalmente em nossas mãos. Em 1900, quando nascia meu pai, éramos 1,5 bilhão de pessoas. Hoje somos 7,3 bilhões, indo rapidamente para os 10. Esta comparação ajuda a entender o ritmo histórico desta explosão demográfica, pois estamos pouco acostumados a pensar o longo prazo. É muita gente, todos querendo consumir mais, com tecnologias cada vez mais poderosas, tanto de extrair como de transformar e contaminar. Esta mistura é tóxica, a não ser que aprendamos a nos administrar de maneira coerente com as necessidades e possibilidades reais.
O relatório de 2014 do WWF resume o drama em uma frase: “Atualmente, a população global está cortando as árvores mais rápido do que podem crescer de novo, capturando peixes mais rápido do que os oceanos conseguem recompor os estoques, bombeando a água dos rios e dos aquíferos mais rápido do que as chuvas conseguem preenchê-los e emitindo mais dióxido de carbono que aquece o clima do que os oceanos e as florestas podem absorver.” Em 40 anos, entre 1970 e 2010, eliminamos 52% da vida selvagem do planeta, sendo que a destruição maior se deu no bioma de água doce, onde perdemos 75% da vida vertebrada.
O drama da água está diretamente associado à desigualdade e ao modelo geral de desenvolvimento elitista que adotamos. O World Water Development Report 2015 da UNESCO constata que “as mesmas pessoas que não têm acesso adequado à água e saneamento é provável que não tenham acesso à eletricidade e dependam de combustível sólido para cozinhar. Cerca de 748 milhões de pessoas não têm acesso a fontes adequadas de água potável, ainda que o número de pessoas cujo direito de acesso à água não é satisfeito possa chegar a 3 bilhões; 2,5 bilhões de pessoas continuam sem acesso a um saneamento adequado. Mais de 1,3 bilhão de pessoas não têm acesso à eletricidade, e cerca de 2,6 bilhões utilizam combustíveis sólidos (essencialmente biomassa) para cozinhar. Estima-se que outros 400 milhões de pessoas dependam de carvão para cozinhar e para aquecimento, os quais, como a madeira, carvão vegetal e outras biomassas causam poluição do ar e têm potencialmente implicações sérias para a saúde quando usados em fogões tradicionais”.
De tanto sucesso como espécie, estamos ameaçando não só a vida do planeta como evidentemente a nós mesmos. Esta verdade elementar, de que a vida não pode se resumir a cada um arrancar o quanto pode, mas que precisamos, numa inversão radical, pensar em quanto contribuímos para o bem-estar de todos e para a saúde da terra, resume a inversão de valores civilizatórios que temos pela frente. Uma boa imagem, é que nesta pequena espaçonave terra não há passageiros, somos todos tripulantes.
Um estudo da situação da água doce no planeta não pode, neste sentido, resumir-se aos aspectos técnicos. Há uma mudança cultural no horizonte, e esta depende vitalmente de uma população informada sobre as ameaças. Não podemos deixar de lembrar que no Brasil 97% dos domicílios têm televisão, onde horas a fio as pessoas são bombardeadas por mensagens consumistas, por uma glorificação do progresso material individual, pelo sucesso a qualquer preço. A própria lógica de como a humanidade é informada está em jogo. Os Murdoch, os Marinho do planeta estão na linha de frente da irresponsabilidade. Uma informação que vive da publicidade de empresas interessadas em aumentar o consumo desenfreado é um contrassenso. Falar em liberdade de imprensa com este tipo de lastro de interesses econômicos não faz muito sentido, e se trata de um elemento essencial da equação.
Ao contrário do petróleo, onde se dividem muito as opiniões sobre as disponibilidades futuras, no caso da água há poucas dúvidas quanto à situação cada vez mais dramática que enfrentamos. As reservas de água do planeta são constituídas por 98% de água salgada e 2% de água doce. Destes 2%, 87% estão bloqueados nas calotas polares e geleiras, e a maior parte do que resta se encontra em águas subterrâneas, na atmosfera e nos organismos vivos. As reservas de água útil são portanto relativamente limitadas, e em muitas regiões do mundo se tornaram escassas. Hoje cerca de um quinto das pessoas no planeta não têm formas de acesso à água limpa minimamente aceitável. Não são pessoas com visibilidade midiática. É uma tragédia silenciosa que se vai avolumando, ao ritmo do esgotamento dos lençóis freáticos, do derretimento das geleiras que alimentam os rios, da destruição das matas ciliares, da contaminação química e bacteriológica.
A escassez nos obriga a considerar a lógica econômica de água e saneamento vistos como setor econômico, diretamente impactado pelo processo universal de urbanização. No campo frequentemente o poço ou o rio resolvem, e a natureza absorve os resíduos. Na cidade o ciclo da água constitui uma indústria. E tratando-se de um recurso vital no sentido mais forte da palavra, a sua monopolização privada pode gerar grandes lucros e maiores dramas. Para uma empresa privada que tem um contrato de gestão de água e esgotos, aumentar o consumo constitui fonte de lucro, e jogar esgotos no rio e no mar equivale a transferir os custos para a sociedade. As externalidades aqui são fortíssimas pelos impactos que gera na saúde e no desconforto da população.
Na lógica do lucro, é a escassez que faz subir os preços. Um bem público e amplamente disponível como o ar pode ser vital mas não gera lucros. Quando temos um setor público bem administrado que nos fornece água segura na torneira, não compramos água em garrafas no supermercado. E um bem vital, quando se torna privado e passa a obedecer à lógica perfeitamente legal de maximização do lucro, só encontrará limites aos preços e à contaminação ambiental nas explosões políticas, nas revoltas que já foram vistas em tantas cidades. Em termos econômicos, a apropriação privada de um bem vital e de oferta limitada não faz sentido. Coloca-se portanto o desafio do desenho da regulação e da gestão do bem mais importante para a vida e que está se tornando escasso.
Do ponto de vista do consumo, a maior parte vai para a agricultura, que consome 75% da água, enquanto a indústria consome 15% e o uso doméstico atinge 10%, isto como ordens de grandeza, e com enormes variações regionais e locais. Lester Brown resume o problema: “Bebemos em média quatro litros de água por dia, tanto in natura quanto sob forma de café, sucos refrigerantes, vinho e outras bebidas. Necessitamos porém de 2.000 litros de água para produzir o alimento consumido todo dia – 500 vezes mais do que bebemos. A rigor, “comemos” 2.000 litros de água por dia. Cada novo ser humano acrescentado à população mundial eleva drasticamente o consumo de água.”
Além disso a água que utilizamos recolhe os defensivos químicos da agricultura moderna, os resíduos industriais e os esgotos domésticos, e se mistura às reservas existentes, gerando um efeito multiplicador de poluição de uma massa de água incomparavelmente superior ao volume de consumo. Neste sentido, a destruição do recurso pode constituir um problema maior do que o seu consumo, o que reforça o absurdo da situação.
Se acrescentarmos o gigantesco desperdício de água potável causado por uso irresponsável ou por instalações deficientes, temos de constatar que nesta área, das mais vitais para o futuro da humanidade, não se dispõe de instrumentos institucionais minimamente compatíveis para a sua gestão. Temos aqui um dos exemplos mais críticos da destruição dos bens comuns, tão bem estudados por Elinor Ostrom no seu Governing the Commons. A visão de Ostrom, aliás, é preciosa pois apresenta dezenas de exemplos de como em diferentes regiões do mundo, desde os dramas da California rica até as complexas soluções dos produtores de arroz na Ásia, sempre foi essencial a presença organizada das comunidades afetadas e a construção de processos colaborativos inovadores, na linha de pactos do uso e tratamento equilibrados entre os diferentes agentes sociais. Aqui estamos além da simples polarização ideológica entre privatização ou estatização.
Uma contribuição importante na mesma linha pode ser encontrada no estudo de Hilary Wainwright: “Das lutas transnacionais muito efetivas contra a privatização da água emergiu uma ideia inovadora de parceria público-público, ou público-civil, em que as organizações públicas e organizações da sociedade civil que administram serviços públicos colaboram por cima das fronteiras nacionais para dividir experiências, colaborar na busca de financiamentos, e de maneira geral para fortalecer o poder das instituições públicas e civis na gestão de serviços e utilidades públicas. Este modelo público-público/público-civil está se tornando uma ferramenta institucional cada vez mais central na luta contra a privatização e na busca de uma gestão pública de alta qualidade”.
Tocamos aqui um ponto essencial: um bem comum, distribuído de maneira tão desigual no planeta e nos países, tão vital para a sobrevivência de todos, não pode ser gerido sem uma participação negociada e minimamente equilibrada dos diversos usuários. Se a água for vista apenas como um produto oferecido por um produtor e que um consumidor compra, teremos um poder desmesurado de quem controla a oferta, e do lado da demanda prevalecerá a lei do mais forte. Trata-se de um bem comum cuja gestão funciona de maneira adequada apenas onde se construíram pactos entre os diversos agentes interessados, tanto em termos de distribuição como de restrições sistêmicas de consumo segundo as circunstâncias. É uma área onde estamos condenados a aprender a colaborar, planejar e construir capital social. E o homo sapiens nunca foi um grande construtor de consensos.
No caso do Brasil, onde tivemos durante os governos militares um êxodo rural extremamente acelerado – diretamente vinculado não só às oportunidades nas cidades mas em particular pela violência do latifúndio e a recusa de uma reforma agrária que teria fixado mais gente no campo – as periferias urbanas se desenvolveram muito mais rapidamente do que as capacidades de assegurar as infraestruturas correspondentes. O resultado é que num país relativamente próspero, com uma renda média per capita da ordem de 10 mil dólares em 2013, temos 97,6% de domicílios com televisão e 99,4% com acesso à luz elétrica, mas apenas 60,4% com esgotamento adequado, cifra que cai para 34,8% nos 20% de domicílios mais pobres. A frequente privatização, que privilegia a venda de água aos grandes consumidores, na linha das economias de escala, e não pensa o recurso como bem comum, apenas agrava os desequilíbrios herdados de políticas públicas controladas por elites.9
Pesa também aqui uma visão deformada da prosperidade como acúmulo de bens individuais relativamente aos bens públicos de consumo coletivo. Ter um apartamento de luxo, hoje custando na faixa de 15 milhões de reais, mas não poder abrir a janela pelo fedor que exala o rio Pinheiros, rio que um dia seguramente poderá constituir um espaço de lazer e convívio, dá uma ideia do desequilíbrio entre o patrimônio individual e o investimento social. Na ausência do desenvolvimento equilibrado entre bens comuns e patrimônio individual, criam-se guetos de riqueza como Alphaville, dimensão patológica de ricos que se encastelam para estarem de certa forma acima do país em que vivem.
Assim a desigualdade, e a obsessão dos ricos em criarem ilhas de prosperidade em vez de espaços urbanos integrados e equilibrados de convívio deformam profundamente as soluções propostas. O capital coletivo acumulado, sob forma de ruas arborizadas, de redes de energia enterradas, de rios limpos e margens urbanizadas para o lazer, de infraestruturas de transporte de massa que reduzam a pressão do automóvel individual, de ruas resgatadas para o pedestre, de parques que nos assegurem o tempo e o ambiente para respirar a vida, tudo isto faz parte de uma visão que foi em grande pare abandonada em proveito de ilhas de riqueza individual.
Todo investimento em capital coletivo, necessariamente apoiado em amplas iniciativas públicas, é apresentado como gasto, como inchaço da máquina pública e assim por diante. E os impostos correspondentes, como é óbvio, como um crime contra a humanidade. Ao nos espelharmos na água, o que aparece é a burrice de uma construção social desequilibrada. A água é, antes de tudo, um problema político e social, mais do que técnico e econômico.
A burrice é tanto maior quanto se trata justamente das opções mais caras. Rose George realizou uma pesquisa extremamente interessante sobre o que ela chamou de The Big Necessity, que leva o ser humano a defecar sobre o planeta ao ritmo de 1,7 milhão de toneladas por dia: “As pessoas com saneamento decente têm menos doenças e perdem menos dias de trabalho, e não têm de gastar com funerais para as suas crianças mortas com cólera ou disenteria. Economizam nos medicamentos, e o estado economiza com tratamentos hospitalares caros. Cada dólar investido em saneamento traz um retorno médio de $7 em gastos evitados com saúde e ganhos de produtividade”. O estudo de Rose George é precioso e direto. Onde a ONU fala em “water related diseases” ela explicita que se trata essencialmente de “shit-related diseases”. Estamos falando de milhões de crianças que morrem todo ano das doenças geradas. A burrice econômica e a ganância das elites tem também enormes custos humanos.
Os desmandos, naturalmente, não são particularmente brasileiros. No balanço feito para a Rio+20 em 2012, constata-se que um “no ritmo atual de progresso, o mundo não cumprirá o objetivo das Metas do Milênio de reduzir pela metade a proporção de pessoas sem acesso ao saneamento adequado em 2015. Na realidade, no ritmo atual de progresso será necessário esperar até 2049 para que 75% da população global possam dispor de instalações sanitárias e outras formas de saneamento adequado”.
São Paulo nos oferece um exemplo de a que ponto se trata mais de um problema político e de gestão do que de falta de água: convivemos com o absurdo de torneiras secas e inundações. A região metropolitana de São Paulo constitui uma mancha urbana da ordem de 30 por 50 quilômetros, ou seja, 1.500 km2. Destes, cerca de 950 km2 foram impermeabilizados com cimento ou asfalto. Para se ter uma ideia do problema, uma chuva de 50mm representa 75 milhões de metros cúbicos de água buscando saída na “bacia” assim formada. Na ausência de políticas planejadas, as respostas se dão segundo as pressões pontuais de populações desesperadas com inundações e os interesses das empreiteiras.
A resposta será a canalização de um trecho de córrego, para atender à demanda de um bairro e aos interesses das empreiteiras, o que evidentemente acelerará a chegada da água para o bairro seguinte. O acúmulo deste tipo de soluções transformou São Paulo num conjunto de “tobogãs” em que a água chega com grande rapidez às partes mais baixas, e hoje mesmo uma chuva média paralisa a cidade. O gigantesco funil que se forma deságua no Tietê, onde a capacidade de escoamento se vê naturalmente ultrapassada, o que por sua vez resulta em novos contratos com empresas de desassoreamento, e na construção de piscinões de contenção.
As alternativas são conhecidas: em vez de simples canalizações que aceleram o fluxo da água, precisamos proteger as várzeas, recuperar a permeabilidade do solo, rearborizar encostas e melhorar a retenção de água nas áreas intermediárias. O problema central reside por tanto, uma vez mais, na geração de instituições e mecanismos de decisão que permitam voltar a um mínimo de racionalidade na alocação de recursos.
Em termos econômicos, enquanto um produtor de camisas que vende caro demais será substituído no mercado por produtores menos gananciosos ou mais produtivos, inclusive de outros países, no caso da água limpa trata-se de um bem escasso, que pertence a um espaço econômico local, e cuja demanda é muito inelástica: as pessoas pagarão qualquer preço por um bem que é vital. Aqui, em termos rigorosos, a escassez torna-se uma formidável fonte de lucros potenciais, e é natural que o controle do setor seja visto com cada vez mais interesse pelas corporações internacionais da água como Veolia ou Suez-Ondeo.
No caso brasileiro, o setor terminou sendo controlado por uma associação firmemente estruturada de empreiteiras, de companhias estaduais de água e saneamento, de empresas de loteamento e de políticos corruptos, o que implica que tampouco se deve ter ilusões sobre as orientações que presidirão à manutenção do sistema público existente. Esta articulação perversa de interesses permite às empreiteiras sobrefaturar de maneira escandalosa as obras, o que reduz drasticamente o volume de infraestruturas disponíveis, além de privilegiar obras faraônicas de pouco sentido econômico; as companhias estaduais passam a ser essencialmente vendedoras de água, desleixando o saneamento, na medida em que vender água constitui hoje uma grande indústria e permite financiar tanto o sobrefaturamento das empreiteiras como a reeleição dos políticos corruptos; e no espaço cada vez mais valorizado das cidades, comprar antes os terrenos que serão dotados de infraestruturas constitui uma tradição dos grupos ligados à especulação imobiliária. Como os políticos eleitos pelo setor permitem manter a legislação existente, ou inclusive alterá-la no sentido de uma privatização ainda maior, os nós do sistema ficam bem amarrados.
Há uma série de fatores que dificultam a regulação do setor. Primeiro, trata-se de um setor extremamente capilar, no sentido de dever chegar a cada residência, cada empresa, cada comércio, cada unidade agrícola. Segundo, trata-se de um setor que funciona como sistema, onde a água usada de um usuário pode se tornar a fonte de poluição para outro, onde a poluição do solo pode destruir as reservas de água de toda uma região, onde uma urbanização mal planejada pode destruir áreas de mananciais e a sobrevivência de outras regiões. Em terceiro lugar, trata-se de interesses difusos, em que a disponibilidade da água é vista como algo óbvio e natural. As pessoas têm dificuldades de entender como uma ação simples como a de jogar um objeto na rua ou no córrego, multiplicada por milhões de habitantes, torna-se um drama social e econômico.
É preciso salientar também a que ponto o caráter recente da urbanização pesa na cultura do setor, já que as pessoas ainda não assimilaram o fato que água tratada entregue no domicílio ou na empresa é um produto caro e escasso, e não têm consciência da dimensão sistêmica da problemática ambiental urbana. Finalmente, não podemos deixar de enfrentar a guerra das grandes corporações internacionais pela comodificação da água, que seria privatizada e o seu uso restrito a quem por ela possa pagar, como no mercado do petróleo ou da madeira.
Pelos desafios que apresenta, a problemática da água tanto pode evoluir para situações catastróficas como pode se tornar um vetor das formas mais modernas de gestão sistêmica, indispensáveis para um desenvolvimento minimamente sustentável no longo prazo. Alguns pontos-chave a se levar em consideração poderiam aqui ser os seguintes:
Desenvolver a capacidade de planejamento: trata-se de um setor onde as soluções adequadas devem levar em conta o desenvolvimento no longo prazo, e envolvem sistemas articulados de infraestruturas complexas e caras. Não há “mão invisível” que resolva este tipo de problema. Trata-se de um setor que por natureza exige forte presença do setor público, com capacidade de ultrapassar estreitas divisões setoriais e regionais para planejar em função da principal unidade espacial que é a bacia hidrográfica.
Privilegiar as ações preventivas: os custos de recuperação de regiões poluídas são incomparavelmente mais elevados do que a prevenção. É preciso manter ou resgatar a permeabilidade do solo, controlar a poluição industrial, reduzir os desmatamentos, proteger os mananciais, criar uma cultura de redução e reciclagem de lixo e assim por diante. A questão da água permeia praticamente todos os grandes desafios ambientais.
Privilegiar o enfoque integrado: uma empresa do Estado que lida com água pode achar que o aprovisionamento de um bairro ou de uma região não se justifica, sem ver que os custos adicionais de saúde gerados para outro segmento do Estado podem tornar-se incomparavelmente maiores. Empresas coletoras de lixo deixam de prestar o serviço em bairros de difícil acesso, levando a uma maior poluição dos córregos e rios, e em última instância a custos muito maiores de abastecimento em água segura. Uma visão ampla de saneamento urbano, ou de cidade limpa e saudável, envolvendo tanto o abastecimento de água, como esgoto, lixo, drenagem e controle de vetores é essencial para que as políticas tenham algum sentido.
Privilegiar os espaços locais de ação: a integração efetiva das políticas exige que os diversos segmentos de atividade hoje separados sejam coordenados em função de resultados sinérgicos no nível de cada comunidade. Resgatar a cidadania nesta área implica trazer o nível de decisão para o nível onde o cidadão conhece o efeito das políticas empreendidas. Este princípio da proximidade é essencial, pois deve permitir que o grande ausente das decisões, o usuário dos serviços, tenha o seu papel resgatado. Os municípios, grandes ausentes do processo, têm aqui um papel essencial a desempenhar. Inclusive, o resgate da capacidade de ação tanto do nível estadual como do nível federal exige melhor capacidade de gestão na base local de forma a encontrar um mínimo de contrapeso às articulações corruptas hoje dominantes. A remunicipalização da gestão da água em cidades onde foi privatizada, como Paris, é neste sentido interessante.
Desenvolver parcerias: é essencial romper a articulação perversa e clandestina que se formou pelas empreiteiras, empresas estaduais de água e saneamento, especuladores imobiliários e políticos fisiológicos, com negociatas a portas fechadas, e substituí-la por espaços formais de elaboração de consensos, com representação dos usuários, das empresas de consultoria, dos institutos de pesquisa, de organizações da sociedade civil ativas no setor, para que as decisões possam refletir efetivamente o interesse público. As articulações existentes não se rompem simplesmente colocando “homens honestos” no lugar dos “desonestos”: trata-se de mudar a lógica institucional, e neste plano nada como associar ao processo o conjunto de novos atores sociais de uma sociedade moderna. Os estudos de Wainwright mencionados, apontando parcerias entre o setor público e os movimentos sociais, e não público-privadas apenas, abre visões inovadoras.
Mudança cultural: a mudança em profundidade do comportamento dos diversos atores sociais e da população em geral não se obtém apenas com leis e regulamentos. Tornou-se absolutamente vital uma melhor compreensão por parte da sociedade dos problemas estruturais que vivemos, e orientar gradualmente os valores para a redução do desperdício, para a preservação ambiental e outras atitudes essenciais para a nossa sobrevivência. Dificilmente tais mudanças comportamentais serão conseguidas sem uma efetiva participação dos meios de comunicação de massa que hoje não só não ajudam, como fomentam ativamente o consumismo irresponsável, a filosofia da modernidade de cimento e asfalto, a obsessão pelo transporte individual, a embalagem cara e não reciclável que entulha as ruas e os córregos da cidade.
O setor de água e saneamento, no sentido amplo que aqui lhe damos, não padece da falta de conhecimentos técnicos ou de engenheiros, e o seu problema sequer é de financiamento. É a dinâmica de regulação do setor que é completamente inadequada, frente às relações técnicas que o caracterizam e às relações sociais e ambientais de uma sociedade moderna. O eixo de transformações necessárias não se circunscreve nem na estatização nem na privatização. Trata-se, antes de tudo, da democratização dos processos de decisão. Aqui, como em outros setores, a ausência desta democratização está acarretando gigantescos custos econômicos e sociais para a sociedade.
Os textos apresentados no presente volume, curtos e diretos, permitem um sobrevoo deste drama em construção, cobrindo áreas tão variadas como a situação do Brasil em geral e das metrópoles em particular, os dramas explosivos do oriente médio ou de países africanos, o poder das multinacionais da água, as respostas que vão desde as cisternas do Nordeste até os programas de remunicipalização da água, as guerras pelo controle das reservas com grandes usuários e poluidores corporativos, os pactos indispensáveis para a regulação adequada deste recurso vital e cada vez mais escasso.
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O drama da água, artigo de Ladislau Dowbor - Instituto Humanitas Unisinos - IHU