10 Abril 2015
"A divisão radical sobre a relação saber-fé entre os dois maiores filósofos da modernidade, ambos tendo fé e ambos mal vistos pela ortodoxia eclesiástica, põe a questão: o saber direciona a Deus ou é somente através do sentimento moral que a elei se pode chegar?", questiona Vito Mancuso, teólogo italiano, em artigo publicado pelo jornal La Repubblica, 07-04-2015. A tradução é de Benno Dischinger.
Eis o artigo.
No Prefácio à segunda edição da Crítica da Razão Pura de 1787 Kant escrevia: “Tive que suspender o saber para dar lugar à fé”. Com a delicada expressão “suspender o saber” ele entendia, na realidade, a demolição da metafísica por ele atuada com sua obra prima publicada em primeira edição em 1781. Quanto à fé, pelo final da Crítica da Razão Pura se lê: “A fé em Deus e num outro mundo está a tal ponto entrelaçada com meu sentimento moral, que não corro um perigo maior de perder aquela quanto não corra de perder este”. Para Kant, a fé não tem nada a ver com o saber, mas procede da moral. Contra esta perspectiva se insurgiu Hegel, o qual em 1802 escreveu um ensaio precisamente intitulado Fé e saber e dedicou boa parte de sua filosofia para reconciliar a fratura operada por Kant. Assim, na Enciclopédia das ciências filosóficas: “Já que o homem é pensante, nem o bom senso nem a filosofia jamais se farão persuadir a não elevar-se da e por meio da contemplação empírica do mundo a Deus”. E ainda: “Dizer que esta translação não deva ser feita, é dizer que não se deva pensar”.
A divisão radical sobre a relação saber-fé entre os dois maiores filósofos da modernidade, ambos tendo fé e ambos mal vistos pela ortodoxia eclesiástica, põe a questão: o saber direciona a Deus ou é somente através do sentimento moral que a elei se pode chegar? Hoje, com respeito àqueles tempos o papel do saber, sobretudo do saber científico, mudou de direção e é evocado como suporte não mais da fé em Deus, como ocorria então, mas de sua negação. É substancialmente a perspectiva hegeliana mudada de sinal: caso se considere o saber oferecido pela ciência, Deus aparece de todo implausível. Assim sustenta o “Novo Ateísmo”, movimento surgido no início deste século por obra de autores como Richard Dawkins, Daniel Dennett, Christopher Hitchens.
Em polêmica direta com esta perspectiva sai na coletânea da editora Raffaello Cortina “Ciência e idéias”, dirigida pelo filósofo da ciência Giulio Giorello (ateu, mas de velho estilo) um livro brilhante e bem documentado de Amir D. Aczel: Porque a ciência não nega Deus. Dotado de uma robusta formação matemática e física que o leva a discutir sem nenhum complexo de inferioridade com os maiores cientistas de nível mundial e que o fizeram escrever um dos melhores livros sobre o fenômeno talvez mais surpreendente da mecânica quântica, dito entanglement [enredamento], e convencido que “o Deus das interpretações literais das Escrituras redigidas por povos primitivos há milhares de anos não existe”, Aczel repercorre todos os campos da ciência contemporânea, chegando à conclusão que o estado atual da pesquisa científica nos consigna à tese sustentada por Kant: a ciência não afirma nem nega Deus. Oferece antes uma série de dados sobre a extrema improbabilidade deste universo e da emersão nele da vida, de modo a alimentar ainda mais as perguntas e as inquietudes: como explicar a circunstância que conduziu as constantes da natureza a revelar-se tão firmemente sintonizadas pelo nascimento da vida e da inteligência?
O que hoje sabemos não elimina, mas antes aumenta a sensação de mistério, à qual referimos estas palavras de Einstein citadas por Aczel: “Quem quer que se ocupe seriamente de ciência se convence mesmo que uma espécie de espírito, amplamente superior ao humano, se manifesta nas leis do universo. Neste sentido, a pesquisa científica conduz a um sentimento religioso particular, de todo diverso da religiosidade de quem é mais ingênuo”. Quem, portanto, sai desafiado pela pesquisa científica hodierna é o dogmatismo: seja o teísta, que retém que Deus passa ser “conhecido com certeza através das coisas criadas”, como estabelece o Concílio Vaticano I, seja aquele anti-teísta, que retém que através da natureza Deus possa ser negado com igual certeza. Somos assim remetidos à certeza de Kant: a ciência oferece dados a partir dos quais se podem desenvolver diversas visões do mundo, como de fato ocorre entre os próprios cientistas, alguns dos quais são ateus, outros crentes (entre estes no século vinte o pai da teoria dos quantos Max Planck, o pai do princípio de indeterminação Werner Heisenberg, o pai da teoria do Big Bang Georges Lamaître, um dos protagonistas da decifração do genoma, Francis Collins, e na Itália os físicos Nicola Cabibbo e Ugo Amolde, e a bióloga e senadora Elena Cattaneo). Se depois é verdade que hoje a maioria dos cientistas é atéia, isso não depende da ciência, que só pode consignar àquele sentido de questionamento contínuo evocado por Einstein, mas da pobreza da religião atual, empedrada no próprio patrimônio dogmático e incapaz de assumir o espírito da livre indagação.
Certamente, nem todos os modos de negar Deus são iguais. Sobre este tema o filósofo genovês Roberto Giovanni Timossi recém publicou pela Lindau: No signo do nada. Crítica do ateísmo moderno, uma guia racional às diversas formas de negação de Deus. Autor de muitas rigorosas publicações, lógico e filósofo da ciência, editorialista de Avvenire, Timossi classifica os ateísmos segundo quatro tipologias:
1) ateísmo antropológico: para ser homem é preciso libertar-se da ideia infantil de Deus;
2) sócio-político: a religião é ópio dos povos;
3) científico: a ciência nega Deus:
4) anti-teodicético: o mal nega Deus.
Segundo o crente Timossi o ateísmo não tem a última palavra, todavia pode jogar um papel importante a cujo propósito ele cita
Dostoievski, cristão convicto, mas também autor de páginas de crítica ateia entre as mais admiráveis: “O perfeito ateu está no penúltimo degrau antes da fé mais perfeita”.
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Nem ateia nem devota, porque a ciência não rejeita a ideia de Deus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU