22 Abril 2014
Faz muito tempo que Vito Mancuso deixou de ser um apócrifo, uma voz escondida e perturbadora do catolicismo italiano, para se tornar canônico, refluindo ao plácido mainstream governado pelos Fazio e pelos Augias. Talvez também seja por isso que, para reencontrar a sua raiz de forasteiro de talento, o teólogo milanês acaba de reunir uma seleção de textos não canônicos (La vita segreta di Gesù. I vangeli apocrifi spiegati da Vito Mancuso, Ed. Garzanti, 252 páginas) a partir de uma literatura vasta e antiga, já que a Bíblia hebraica também tem os seus livros não oficiais.
A reportagem é de Marco Burini, publicada no jornal Il Foglio, 16-04-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Na introdução ao material, com uma nova tradução dos originais de Lorenza Paladino, Mancuso destaca de maneira sóbria e convincente a importância de documentos nascidos por razões não casuais. Acima de tudo, trata-se de "tradições orais ou escritas que, de algum modo, têm a ver com as tradições na origem dos Evangelhos canônicos", como o Evangelho de Pedro.
Segundo, e é o trecho mais sugestivo, eles representam a "curiosidade popular de conhecer mais detalhes sobre os momentos mais exaltantes da vida de Jesus (o nascimento, o período posterior à ressurreição, a figura de sua mãe) sobre os quais os evangelhos canônicos, tão pobres de informação a esse respeito, não poderiam deixar de ser decepcionantes".
Por fim, essa literatura também floresceu pela "curiosidade intelectual de conhecer a doutrina secreta e definitiva que Jesus, tendo voltado ao mundo da morte, teria ensinado aos discípulos nos 40 dias entre a ressurreição e a ascensão" (os textos de derivação gnóstica).
São páginas que oscilam continuamente entre o imaginário e o hiper-realista, salvo as pérolas dos agrapha que se destacam, no meio do volume, pela sua sobriedade.
As palavras não escritas de Jesus são os poucos fragmentos tomados diretamente do rabino itinerante de Nazaré que não resultam dos Evangelhos canônicos (para os quais, no entanto, continua existindo o difícil filtro entre palavras originais e textos redacionais).
"Há mais felicidade em dar do que em receber", "aqueles que querem me ver e tocar o meu reino devem me receber na tribulação e no sofrimento", "quem é casado não deve se divorciar, e quem não é casado não deve se casar": aforismos que não perderam nada da sua carga subversiva, traços de pensamento divino que, despojados do aparato institucional com o qual foram logo revestidos, voltam incandescentes. Um pouco como o apoftegmas dos Padres do Deserto que, nos primeiros séculos, reinventam a fé no espaço vazio fora das cidades.
Memórias do subsolo cristão que nunca deixam de surpreender pelo frescor e pela vivacidade, os apócrifos são para os textos canônicos como as heresias para a ortodoxia: não uma contraposição total, mas sim um confronto articulado que, ao longo da história, às vezes se tornou enredamento e outras vezes mútua, e muda, legitimação.
Sem contar que a formação do cânone, isto é, do corpo de escritos oficiais, durou muito tempo e em meio a mil controvérsias, como acontece justamente a um corpo vivo que cresce e se estrutura no tempo, graças a impulsos e retrocessos.
Só um ignorante pode acreditar que tudo se decidiu da noite para o dia. Para a fixação definitiva do cânone foi preciso esperar o século IV, e, portanto, só se pode falar de apócrifos a partir daquele momento, enquanto antes, no caldeirão, os documentos ferviam juntos. Ou, melhor, a definição formal, uma lista de títulos, enfim, só se teria com o Concílio de Trento, nada menos do que 1.200 anos depois, para reagir à ofensiva de Lutero que havia expurgado alguns textos do cânone.
Os apócrifos e o cânone, portanto, são as duas facetas de uma mesma realidade, a escrita do evento original, uma escrita múltipla desde o início (não um evangelho, mas sim quatro), mas sempre sob o risco de transbordamento (quatro evangelhos, não 20 ou 30).
Nesse sentido, o cânone serve de contenção, é rigoroso, livro do milagrismo típico de muitos apócrifos. Porque, desde o início, o cristianismo não olha para si com satisfação, mas busca uma medida nos seus textos normativos que o tornem plausível a um leitor externo.
Dentre outras coisas, é interessante notar como na formação do cânone contou mais a práxis, isto é, a leitura dos textos na liturgia, do que a teoria, isto é, uma decisão do alto, magisterial (levando em conta que, naqueles tempos, não existia um magistério como o entendemos hoje), que, no máximo, chegou depois para ratificar o seu uso.
No fundo, os apócrifos são preciosos não porque contam uma verdade alternativa, a vida secreta de Jesus, como é intitulada – piscando para o esoterismo – a coleção promovida por Mancuso, mas sim porque, ao longo dos séculos, alimentou o imaginário da Igreja, a sua arte e as suas liturgias.
A instituição é muito mais permeável do que se pensa, tanto que a virgindade e a assunção de Maria ao céu (o último dogma, proclamado em 1950) são testemunhadas nos apócrifos, e não nos textos canônicos. Apócrifos que dão matéria ao dogma: belo paradoxo, típico da fé cristã.
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Vito Mancuso, teólogo apócrifo que volta a ser canônico. Como os Evangelhos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU