02 Outubro 2015
“É preciso criar um modelo de financiamento que não dependa do sistema financeiro, porque do contrário se cria um sistema circular, e é por isso que defendo a ideia de se criar uma moeda complementar”, afirma o economista italiano.
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De acordo com o economista, essa nova moeda poderia ser “emitida por uma banca comunitária, onde teríamos mecanismos de participação direta para gerenciar esse instrumento com pessoas competentes”, e seria utilizada para garantir o pagamento de serviços, tais como educação, saúde, alimentação, transporte. Teria ainda a finalidade de subsidiar parte dos impostos para os países terem alternativas e não precisarem se “submeter” a organismos internacionais tais como FMI e Troika. “Nesse caso, se vier a existir uma manobra de imposição, como a que aconteceu com a Grécia, e o país não quisesse cumprir a política da Troika — que neste caso cortaria a liquidez de modo que o país não tivesse mais dinheiro para pagar os servidores e serviços —, então o país teria uma alternativa”, frisa.
Fumagalli entende o sistema financeiro como parte do sistema econômico, com a diferença de que o primeiro está no topo da pirâmide. Segundo ele, é justamente essa “nova divisão hierárquica econômica” que faz com que o sistema financeiro fique no topo e os demais atores econômicos, como os Estados, empresas e trabalhadores, fiquem “dependentes da dinâmica do mercado financeiro”. Contudo, enfatiza, “não é possível regulá-lo”. “Quem pensa que é possível regular o mercado financeiro pensa que ele é uma parte separada do mercado real. É possível regular setores produtivos, como o de telecomunicações, internet, porque são setores específicos dentro de um único mercado, que é o mercado financeiro”. A alternativa então, reitera, é apostar na moeda alternativa.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line pessoalmente após a conferência Bioeconomia e capitalismo cognitivo, que ministrou durante o XVII Simpósio Internacional IHU. Saberes e Práticas na Constituição dos Sujeitos na Contemporaneidade,Fumagalli também comentou o fenômeno das imigrações na Europa, a atual situação política e econômica de alguns países, a exemplo da Espanha e da Grécia, e explicou quais são as articulações políticas dos partidos Podemos e Syriza, que têm sido vistos como “esperanças” para solucionar os problemas políticos e econômicos atuais. “Há um risco de o Podemos perder uma parte da esquerda e a isso se acrescenta outra dificuldade, a de que o Podemos fez uma escolha institucional dizendo que teria condições de, estando no governo, rediscutir os planos de austeridade, ou seja, diz o mesmo que o Syriza dizia antes da eleição na Grécia. Existia a esperança de que seria possível mudar a política de austeridade, mas depois da eleição do Syriza houve um retorno à realidade, onde o poder financeiro é tecnocrata, e é muito forte”, avalia.
Andrea Fumagalli é doutor em Economia Política e professor no Departamento de Economia Política e Método Quantitativo da Faculdade de Economia e Comércio da Università di Pavia, Itália. Dentre seus vários livros publicados, citamos: Lavoro male comune (Editore Mondadori Bruno, 2013), também publicado em francês sob o título de La vie mise au travail. Nouvelles formes du capitalisme cognitif (Editora: Eterotopia France, 2013), Il lavoro. Nuovo e vecchio sfruttamento (Milão: Punto Rosso, 2006) e Crisi dell’economia globale. Mercati finanziari, lotte sociali e nuovi scenari politici (Verona: Ombre corte, 2009).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Crises econômicas como a de 2008 tendem a ser frequentes daqui para frente?
Fumagalli durante a entrevista na Unisinos
Foto: Cristina Guerini / IHU
Andrea Fumagalli – Digamos que a crise que começou em 2008 não terminou ainda e se tornou um elemento sistêmico, porque no momento em que uma parte do mundo começa a sair da crise, outra parte começa a enfrentar uma situação pior. Por exemplo, a crise de 2008-2009, que iniciou nos EUA com a crise de subprime, ainda está em transição na Europa, que seria a crise das dívidas soberanas, criada para evitar a falência do sistema de crédito.
Neste momento a recessão europeia está se transformando numa estagnação pequena, mas vemos que essa crise está se transferindo para a Ásia Oriental, para a China e para a área dos países do BRICs, porque existe um preço de deflação das matérias-primas que marca fortemente a Rússia e o Brasil, junto com uma crescente instabilidade. A partir de agora a situação é sempre de instabilidade e creio que temos de nos habituar a um estado de crise permanente.
IHU On-Line – Por que atribui as crises econômicas ao sistema financeiro? Qual é a responsabilidade do sistema financeiro e dos Estados-Nações diante dessas crises?
Andrea Fumagalli – Para responder a essa questão é preciso esclarecer que os mercados financeiros são o sistema econômico. Ele não é uma parte; é o motor de acumulação de todo o sistema econômico. Não existe uma diferença entre economia real e economia financeira. Depois de 30 anos de financeirização, existe uma forte interdependência entre o sistema financeiro e o sistema econômico e uma dinâmica dos mercados financeiros, a dinâmica dos Estados-Nações e dos setores produtivos materiais e imateriais.
A nova divisão hierárquica econômica vê o mercado financeiro no topo, e depois vêm os atores econômicos, os Estados, as grandes empresas, o trabalho, que são dependentes da dinâmica do mercado financeiro. A resposta, então, é que no momento em que existe uma crise financeira que está no topo da pirâmide, ela toca os demais atores. Podemos dizer que a crise da lógica financeira é a crise sobre a lógica econômica.
“Os mercados financeiros são o sistema econômico. Ele não é uma parte; é o motor de acumulação de todo o sistema econômico” |
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IHU On-Line - É possível regular o sistema financeiro? Se os Estados estão envolvidos com o sistema financeiro e têm suas dinâmicas afetadas por esse sistema, como regulá-lo?
Andrea Fumagalli – Não, não é possível regulá-lo. Quem pensa que é possível regular o mercado financeiro pensa que ele é uma parte separada do mercado real. É possível regular setores produtivos, como o de telecomunicações, internet, porque são setores específicos dentro de um único mercado, que é o mercado financeiro. Regular o mercado financeiro significa regular o capitalismo contemporâneo e isso seria como fazer uma revolução.
IHU On-Line - O que o senhor sugere então, já que parece não ser possível romper definitivamente com o capitalismo?
Andrea Fumagalli – Uma regulação interna não é possível, mas é possível fazer um tipo de êxodo externo, que vai constituir um novo circuito financeiro diferente e separado do atual. É como criar espaços de autonomia dentro de um sistema mais complexo. Esses espaços sempre foram criados pela produção industrial, por outras formas de serviços, cooperativas, ocupação das terras para fazer a reforma agrária, mas eles sempre tiveram limites e terão limites se não tiverem uma estrutura financeira autônoma. Isso significa que antes ou depois, a lógica financeira acabou fagocitando essa estrutura, quando essas experiências se tornavam relevantes e não eram mais tão pequenas ou minoritárias.
Espaço de autonomia
Agora a possibilidade é criar esse espaço de autonomia partindo diretamente da autonomia financeira, através da criação de um sistema financeiro, com uma moeda própria, a qual seria gerenciada pela comunidade em que ela estaria inserida. Essa moeda não seria substituta da moeda tradicional, mas estaria ao lado dela como um acréscimo para poder ativar os circuitos de produção econômicos que, por definição, não são globalizantes e não podem ser deslocalizados. Por exemplo, todos os sistemas que têm a ver com o bem-estar, saúde, educação, atividade social e artística, artesanal e local, produção agrícola, podem ser financiados e ativados por essa nova moeda, que poderia ser criada do nada. Essa moeda poderia financiar investimentos, incrementar os salários, gerar formas de sustentação básica, ser uma forma de subsídio ao desemprego e à renda, que permite depois adquirir bens que são bens produzidos localmente, como instrução, saúde, transporte. E com essa moeda se pagaria uma parte dos impostos, porque a confiança nessa moeda se daria quando ela conseguisse pagar os impostos, porque aí se teria um incentivo a produzi-la.
Seria como se o indivíduo tivesse duas moedas: uma federal, como o Real no Brasil, e depois uma outra moeda, que seria essa moeda nova, que seria regional, local. Nos locais onde existisse essa moeda, ela seria usada para reativar a economia, e parte dela seria convertida em taxas, em impostos, o que possibilitaria um balanço fiscal com um mínimo de estabilidade, sem haver necessidade de ter intermediários como o FMI, a Troika e os grandes bancos. Nenhum desses mecanismos poderia intervir nesse novo circuito, porque ele teria autonomia para decidir acerca do funcionamento dessa moeda.
Poderíamos começar com pequenos experimentos, e se o experimento fosse positivo e conseguisse melhorar a condição de vida das pessoas, poder-se-ia apostar nessa nova moeda. Por exemplo, um professor pagaria seus impostos ao Estado em Reais, ensinaria em uma escola que o pagaria com essa moeda, e compraria produtos e pagaria serviços com essa moeda e, com Reais, poderia comprar outros bens, como automóvel, computador, que são produzidos fora do país.
Nesse caso, se vier a existir uma manobra de imposição, como a que aconteceu com a Grécia, e o país não quisesse cumprir a política da Troika — que neste caso cortaria a liquidez de modo que o país não tivesse mais dinheiro para pagar os servidores e serviços —, então o país teria uma alternativa. A Grécia não teve alternativa, mas se tivesse outra moeda, poderia ter uma alternativa. Veja que essa proposta não sugere que os países tenham de sair da Zona do Euro, mas temos de ter um plano B para exatamente suprir uma possível falta de liquidez.
IHU On-Line – Então, no caso da Europa, os países devem permanecer na Zona do Euro?
Andrea Fumagalli – Sim. Todo o debate que se tem sobre a Zona do Euro é se os países devem optar ou não pelo euro. Para mim, esse é um falso problema, é uma discussão distorcida porque o biopoder financeiro está no poder da moeda. Se aquela moeda é euro ou outra moeda nacional, não importa, porque a moeda é um instrumento, e o que conta é quem comanda o instrumento; e não é mudando o instrumento que se modifica quem comanda o instrumento. A única alternativa é você poder comandar um instrumento alternativo para si. É como nos anos 1960, quando alguns não podiam se inscrever na universidade, e um grupo de militantes criou novos ensinos universitários fora da universidade. Se fizermos o paralelo, é possível melhorar a distribuição de renda, porém se não tivermos o instrumento para fazê-lo, vamos falhar. E, hoje, o sistema que temos é o financeiro, e temos de criar uma moeda complementar. Essa moeda poderia ser emitida por uma banca comunitária, onde teríamos mecanismos de participação direta para gerenciar esse instrumento com pessoas competentes. É uma instituição e não uma moeda privada.
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“Se aquela moeda é euro ou outra moeda nacional, não importa, porque a moeda é um instrumento, e o que conta é quem comanda o instrumento” |
IHU On-Line – Quais os riscos de essa moeda ficar supervalorizada a fim de ela própria substituir a moeda dominante? Por que acha que uma nova moeda complementar não geraria problemas tais como os que existem hoje com as moedas dominantes?
Andrea Fumagalli – É muitíssimo provável que isso aconteça, porque a natureza humana é falível, mas isso não nos impede de experimentar, porque senão estaríamos ainda na era da escravidão. Podemos ter instituições bem pensadas, que devem levar em conta os riscos. Por exemplo, na Grécia, um país de 8 milhões de habitantes, há uma série de serviços sociais que não podem mais ser oferecidos pelo balanço social do Estado, então teriam de ser oferecidos por uma modalidade diferente. Por exemplo, na Grécia, espontaneamente, quando houve os cortes nos serviços de saúde que eram gratuitos, muitas pessoas não puderam mais pagar pelos serviços e nos últimos quatro anos houve um aumento da taxa de mortalidade infantil. Veja que é um país europeu e parece que estamos na África. Por conta disso, grupos se auto-organizaram e criaram clínicas geridas por eles próprios, e fizeram isso gratuitamente com os Médicos sem Fronteiras e grupos da sociedade civil.
O mesmo aconteceu na Espanha, quando houve o corte na saúde espanhola em 2008: o movimento 15M começou a organizar locais de socorro e hospitais gerenciados pelas pessoas, mas tudo isso nasceu espontaneamente. Todas essas iniciativas não podem ser realizadas por meio de uma instituição comum, e o trabalho dos médicos, por exemplo, gratuito, poderia ser pago por essa nova moeda, porque o trabalho tem de ser sempre pago e esse é um princípio da Revolução Francesa.
IHU On-Line – Quais são as causas das crises da Espanha e da Grécia?
Andrea Fumagalli – A crise da Grécia é diferente da crise da Espanha. É um país pequeno cuja saída do Euro provavelmente teria criado uma instabilidade, mas não um efeito dramático sobre a sustentabilidade do Euro. Se a Espanha ou a Itália, países de grandes dimensões, tivessem saído, o euro morreria.
Na Grécia temos uma situação diferente e uma questão econômica particular. A crise grega iniciou depois das olimpíadas, que foram um “banho de sangue”, porque o resultado das olimpíadas foi um enorme déficit público, e isso fez aumentar o déficit público que já existia. Soma-se a isso um misto de corrupção e proteção de faixas privilegiadas para alguns setores, que pagam taxas ridículas, porque existia um mecanismo, não de corrupção, mas de troca entre políticos e poderes econômicos. Essa situação favoreceu uma forte oposição que levou o partido socialista grego, nos anos 2000, a entrar nesse lobby de poder, deixando muito espaço à esquerda, onde existia um forte partido comunista, o KKE, que era muito parecido com o leninismo soviético, muito rígido e ligado a esquemas da Revolução do século anterior, mas que vivia num contexto que nesse meio tempo havia mudado.
Então, nesse contexto, a intuição do Syriza e de Tsipras foi a de criar as premissas para se candidatar ao parlamento, porque Syriza não é um partido, mas uma confederação da esquerda radical. Todos os líderes do Syriza têm mais de 40 anos e fazem parte de uma geração que é contra a “gerentocracia”, que é típica dos líderes dos países europeus dos anos 2000. O Syriza passou a falar de mudanças e aumentou o seu peso no espaço público. Depois, quando a crise piorou, o Syriza venceu as eleições e foi a primeira vez, depois de 30 anos, que se teve um governo de esquerda radical, e não um governo de esquerda moderada no país. O Syriza, com a palavra de ordem “Não à austeridade”, chegou ao poder na Europa depois de tanto tempo, e isso deu muita esperança para outros partidos de outros países da Europa.
Partidos
O Syriza nasceu de um grupo de esquerda muito evidente, que não é populista. Enquanto isso, na Itália, existe o movimento 5 Estrelas, que é um movimento que não é nem de esquerda nem de direita, mas é populista. O Podemos é um partido que nasceu do movimento 15-M, um movimento de esquerda, mas quando se institucionalizou como partido político fez a escolha pelo populismo, com base nas políticas de Ernesto Laclau [1], da experiência da América do Sul, que é a história do populismo. Ocorre que na Europa o populismo é visto como negativo, porque levou ao fascismo e ao nazismo. Desde 1945 todo partido populista é visto como um partido fascista. Mas o Podemos optou por intervir no mainstream televisivo e tem um expoente como Pablo Iglesias que fala pelo partido. Eles fizeram essa escolha de comunicação populista para falar a todos, ou seja, eles têm uma estratégia de agradar parte do povo espanhol, que é católico, e adotam essa retórica populista para conquistá-los também. De outro lado, o Syriza na Grécia fica sempre à esquerda, enquanto o Podemos passou para uma posição de Centro e isso cria uma diferença entre os líderes e as bases do partido, que são mais de esquerda.
O Podemos está numa situação difícil, porque terá eleições na Espanha em dezembro. O partido teve bons resultados nas eleições locais, mas os resultados são muito diferentes nos diferentes locais da Espanha, porque em Barcelona havia a coalizão do Barcelona em Comum, da Esquerda Unida, grupos de movimentos radicais da esquerda radical, e parte do Podemos; ou seja, com essa coalizão, eles venceram as eleições. Em Madrid, o resultado tem a ver com um Podemos mais populista. Então, há uma situação de embate interno no Podemos, porque alguns são muito populistas e outros não gostam do populismo. Há, assim, um risco de o Podemos perder uma parte da esquerda e a isso se acrescenta outra dificuldade, a de que o Podemos fez uma escolha institucional dizendo que teria condições de, estando no governo, rediscutir os planos de austeridade, ou seja, diz o mesmo que o Syriza dizia antes da eleição na Grécia. Existia a esperança de que seria possível mudar a política de austeridade, mas depois da eleição do Syriza houve um retorno à realidade, onde o poder financeiro é tecnocrata, e é muito forte.
“Como reagir? Uma resposta seria criar um sistema de bem-estar que não seja gerido pelo sistema financeiro” |
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IHU On-Line – Depois da eleição do Syriza e da votação do referendo, Tsipras renunciou e se candidatou novamente nas novas eleições, sendo eleito. Por que ele optou por sair do cargo, se candidatou novamente e venceu? O que aconteceu?
Andrea Fumagalli – Quando Syriza começou a tratativa de negociar com a Troika, sabe-se que se continuasse a dizer não ao acordo, haveria uma espécie de jogo e, nesse jogo, quem freia primeiro é quem tem medo, e se nenhum dos dois frearem, os dois caem num precipício ou ganha quem freia por último. Então, a disputa era ver quem iria frear primeiro. Mas foi dito a Varoufakis que não havia espaços de mediações, então ele tinha que assinar o acordo ou a Troika iria cortar a liquidez e isso geraria um desastre social. Diante dessa situação, o Syriza decidiu fazer o referendo. Eu tinha certeza de que venceria o “Sim”, porque existia um clima no país, mas o “Não” venceu por 63% e foi um resultado inacreditável. Apesar disso, a essa altura, o Syriza viu que estava caindo no penhasco, e que a Troika não iria ceder e iria cortar a liquidez. Foi aí que Tsipras pensou o seguinte: “Se eu for adiante, o referendo vai me dar razão, e vou agir democraticamente, mas, por outro lado, as pessoas não poderão ter mais dinheiro”. Por isso ele decidiu pelo acordo. O caso é que o Tsipras não tinha pensado num plano B, por isso teve de aceitar o acordo e isso gerou uma ruptura no Syriza.
A essa altura alguns ministros se demitiram, e a imposição da política de austeridade foi votada com suporte da direita e da Nova Democracia, mas é claro que a situação não pôde continuar, porque esse era um governo diverso, que não foi formalizado, e por isso decidiram fazer novamente as eleições. O Syriza venceu, e se formou um governo, que é o mesmo de antes, mas que precisaria ter a maioria no parlamento, sem o suporte da direita, porque assim, de um ponto de vista formal democrático, é mais correto. A parte do Syriza que havia se retirado, e que não era do partido comunista, formou o partido Unidade Popular [2] e não conseguiu entrar no parlamento, porque obteve menos de 3% dos votos, que é o mínimo para entrar no parlamento. O que acontece agora? Vamos ver se o governo consegue modificar um pouco a política de austeridade.
IHU On-Line – Por que o partido Unidade Popular não conseguiu representatividade entre os gregos?
Andrea Fumagalli – Porque ele é constituído por uma parte de pessoas que forma a maioria e que defende a saída da Zona do Euro, e os gregos não querem sair da Zona do Euro. Varoufakis disse em uma entrevista que era contrário à saída da Zona do Euro. Mas ao mesmo tempo, antes, a maioria dos votos era pela saída do Euro. Acho que uma situação de pouca clareza contribuiu para que o partido não conseguisse chegar ao parlamento.
IHU On-Line – Qual é a posição política e econômica do ex-ministro das Finanças da Grécia, Varoufakis?
Andrea Fumagalli – Ele disse em uma entrevista que uma política keynesiana é necessária e a condição para o pagamento da dívida é o crescimento econômico, mas para obter crescimento econômico é necessária uma política de investimento pela demanda do consumo. A política de austeridade tem uma visão oposta: diz que a diminuição da dívida pública deve se dar através de uma diminuição dos gastos públicos, sem levar em consideração que uma política de austeridade tem um impacto sobre o crescimento. Sete anos de austeridade tem aumentado a dívida pública grega e não diminuído. O problema é como aumentar a demanda agregada, aumentar o investimento, sem aumentar a dívida pública, porque o risco é que, se a dívida aumentar, essa situação pode gerar uma especulação estrangeira, e o resultado será um aumento da taxa de juros.
Aqui entra a discussão política: Varoufakis entrou nesta discussão. Se optam por manter a demanda agregada sem efeito especulativo negativo, é melhor estar ao lado do Euro do que sair, porque se sair, a Grécia entrará num processo de especulação negativa, que poderá ajudar as exportações, mas há risco de inflação, que irá reduzir o poder de consumo dos trabalhadores, os salários serão rebaixados, e se diminuir o poder de consumo dos trabalhadores, a situação será mais dramática do que agora. Varoufakis teve um encontro com expoentes da esquerda francesa, para discutirem a construção de um plano B europeu. Não é um plano muito claro, porque não se compreende se opta por uma saída coletiva de vários países do Euro ou não. Se países como Itália, França e Grécia saíssem do Euro, a situação seria diferente e aí se poderia falar na morte do Euro. A Alemanha, ao contrário, e alguns países do Leste Europeu, como a Polônia, e depois a Dinamarca e a Finlândia não optariam pela saída do Euro. Mas a Alemanha é favorável a dois tipos de euros: um Euro forte para esses países, e um Euro mais fraco para os países do Sul.
“Varoufakis teve um encontro com expoentes da esquerda francesa, para discutirem a construção de um plano B europeu. Não é um plano muito claro, porque não se compreende se opta por uma saída coletiva de vários países do Euro ou não” |
IHU On-Line – França e Itália têm a intenção de sair do euro?
Andrea Fumagalli – Não.
IHU On-Line – Então significa que a situação econômica está ruim com o euro, mas seria pior sem ele?
Andrea Fumagalli – Eu acho que sim.
IHU On-Line – E na Espanha, como essa discussão repercute? O Podemos se manifesta sobre a saída ou não da Zona do Euro?
Andrea Fumagalli – O Podemos não diz nada. Na Itália, o movimento 5 Estrelas é a favor da saída do euro e já fez um referendo pela saída, mas se trata de um referendo consultivo, e não deliberativo, porque não é permitido pela Constituição Italiana que questões fiscais e econômicas sejam alteradas via referendo.
IHU On-Line – Por que o Podemos não fala sobre sua posição em relação à Zona do Euro? O que eles dizem em relação a saídas para a crise econômica?
Andrea Fumagalli – Essa possibilidade de um plano B, de se ter uma moeda complementar, por exemplo, é um plano do Barcelona em Comum, que irá constituir um grupo de pensamento e de análise pela constituição de uma moeda complementar. O mesmo debate se faz na Espanha e o Podemos é bastante favorável a uma moeda complementar, mais do que o Syriza na Grécia, porque os membros do Syriza não estão complemente de acordo acerca dessa moeda complementar. Essa foi uma das principais razões pelas quais não houve e não há um plano B na Grécia.
O Podemos, sobre a questão econômica, é contra a austeridade, é favorável ao desenvolvimento de uma economia alternativa, mas não diz nada se essa moeda complementar é substitutiva do euro ou complementar ao euro. Parte da população espanhola diz que a pobreza dos últimos anos é culpa do euro e esse discurso gera o discurso de que as imigrações são perigosas, como o faz Movimento 5 Estrelas que, ao mesmo tempo, na Itália, é favorável a uma renda básica. O Podemos, sobre a questão das migrações, age do mesmo modo que em relação ao euro: não diz nada.
IHU On-Line – Como os diferentes países da Europa têm se posicionado acerca das imigrações? Como analisa a questão dos imigrantes a partir do que o senhor tem chamado de capitalismo biocognitivo?
Andrea Fumagalli – Com a crise há um efeito de redução das imigrações. Toda a imigração que vem da África interessa a três países: Itália, Grécia e Espanha, especialmente a Itália. Atualmente diminuiu o número de pessoas que migram para a Itália para melhorarem sua condição de vida, porque a Itália é agora somente um lugar de passagem para ir ao Norte. Hoje há dois corredores de imigrações. O primeiro é da Líbia, que é o corredor que inicia na Líbia e chega na Itália e na Grécia.
Os dois países mais procurados para passagem são Itália e Espanha e esse é um problema de gestão da imigração, porque algumas regiões da Itália, como ao Sul da Itália, na Cecília, é bastante acolhedor com os imigrantes, ao passo que ao Norte, na região do Vêneto, os governos municipais dizem não à imigração e não ao acolhimento de imigrantes. Há um conflito em relação às imigrações e é provável que a questão da imigração seja utilizada como um meio de instrumentalização política.
O segundo corredor da Síria é a Hungria, que nos últimos três meses tem recebido milhares de pessoas. Agora, isso é um problema porque o governo da Hungria tenta fechar a fronteira, mas isso gera um problema humanitário e mostra que não existe uma política comum europeia; o que existe é uma política econômica que é imposta do alto, e não há uma política de imigração.
É paradoxal que na Grécia e na Itália haja mais imigrantes, enquanto outros países recebem poucas pessoas, ou seja, não há uma distribuição homogênea. Agora iniciou-se uma discussão de como fazer com que esse seja um processo mais homogêneo, mas a Inglaterra não quer imigrantes, países do Leste Europeu também não. Então, isso mostra a falta de uma política europeia e demonstra que a União Europeia é somente uma união de interesses.
É muito importante a decisão da Alemanha, de acolher 60, 80 milhões de imigrantes, mas a Alemanha só quer receber imigrantes da Síria, porque segundo os alemães, eles farão um investimento de 6 milhões de euros para acolher essas pessoas, mas só farão isso com a possibilidade de fazer uma seleção de quais imigrantes ingressarão no país. Por que a Alemanha opta pelas pessoas que vêm da Síria? Porque na Síria há uma estrutura de instrução e educação que foi organizada de modo que proporcionou que as pessoas se formassem em Engenharia, Matemática e disciplinas científicas, que são muito importantes para a produção alemã. Então, a estratégia da Alemanha é investir 6 milhões de euros a fim de investir em um capital humano muito competente, com um preço da força de trabalho muito baixo. É como se um engenheiro fosse trabalhar e aceitar um vale pelo trabalho que irá desenvolver. Trata-se de um mecanismo de biopolítica.
Alguns dizem que Angela Merkel queria mudar sua imagem depois da situação da Grécia e parecer uma pessoa mais solidária, mas não se trata disso. O cálculo econômico da Alemanha é muito inteligente. De todo modo, essa mudança de posição da Alemanha, de acolher imigrantes, é melhor do que a de outros países que dizem não ao acolhimento. O problema é que as pessoas que não são úteis do ponto de vista de serem uma “mercadoria” não vão ter espaço. Logo, essa imagem de que a Europa é solidária, não é verdadeira.
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“Há um desmantelamento de muitos serviços de bem-estar social, o qual está sendo regulado num sistema de 'Workfare'” |
IHU On-Line – Quais são as razões da crise do estado de bem-estar social e como garantir o estado de bem-estar nesse momento em que você diz que teremos de nos acostumar com períodos de crises mais frequentes?
Andrea Fumagalli – Um dos pontos de ataque da política de austeridade é o estado de bem-estar social (Welfare State), que está no modelo de desenvolvimento da Europa. Não obstante, há um desmantelamento de muitos serviços de bem-estar social, o qual está sendo regulado num sistema de “Workfare”. Ou seja, a pessoa pode ter acesso aos serviços sociais somente se ela tem condições de pagar o preço pelo serviço. Quer dizer que para ter acesso ao serviço social, a pessoa precisa ter uma renda. Mas atrás do sistema de “Workfare” está uma oportunidade de business e de destruição dos sistemas sociais de saúde e educação. Segundo essa visão, só pela privatização da saúde há possibilidade de desenvolvimento e de crescimento de processos de financeirização. Logo, um dos efeitos do sistema financeiro é destituir o estado de bem-estar social como forma de seguridade social. Mas esse sistema financeiro apenas se sustenta se há uma privatização do sistema de seguridade social, das pensões, etc.
Como reagir? Uma resposta seria criar um sistema de bem-estar que não seja gerido pelo sistema financeiro. Se esse sistema ainda for gerido pelo Estado, é claro que o Estado necessitará de um financiamento, mas é preciso criar um modelo de financiamento que não dependa do sistema financeiro, porque do contrário se cria um sistema circular, e é por isso que defendo a ideia de se criar uma moeda complementar.
IHU On-Line – Mas a criação da moeda complementar não depende dos Estados-Nações? Ou você imagina que uma moeda complementar possa ser criada por movimentos, pela sociedade civil ou por quem?
Andrea Fumagalli – Mas os Estados existem agora como um modelo de distribuição teórico de serviços sociais, existem como um modelo de transmissão do monopólio da força, não existe Estado-Nação com autonomia de decisão econômica e de política externa, monetária e fiscal a nível nacional. Há países em que essa possibilidade é zero, mas em outros há um pouco de autonomia, claro, mas uma autonomia vinculada à dinâmica dos mercados financeiros, das commodities, ou seja, de um sistema supranacional. O conceito de Estado-Nação como conhecemos no século passado não existe mais, e isso não significa que ele não exista na prática hoje, mas que ele mudou e reduziu sua forma e capacidade de incidir.
IHU On-Line – E você tem esperança em partidos como Syriza e Podemos para fazer mudanças na política de austeridade que você critica?
Andrea Fumagalli – Espero que nos próximos três ou quatro anos as experiências do Syriza e do Podemos possam ser fundamentais como ensinamento para a constituição de movimentos europeus que possam ser capazes de incidir mais do que esses movimentos estão incidindo agora.
É muito importante ainda a eleição Jeremy Corbyn [3], que venceu a eleição interna do Partido Trabalhista do Reino Unido, pela primeira vez depois de 30 anos. Ele recebeu 68% das votações e isso pode significar uma mudança de perspectiva na política inglesa. É particular que no partido dos Trabalhadores há essa mudança de rota e talvez a Inglaterra irá antecipar, como antecipou o neoliberalismo com Thatcher [4], uma mudança na política econômica europeia. Como você sabe, os economistas não fazem previsões, e então vamos ter de esperar mais uns cinco anos.
IHU On-Line – Se economistas fizessem previsões, não haveria a crise.
Andrea Fumagalli – (Risos). Claro, essa é a demonstração que não há economistas que sejam capazes de fazer previsões econômicas corretas; é pura ideologia.
IHU On-Line – Então é preciso superar as ideologias.
Andrea Fumagalli – O sistema neoliberal é baseado em hipóteses fundamentais do comportamento humano, que são puramente teológicas, metafisicamente falando: racionalidade humana, maximização de renda, ou seja, são conceitos que, num mundo complexo e globalizado, não podem ser aplicados, porque é completamente diferente o modo de pensar aqui e a 100 quilômetros de distância, ou seja, é impossível construir um modelo único que possa ser universal para todos.
Por Patricia Fachin
Notas:
[1] Ernesto Laclau (1935- 2014): foi um teórico político argentino, frequentemente considerado pós-marxista. Pesquisador e professor da Universidade de Essex, recebeu o título de Doctor Honoris Causa de várias universidades: Universidade de Buenos Aires, Universidade Nacional de Rosário, Universidade Católica de Córdoba, Universidade Nacional de San Juan e Universidade Nacional de Córdoba. Em 10-03-2008 concedeu a entrevista 1968 e a construção de um novo discurso político à edição 250 da IHU On-Line, disponível em http://bit.ly/1gvx8Fu. (Nota da IHU On-Line)
[2] Unidade Popular é um grupo parlamentar que foi criado a 21 de agosto de 2015 por 25 deputados, até então representantes do Syriza, opostos ao acordo do primeiro-ministro Alexis Tsipras com a troika. É liderado pelo antigo Ministro da Energia, Panagiotis Lafazanis, e inclui mais outros dois ex-ministros de Tsipras, Dimitris Stratoulis and Konstantinos Isyhos. (Nota da IHU On-Line)
[3] Jeremy Corbyn Bernard (1949): é um político britânico que é líder do Partido Trabalhista e Líder da Oposição. (Nota da IHU On-Line)
[4] Margaret Hilda Thatcher (1925): política britânica, primeira-ministra de 1979 a 1990. (Nota da IHU On-Line)
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Do Welfare State para o Workfare e a necessidade de novos sistemas financeiros autônomos. Entrevista especial com Andrea Fumagalli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU