Por: Jonas | 03 Abril 2012
O desenvolvimento tecnológico transformou completamente a economia, a ciência, os meios de comunicação e, inclusive, a política. Atualmente, o poder sobre a informação se define na rede, por meio da fibra ótica. De sua parte, os Estados encontraram novas possibilidades para aproveitarem estas tecnologias, gerando novas estratégias de comunicação ou, bem, novos métodos de controle. A posição política de cada governo determina o uso destas tecnologias como ferramentas públicas ou a serviço de interesses privados. A partir de sua militância, Sebastián Lorenzo começou a indagar-se a respeito do impacto das novas tecnologias na política, especialmente na relação entre administração pública e cidadania. Ele fundou o PJ digital (primeiro agrupamento político, na América Latina, a nascer e desenvolver-se integralmente na Internet), o Fórum Internacional das Sociedades Digitais e o Observatório Ibero-Americano de Governo Aberto. Desempenhou-se como diretor da Escola Nacional de Governo, a partir de onde tem estimulado o “Governo Aberto”, formalizando o uso que os governos fazem da Internet como uma ferramenta fundamental para a política e a administração. O projeto se desenvolve junto com políticas públicas, como Conectar Igualdade e Argentina Conectada.
A entrevista é de Julia Goldenberg, publicada no jornal Página/12, 02-04-2012. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Como a tecnologia pode impactar na participação cidadã?
O principal é que vivemos num sistema de representação democrático e isso implica termos um representante que toma determinadas decisões, que, em certo tempo, nós, os representados, expressamos nossa concordância ou discordância por meio do voto. Entre isso, diferentes formas de protesto podem ser a expressão de aprovação ou de rejeição de determinadas decisões. O que ocorre com a irrupção das novas tecnologias é que elas operam como um voto cotidiano. A cidadania consegue manifestar-se todos os dias. Isto é possível, basicamente, pelo suporte: simples, econômico e de uso cotidiano. Não requer uma estrutura institucional custosa, nem se trata de um recurso finito, mas que responde à opinião cotidiana dos cidadãos.
Sempre uso o mesmo exemplo: se eu tenho um livro e te dou, eu fico sem o objeto livro, ao contrário, se eu o tenho digitalizado, em pdf, por exemplo, e te dou, ambos teremos o livro. Isto, que é tão simples, oferece ao cidadão a possibilidade de acessar a certos dados que antes eram escassos. De maneira que pode exigir a abertura destes dados, opinar sobre alguma atividade do governo, sobre algum decreto, etc. Se esta intervenção se torna numerosa, pode chegar a influir na agenda de algum funcionário, por exemplo. A questão é que essa manifestação permanece escrita, sobre a qual muitos outros podem opinar. Seus traços fundamentais são que não respondem à lógica da finitude, transcendendo barreiras físicas (de distância, por exemplo). Portanto, modifica profundamente a participação cidadã.
Ainda assim, uma grande porção da população não pode acessar a estes meios tecnológicos, sejam por barreiras culturais ou econômicas.
Exato. O que aparenta ser muito democrático, até que não alcance uma conectividade total e uma cultura que possa aproveitá-la, pode ter o efeito contrário: uma porção mínima da cidadania definindo a agenda de todo o restante. Hoje, a Argentina é um exemplo para a América Latina, em matéria de políticas públicas, para o desenvolvimento da conectividade.
A primeira é a Televisão Digital Terrestre (TDT), que passou de uma onda analógica para uma onda digital, chegando às casas as ondas digitais. Junto com isto, está sendo entregue um milhão e seiscentos mil decodificadores de forma gratuita, em base da pirâmide. Trata-se de uma tecnologia de ponta que chegará primeiro a uma família pobre, antes do que para o restante da sociedade.
A segunda implementação chave se chama Conectar Igualdade, que almeja entregar três milhões de netbooks. São três milhões de computadores, num país com onze milhões de famílias. É muitíssimo, é um golpe direto à lacuna digital.
E, por último, uma medida pouco conhecida, porque está começando a ser implementada: o programa Argentina Conectada. São cabos de fibra ótica, em todo o país, para levar o acesso à Internet a todos os rincões do país. Isto é chave, porque o Estado opera como avalista para que a Internet seja acessível para todos e que chegue aos lugares que não são rentáveis para a iniciativa privada. Então, são três políticas públicas que, pela primeira vez na história de nosso país (Argentina), estão à altura das revoluções tecnológicas, à altura da época. E, pela primeira vez, a política está um passo adiante em relação ao setor privado.
Como se define a noção de Governo Aberto?
O Governo Aberto é um conceito norte-americano que vem englobar uma série de boas práticas, na hora de se trabalhar na administração pública, para tirar proveito deste momento histórico, em nível tecnológico. Existem grupos de intelectuais, grupos de trabalhadores das redes digitais, de funcionários públicos e de militantes, que começam a pensar em como aproveitar, de melhor maneira, esta mudança de paradigma, no intuito de se conseguir uma gestão mais participativa, mais colaborativa e mais transparente. Os três eixos que o definem, são as três características que propôs Obama para o Governo Aberto. Será necessário ver como avançaremos no processo e quais serão os fundamentos quando planejarmos nosso próprio modelo.
Como a ideia de Governo Aberto chegou à Argentina?
No mundo, havia países que tinham maior conectividade do que nós. Por uma questão de proximidade, nós nos vinculamos com os desenvolvimentos que aconteciam na Espanha. A Europa tinha mais conectividade que a Argentina e já começava a ver estes processos. Quando explode o trem em Atocha, cresce rapidamente o fenômeno de redes. Naquele momento, o governo indicou que o atentado havia sido realizado pelo ETA. Então, frente às contradições do governo, começa a circular a mensagem de texto “Não foi o ETA. Foi a Al-Qaida. Encaminhe”. Esta mensagem foi a evidência de como as redes tecnológicas podem modificar questões políticas concretas. Estimulou o voto dos jovens, que na Espanha não é obrigatório.
A relação com este acontecimento aumentou o interesse da Argentina. Eu ingressei num coletivo chamado “Coletivo das ideias”, que era um grupo de blogueiros liderados por Rafael Estrella, que é, agora, aqui, o embaixador da Espanha. Quando ele era deputado, publicou seu salário na web e arrancou uma grande confusão, todos se viram obrigados a publicarem seus salários. Neste intervalo, começa-se a pensar na possibilidade de um Governo Aberto, na Espanha. O país gerou a primeira plataforma, especificamente, o País Vasco criou Irekia, que é a primeira em espanhol. Foi concebida com software livre para que possamos implementar este sistema, evitando o grande custo que significou construí-la naquele momento. E vamos implementar este modelo em Berisso, o primeiro município que colocará em prática, na Argentina, a plataforma de Governo Aberto.
Conhecendo a procedência desta ideia, qual é a sua particularidade para a Argentina?
Nós estamos num momento muito diferente em relação à Europa, local em que a participação cidadã vai para um lado e a política para outro. Aqui, os governos respondem e dialogam permanentemente com a cidadania. Partindo desta base, a forma de trabalho será outra, para que se chegue a determinado objetivo. Além disso, é necessário ver a capacidade de escuta e de aproveitamento que os governos possuem nas redes. Existem duas questões: a questão técnica e o conteúdo. Sem a técnica, não existe governo aberto, e não há governo aberto sem uma boa escuta nas redes. O componente cultural é o componente fundamental, que marca a diferença.
Existe, além disso, uma diferença em nível econômico? Ou seja, estamos falando de países de primeiro mundo frente a países emergentes.
Justamente. No Conicet está sendo pesquisada esta questão, porque ainda apresentam maior conectividade, isso não implica que se orientem às questões políticas. Ao contrário, na Argentina percebem-se mais intervenções políticas na rede. Tem a ver com este momento histórico, em que a Europa não tem compromisso político, e na Argentina a política tornou-se parte da agenda diária das pessoas. Ainda que eles tenham maior nível de conectividade, isso não implica em maior participação.
Quais são as possibilidades que são abertas para as relações internacionais?
Quando houve a passagem da TV preto e branco para a TV em cores, cada país da América Latina adotou uma norma diferente. E isso foi totalmente predeterminado, de maneira que o conteúdo da Argentina não podia ser visto pelos chilenos, e o conteúdo do Brasil era inacessível para nós (argentinos). Os principais produtores audiovisuais não podiam estar interconectados. Atualmente, antes que se aplique qualquer sistema, unem-se a Dilma e a Cristina e firmam um convênio para usar, por exemplo, a mesma norma de televisão. Assim, um codificador fabricado na Terra do Fogo pode ser vendido na Costa Rica e contar com peças fabricadas na Bolívia. Por sua vez, os telespectadores podem acessar a qualquer conteúdo da região. Acredito que nisto há uma chave concreta de políticas orientadas para as novas tecnologias.
O que se espera da cidadania para o bom funcionamento de um Governo Aberto?
Para o Governo Aberto a ideia é não perturbar a cidadania. Esta necessita poder proporcionar maior informação para melhorar a gestão do governo. A colaboração que mencionamos antes, que caracteriza um dos eixos fundamentais do Governo Aberto, responde à ideia de que um cidadão, além de participar naturalmente na vida política, pode colaborar com o governo. Ao circular maior informação, o cidadão pode ativamente fazer parte de determinadas reformas, pode oferecer seu corpo, seus serviços e tudo o que facilita a tarefa pública. A participação e a colaboração estão muito vinculadas.
Algum exemplo de transformação real?
A norma digital é um exemplo concreto. Aconteceu há alguns meses: as pessoas começaram a manifestarem-se no Twitter com a ordem “não à norma”. Respondiam à implementação de uma norma para todos os artigos digitais. A ideia de colocar um imposto aos artigos digitais para proteger a indústria cultural da cópia digital. Com isto, todos os artigos tecnológicos seriam encarecidos. O projeto estava a ponto de ser aprovado, mas pela manifestação de vários usuários, na rede, ele foi retirado. Os funcionários puderam perceber esta apreciação dos usuários e evitar a implementação da norma que produziu tanto descontentamento. De qualquer forma, é necessário pensar que o tema que se discutiu referia-se à classe média, não à classe mais baixa.
Levar a cabo estes modelos, responde à época em que vivemos ou a uma decisão política?
O Governo Aberto responde a um momento histórico e não é possível prescindir do mesmo. Não há possibilidade de evitar o avanço tecnológico, ajusta-se às práticas contemporâneas, em geral, e a política não está isenta disto. Ou seja, existe uma realidade a respeito das mudanças tecnológicas, e de práticas políticas, que obrigam os governos a se atualizarem. A decisão política está no fato de que o Estado pode atuar como fiador do desenvolvimento tecnológico e ter uma posição ativa na vida política, mediada pela tecnologia, ou pode ficar de lado e deixar o campo livre ao setor privado. A mudança acontecerá, a questão é o lugar que o Estado ocupará nesta mudança.
Qual é a vantagem de que o Estado seja o tutor desta mudança?
Nas redes sociais, os cidadãos podem opinar, porém, elas não foram pensadas para uma participação política, carecem de legitimidade como espaço de debate. Uma plataforma, proporcionada pelo Estado, terá a vantagem de ser um espaço virtual para o debate de temas fundamentais da vida política, evitando a mistura e a contaminação de temas, permitindo aos funcionários uma expressão ampla e clara de seus objetivos. Muitas redes sociais impedem o debate de temas importantes, de maneira completa, porque possuem outros fins.
A informação que circula nessas plataformas é valiosa e se um dia a mesma não mais funcionar, desaparecerá um conteúdo de valor. O Governo Aberto vem apresentar a necessidade de um espaço onde se materializem as demandas dos cidadãos. Isto necessita de um papel ativo por parte do governo. A questão é que tudo isto vai desenvolver-se de qualquer maneira. O problema é que se não houver iniciativa, por parte do governo, não se poderá aproveitar esta ferramenta de comunicação, fundamental para melhorar uma gestão e atender às demandas cidadãs.
Um dos pontos centrais, debatido no momento em que se fala de um Governo Aberto, é a abertura de dados, ao que se refere esta ideia?
Vou propor uma consequência direta do que implica, hoje em dia, a falta de abertura dos dados, que muitas vezes está associada com a falta de transparência. Por exemplo, quando Das Neves não postou os resultados das votações, foi acusado de fraudulento. Ainda não existe nenhuma lei que indique que devem ser postados os resultados na rede, existe uma cultura e uma exigência por parte da cidadania que reivindica transparência nas manobras políticas. Esta exigência se torna legítima porque possui suporte, se consistisse numa demanda materialmente impossível, não haveria legitimidade alguma. Porém, é mais amplo, resume-se na seguinte frase: “se os dados foram realizados com fundos públicos, salvo que afetem a integridade da pessoa ou questões de segurança nacional, devem ser abertos à cidadania”. O suporte facilita o acesso esta informação, levando em conta que ainda existem certos dados que não foram digitalizados. Porém, no que se refere às eleições, não há desculpas. O processo se realiza por meio de computadores, então, é imprescindível publicá-los.
A centralização da informação pode ser um problema.
Esse debate tem a ver com a ideia de transparência, que caracteriza o Governo Aberto. A ideia não é que se centralize a informação, mas que exista um controle sobre a informação que o Estado oferece. Ao contrário, quanto maior a quantidade de informações que circulem, é melhor para a cidadania, e se essa informação chega de forma descentralizada, ótimo. A ideia é que o Estado deve oferecer dispositivos para garantir ao cidadão que essa informação seja realmente oferecida pelo governo. Frente a esse risco, tende-se a resguardar a informação para que não circule conteúdo equivocado. O problema não é a centralização da informação, mas, a validade da mesma, as licenças que a legitimam.
Esta mudança implica à sociedade, à educação, à cultura, ao desenvolvimento técnico e à infraestrutura. Quais são os limites políticos e econômicos para sua realização?
Isto, obviamente, depende de questões orçamentárias, de decisões políticas, de mudanças culturais, da difusão da informação, de militar o tema. Eu refiro que o primeiro projeto político que houver, mais proveito político terá. Porque, se não se realizar, os cidadãos irão reclamar.
Os partidos políticos que se adequaram, com estas tecnologias, modificaram suas estruturas?
Isto está em processo. Em todos os partidos começam a ter quadros que discutem estas questões. Começa-se a existir a intenção de debater tais temas. A direita, por exemplo, começa a pensar modelos de Governo Aberto acercados das corporações: buscando empresas que se responsabilizem do desenvolvimento, consultoras que o organizem, etc. O peronismo se empenhou a promover isto a partir de sua base: existem seminários de formação, quadros familiarizados com o tema, blogs, etc. Isto é uma bomba relógio porque ao ter tanta massa crítica interessada nestes temas, começam a surgir tarefas e ofícios relacionados com o desenvolvimento e a produção do modelo: o funcionário que o aproveita, o “politólogo” que pesquisa, o programador que desenha o software... Nós damos seminários de Governo Aberto, na Escola de Governo, e é incrível a quantidade de pessoas que vêm, escutam, propõem. Nesta instância, o Governo Aberto pode ser um blog, num local em que um dos vereadores apresenta seus projetos e espera uma resposta de seus habitantes. Nesta última etapa, começou a haver uma decisão do governo nacional em apostar fortemente em temas de Governo Aberto. SIGA foi um exemplo da Chefia de Gabinete de Ministros.
Que lugar ocupam as corporações nesta nova dinâmica comunicativa?
As corporações tentarão determinar por onde irá acontecer a informação de tudo isto. Hoje em dia, se eu te envio uma correspondência eletrônica, a informação se vê mediada pelo Google, passa pelos Estados Unidos, e depois chega até você. Essa é uma questão fundamental, e o Ministério do Planejamento está desempenhando um papel chave na Argentina Conectada. Será uma grande luta porque os que hoje prestam serviço de conectividade não querem mudar o sistema. As corporações vão por dois caminhos: primeiro por onde passa a informação e, depois, a manipulação dos conteúdos. Em relação aos conteúdos, elas já perderam, pois, o usuário conseguiu manipular e selecionar a informação.
As corporações almejam obter o monopólio dos canais por onde passa, na Internet, e o monopólio dos conteúdos que se difundem. Transformam-se em polvos, onde todos os conteúdos passam por esse canal, e isso pode trazer, como consequência, um filtro informativo ou diretamente a sua censura.
Supõe-se que a Internet é um canal paralelo, independente dos discursos monopolizadores.
Claro, imaginemos o que pode acontecer quando o discurso dominante passa pelas plataformas manipuladas pelas corporações. Esse é o campo de batalha do futuro. A manipulação do conteúdo se evidencia nos buscadores mais comuns, filtrando certo tipo de informação. O outro tema é o lugar por onde passa a informação, a infraestrutura que sustenta a web. Alguns países, como o nosso (Argentina), começam a pensar em nível nacional: o Estado é o avalista, ele que tem a responsabilidade de oferecer a estrutura (Argentina Conectada). É uma questão de soberania: a informação nacional circulará exclusivamente dentro do país.
Esta questão responde à falta de neutralidade da rede, que é um tema enorme a ser debatido. A rede nunca é neutra e as corporações querem aproveitar isto. Os grandes monopólios, hoje, oferecem acesso à Internet, não casualmente, são empresas que decidem a quem oferecer conectividade e a quem não, porque em certos lugares pode-se dizer coisas, pode-se circular informação na rede, que não convém que se conheça. É uma situação de exclusão muito grave, de silenciamento de um setor da sociedade. Desta maneira, regulam a informação que transita de forma totalmente impune.
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Internet e cidadania. “A mudança acontecerá, a questão é que lugar o Estado ocupará” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU