06 Dezembro 2018
Abalada na América do Sul, a onda de esquerda permanece viva no mais frágil dos países que dela participaram. Não é por acaso.
A reportagem é de Santiago Mayor, publicada por RT e reproduzida por Outras Palavras, 04-12-2018. A tradução é de Danilo Costa N. A. Leite.
Em janeiro de 2006, pela primeira vez na história da Bolívia, um presidente indígena assumia o governo. Evo Morales Ayma, dirigente sindical cocalero (movimento de proteção à folha de coca como símbolo da cultura boliviana), tinha triunfado alguns meses antes com mais de 50% dos votos em uma eleição sem precedentes.
Sua vitória inscreveu-se na onda progressista e de esquerda que chegou aos governos da América Latina durante os primeiros anos do século XXI. Naquele momento já ocupavam a presidência Hugo Chávez na Venezuela, Lula no Brasil, Néstor Kirchner na Argentina e Tabaré Vásquez no Uruguai. Alguns meses depois se somaria Daniel Ortega na Nicarágua e no ano de 2007 Rafael Correa no Equador.
Apesar disso, comparada a seus pares, com exceção do caso uruguaio provavelmente, a Bolívia conseguiu se consolidar como um modelo social, político e econômico estável que não sofreu com as crises econômicas e políticas da Venezuela ou Nicarágua, nem perdeu seu governo por meio de golpes de Estado e ‘impeachments’ – como ocorreu no Brasil, Honduras e Paraguai – ou de eleições, como na Argentina. Qual é o motivo de tal excepcionalidade?
Segundo dados do Banco Mundial, em 2006 o Produto Interno Bruto (PIB) boliviano era de 11.452 milhões de dólares. Em 2017 o número havia aumentado mais de três vezes chegando a 37.509 milhões. No mesmo período, a renda per capita anual passou de 1.120 para 3.130 dólares e a expectativa de vida subiu de 64 para 71 anos. O Instituto Nacional de Estatísticas (INE) do país, por sua vez, afirma que a pobreza baixou de 59,9%, quando Evo Morales assumiu, para 36,4% no ano passado.
Por outro lado, como nota o pesquisador e mestre em Desenvolvimento Econômico e Sustentabilidade, Sergio Martín-Carrillo, a Bolívia “foi o país sul-americano que experimentou o maior crescimento econômico, mantendo inclusive um ritmo acima do patamar de 4%, apesar do contexto de debilidade que a região vive desde 2015”. Isso foi acompanhado por uma queda constante da inflação, que passou de 12% em 2007, a menos de 2% em 2018 até o momento.
Tais resultados se sustentaram com uma política que contradiz os postulados neoliberais que hoje inspiram os governos dos países vizinhos como Argentina, Chile, Paraguai ou o presidente eleito do Brasil, Jair Bolsonaro.
O sociólogo e escritor boliviano Antonio Abal enumerou em conversa com a reportagem “os eixos do crescimento contínuo da economia da Bolívia”.
Na sua visão, trata-se de uma política baseada em “nacionalizações de setores estratégicos, como as comunicações, os hidrocarbonetos e a mineração”; o redirecionamento dos recursos estatais, “sobretudo, para a infraestrutura produtiva”; o “fortalecimento do mercado interno”; uma política monetária de “valorização da moeda nacional”, ou seja, uma “desdolarização da economia”; e finalmente um investimento forte nos processos industriais como os do “lítio, de laticínios, têxteis, etc e fomento à pequena e média empresa, com facilidades em termos de acesso ao crédito”.
O vice-presidente do país, Álvaro García Linera, exprimiu opinião no mesmo sentido em entrevista ao jornal argentino Página 12, onde explicou o que, para ele, são os quatro fatores principais desse êxito econômico.
Em primeiro lugar, que o Estado controle como proprietário os principais setores geradores de excedente econômico: hidrocarbonetos, eletricidade e telecomunicações. Por outro lado, que leve a cabo uma redistribuição da riqueza, “mas de uma maneira sustentável”, de forma que “os processos de reconhecimento e ascensão social dos setores subalternos populares e indígenas tenham sustentabilidade ao longo do tempo”.
Em terceiro lugar, assim como Abal, sustenta que se deve “fortalecer o mercado interno” e, por último, a “articulação entre o capital bancário e o produtivo, o que implica que 60% da poupança dos bancos se dirija ao setor produtivo, gerando mão-de-obra”.
A isso se soma uma série de programas sociais que acompanharam a melhora econômica e que foram dispositivos que garantiram a redistribuição da riqueza. Nesse sentido, Martin-Carrillo listou três dos programas que considera mais importantes: o Bolsa Juancito Pinto (Bono Juancito Pinto), o Renta Dignidade e o Bolsa Juana Azurduy (Bono Juana Azurduy).
O primeiro deles foi lançado durante o primeiro ano de governo e visa que meninos e meninas cumpram sua trajetória na escola. Ele prevê um aporte de 200 bolivianos (29 dólares) a estudantes de escolas públicas em troca de um mínimo de 80% de frequência às aulas. Durante 2018, houve 2.221.000 de estudantes beneficiados graças a essa iniciativa. O resultado foi que entre 2006 e 2017 o abandono escolar no ensino fundamental caiu de 6,5% para 1,8% e no ensino médio de 8,5% para 4%.
Por sua vez, o Renda Dignidade (Renta Dignidad), vigente desde 2007, mira a população idosa – com 60 anos ou mais – e prevê 250 bolivianos (36 dólares) para pessoas com aposentadoria por tempo de serviço e 300 bolivianos (43 dólares) para pessoas sem aposentadoria por tempo de serviço.
Finalmente, o Bolsa Juana Azurduy, que está dirigido tanto a gestantes, para as quais estipula a condição de que realizem quatro exames pré-natais, parto em instituição de saúde e acompanhamento pós-parto, bem como a crianças, condicionado a 12 exames completos de saúde a cada dois meses.
Houve também uma política agressiva de incremento do Salário Mínimo Nacional, que em 2005 equivalia a 440 bolivianos (ou 57 dólares naquele momento) e chegando hoje a 2.060 (298 dólares). Ainda assim, este ano, devido ao crescimento econômico, segundo o informe da Agência Boliviana de Informação, o Executivo se dispôs a pagar o bônus duplo a todos os trabalhadores públicos e privados.
Para além de sua situação atual, os governos do Movimento ao Socialismo (Movimiento al Socialismo – MAS) não estão livres de percalços, alguns dos quais muito sérios. O ponto mais tenso talvez ocorreu no ano de 2008, quando a chamada “Meia Lua”, que incluía quatro departamentos orientais do país, tentou se emancipar do resto do território, por meio da ação de setores da direita boliviana que contavam com o apoio escamoteado dos EUA.
Não obstante, com o respaldo da União das Nações Sul-americanas (Unasur), tal crise pôde ser superada e poucos meses depois avançava o processo de proclamação da nova Constituição no começo de 2009. Essa Carta Magna declarou o caráter “Plurinacional” do Estado, reconhecendo na lei máxima do país os povos originários historicamente negados. Evo Morales passou a encarnar assim, não somente simbólica como também institucionalmente, a ascensão definitiva dos setores marginalizados durantes séculos da política nacional.
Ainda que para Abal não se possa “falar de etapas, senão de uma aplicação persistente de um modelo econômico”, a partir daqui já se pode analisar o aprofundamento de alguns aspectos. Trata-se de um ponto de inflexão, a partir do qual se começa a falar em “socialismo comunitário”, o que o sociólogo define como “uma abordagem teórica da aplicação do marxismo e de suas categorias para compreender as lógicas dos ‘ayllus’ (comunidades)”, que como muitos autores indicaram, mantiveram estruturas de “comunismo primitivo” ou comunitárias, contrárias à propriedade privada e à acumulação individual.
Por outro lado, García Linera sustenta que, uma vez superada a ofensiva da direita, abriu-se um novo momento na revolução boliviana que ele chamou de “tensões criativas”. Ou seja, debates interiores ao processo que o fazem avançar.
A respeito disso, Abal garante que nos movimentos sociais duas tendências político-ideológicas convivem: “uma sindical, centrada nas reivindicações setoriais, e outra revolucionária, como parte do processo de mudança e parte do governo”. É na disputa entre essas duas visões que se dão as tensões criativas que, de seu ponto de vista, são “a dialética do movimento da consciência de classe”.
A lógica “centrada no operário”, segundo o sociólogo, não consegue compreender completamente “a outra lógica organizativa e ideológica dos povos originários”. E ele a atribui a uma contradição estimulada durante décadas de opor “índios e operários” e que “foi patrocinada em uma etapa do nacionalismo revolucionário (1952-1985)”.
Finalmente, o analista aponta que “o vínculo potente se encontra entre o governo e os movimentos sociais”, onde “o grande articulador do bloco é, sem dúvida, Evo Morales, e não somente como instrumento político”. Como outra face dessa moeda, Estado e movimentos sociais “ainda estão distantes”, porque o último (sic) “mantem uma matriz colonial não superada”.
Ainda que os processos políticos nacionais dificilmente possam sobreviver por muito tempo isoladamente contando somente com forças internas, o país conta ainda com aliados no continente. Para além de eventuais conflitos, há Venezuela, Nicarágua e também Cuba, país com os quais integra a Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América (Alba). Cabe recordar que, com a colaboração de Havana, em 2008 todo território boliviano foi declarado “livre do analfabetismo”.
Por outro lado, apesar do tropeço sofrido no referendo em começos de 2016, que impediu Morales de voltar a se apresentar nas eleições presidenciais de 2019, isso foi ao final autorizado pelo Tribunal Supremo. Com sua candidatura e uma direita por enquanto dividida, a continuidade do processo parece estar assegurada.
Por último, porém não menos importante, García Linera realizou um prognóstico no recente Fórum Mundial de Pensamento Crítico, ocorrido em Buenos Aires, segundo o qual os governos conservadores da região durarão pouco tempo e logo virá um novo auge progressista e de esquerda.
“Estamos enfrentando uma onda conservadora neoliberal que tem dois limites intrínsecos: é fossilizada e é em si mesma contraditória”, apontou. E detalhou que nesses países estão se “repetindo as receitas que fracassaram vinte anos atrás”, o que demonstra como “não tem inventividade, nem tem criatividade e nem tem esperança”.
“O neoliberalismo atual mobiliza somente ódios e ressentimentos”, por sua vez. O que redunda em dizer que “está baseado na negatividade e não em proposições. Não na esperança em médio prazo, senão na recusa emotiva de curto prazo. E isso tem patas curtas”, completou o vice-presidente boliviano.
Por isso, com otimismo, sentenciou: “Em vez de viver uma longa noite neoliberal, viveremos uma curta noite de verão neoliberal. E neste momento cabe a nós reconhecer o que fizemos bem, reconhecer o que fizemos mal e nos prepararmos”. “A esquerda tem que voltar a se preparar para tomar o poder nos próximos anos no continente”, concluiu.
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Na Bolívia, improvável êxito - Instituto Humanitas Unisinos - IHU