27 Fevereiro 2025
"Nos últimos dois anos, prelados de destaque por suas posições a favor de Francisco, na perspectiva de uma Igreja sinodal e em saída foram transferidos de suas dioceses de origem para outras circunscrições eclesiásticas. Todos eles passaram boa parte de suas trajetórias em grandes metrópoles, nas regiões metropolitanas ou nas periferias. Tiveram presença destacada junto aos mais pobres, na defesa dos direitos humanos e no mundo da educação, além de publicamente manifestaram seu entusiasmo com as reformas de Francisco", escreve Jorge Alexandre Alves, sociólogo, professor do IFRJ e integra o Movimento Fé e Política no Rio de Janeiro em artigo publicado por Iser Assessoria, 26-02-2025.
Com mais de três mil dioceses em todo mundo e cinco mil bispos, esperar que o Bispo de Roma pessoalmente nomeie os bispos de todo mundo seria ingenuidade. É preciso delegar essa tarefa. Essa percepção exige que se discutam as últimas nomeações episcopais no Brasil. Sobretudo quando feitas nesse contexto de internação do Papa.
Embora seja ele quem formalmente nomeia os bispos, é de se estranhar que tantas escolhas para a Igreja do Brasil sejam feitas quando os boletins médicos indicam que seu estado de saúde é crítico. As indicações desta semana, em seu conjunto, indicam mais claramente a ação de um determinado segmento do episcopado brasileiro.
No grande xadrez que as nomeações episcopais representam para a Igreja Universal, a escolha de um bispo indica a linha pastoral a ser seguida em uma diocese. Um conjunto de bispos com o mesmo perfil indicam uma diretriz, no que diz respeito aos grandes temas do catolicismo.
Portanto, a escolha de um determinado candidato ao episcopado sinaliza o quanto esse processo está alinhado com o magistério de um Papa. Trocando em miúdos, o perfil de um bispo pode mudar o rosto do catolicismo de um país como o Brasil.
Essa foi uma das estratégias usada nos tempos de João Paulo II para reconfigurar o catolicismo brasileiro há 40 anos. Bispos próximos das posições mais progressistas no Concílio Vaticano II e das grandes intuições teológico-pastorais da Igreja latino-americana daquele período foram sendo substituídos por figuras mais conservadoras e menos afeitas às inovações conciliares no campo pastoral, na formação do clero e na Liturgia.
Consequentemente, candidatos ao episcopado sobre os quais surgissem quaisquer suspeitas de adesão ou simpatia à Teologia da Libertação eram descartados, na maioria dos casos. Em muitas dioceses, tal estratégia causou cisões, dores, traumas e contribuiu significativamente para o esvaziamento do catolicismo, sua perda de capilaridade social e para o quadro religioso atual, onde a sangria de fiéis católicos para outras confissões não cessou.
O estímulo ao tradicionalismo e adesão desmedida ao pentecostalismo católico foram, desde os anos 1990, justificadas como estratégias mais “modernas” para “trazer de volta as pessoas para a Igreja”. Os resultados demográficos indicam o contrário, porque atualmente o catolicismo brasileiro representa parcelas cada vez menores da população.
Mais, esses grupos que se afirmaram no lugar do modelo pastoral das Comunidades Eclesiais de Base foram solo fértil para o fundamentalismo católico que assola a Igreja do Brasil. Sua face visível revela o pior do cristianismo, com vínculos íntimos com a extrema-direita, o golpismo inveterado, a produção/disseminação de fake news e as escandalosas manifestações de segmentos católicos desejando a morte do Papa Francisco nas redes digitais.
Portanto, a escolha dos bispos também deveria ser um indicativo da implementação de uma linha teológico-pastoral advinda do Bispo de Roma, como foi nos papados que antecederam ao atual, certo? Nem tanto… Francisco talvez seja o Pontífice mais reformista da história recente da Igreja. Em muitos aspectos, sua coragem nos remete ao grande João XXIII que, ao convocar o Vaticano II, colocou a Barca de Pedro em diálogo com a modernidade.
Mas, já com Paulo VI – que foi fiel ao espírito do Concílio – uma oposição inicialmente dissimulada começa a pôr freios no que foi decidido pelos padres conciliares. A partir de Wojtyla, muito do que se propôs no Concílio foi ressignificado, reinterpretado na direção oposta das aspirações conciliares, a ponto de Bento XVI defender publicamente tal posição, já no ocaso de seu pontificado.
Bergoglio, eleito Bispo de Roma a partir de certo clamor por mudanças, iniciou uma série de reformas na Igreja e no exercício do papado que rapidamente passaram do encantamento para uma oposição que era inicialmente velada, mas hoje é cada vez mais explícita. O projeto eclesial deste Pontífice atingiu em cheio os curiais romanos, os tradicionalistas de diferentes matrizes e aqueles que se sentiam herdeiros do legado dos dois pontificados anteriores. Por isso, Francisco talvez tenha sido o papa mais atacado da era da comunicação em massa por parcela da própria comunidade católica, em níveis de desrespeito poucas vezes vistas para com um líder religioso.
A oposição a Francisco e a resistência às suas reformas criaram raízes na Cúria Romana, a despeito dos esforços do Papa em reduzir seu poder e sua influência. Dentre os dicastérios romanos (equivalentes a um ministério de um governo civil), aquele que se encarrega da escolha dos bispos tem um papel crucial em qualquer reforma eclesial.
Nas condições normais de temperatura e pressão, seria de se esperar que um corpo burocrático como a Cúria Romana fosse totalmente alinhado ao ministério petrino do Papa. Logo, o departamento responsável em nomear aqueles que seriam, no atual modelo eclesial, responsáveis pela implantação das reformas da Igreja, deveria escolher dentre os candidatos ao episcopado exatamente os que se identificam com a linha do atual Pontífice.
Contudo, são muitas as resistências que Francisco encontra entre os curiais do Vaticano. E isso se reflete em boa parte das escolhas dos bispos e na seleção de cardeais, particularmente para a Igreja do Brasil. Ao mesmo tempo, Bergoglio enfrenta uma resistência que se tornou muito tenaz no país. Diferente do enfrentamento público que bispos fizeram nos Estados Unidos ou na Itália, a oposição ao Sucessor de Pedro no território brasileiro não é pública. São remotas as chances de vermos um bispo brasileiro – mesmo emérito – atacar o sucessor de Pedro.
Suas orientações pastorais, suas exortações e encíclicas são formalmente acolhidas, mas “empurradas com a barriga” no dia a dia das comunidades católicas. Basta ir a uma matriz paroquial qualquer de uma grande arquidiocese brasileira e verificar se catequistas e agentes de pastoral conhecem, de fato, os documentos finais da série de sínodos realizados por Francisco ao longo de seu pontificado.
Ora, na Igreja do Brasil, as disputas pelas nomeações episcopais fazem parte da estratégia de oposição ao Papa em território nacional. Em que pese os muitos bons bispos nomeados por Francisco em seu papado, são muitas as insatisfações de toda ordem por certas nomeações. Muitas indicações causam estranheza pelo perfil do indicado. Como esse processo de escolha ocorre em sigilo, é difícil saber os reais critérios que apontaram pela escolha de um e a não indicação de outro.
Aqui entra a estratégia de oposição ao Papa no que se refere à escolha dos bispos. Entre 2013 e 2019 foi mais nítido que o perfil dos escolhidos para bispo se aproximava mais do magistério de Francisco. Porém, na medida em que os anos passaram e a resistência a Bergoglio cresceu, aumentaram as nomeações de prelados oriundos de grupos e dioceses muito distantes das intuições teológicas e das reformas propostas pelo pontífice.
Como ninguém assume publicamente fazer oposição ao Papa, salvo grupos mais sectários, a respeito dos quais alguns bispos afirmam nada poder fazer por serem associações civis de fiéis. Dessa forma, fica mais complicado identificar as verdadeiras lideranças da oposição a Bergoglio na Igreja do Brasil.
Todavia, olhando o perfil das nomeações episcopais para determinadas regiões do Brasil, é possível detectar de onde vêm as articulações que promovem candidatos com determinado perfil, bem como as transferências de bispos de uma diocese para outra. Mesmo quando o escolhido é identificado com a agenda de Bergoglio, não são poucas as vezes em que o nomeado é retirado de uma determinada realidade socioeclesial para ser bispo em uma região com a qual nunca teve o menor contato.
Foi o que aconteceu há algum tempo com um religioso com destacada atuação junto à periferia de uma megalópole brasileira, em área profundamente urbanizada de uma diocese marcada pela violência urbana. Foi feito bispo, mas para atuar em outra região, em outro bioma, em uma realidade bem distinta daquela onde atuava até sua nomeação.
No jogo de poder que envolve as indicações de bispos, a sucessão episcopal nas maiores dioceses se torna elemento chave para a afirmação ou não da força da oposição a Francisco. No caso brasileiro, as duas maiores arquidioceses do país estão em vias de ter mudanças em sua direção.
A burocracia referente à nomeação de um bispo passa pela diplomacia do Vaticano, através de um embaixador papal, o núncio. A Nunciatura Apostólica é quem recebe as indicações, faz escutas e fornece as informações necessárias para que o Dicastério dos Bispos elabore uma lista tríplice, da qual sairá o escolhido para uma diocese.
Para o Brasil já vieram núncios que deram grande contribuição à Igreja. Armando Lombardi e Sebastiano Baggio foram dois núncios notáveis, porque tiveram participação direta na formação de uma geração luminosa de bispos brasileiros nos anos 1960 e 1970.
Atualmente, constata-se que, após a chegada do atual representante diplomático papal no Brasil, tornaram-se mais frequentes nomeações episcopais que não estavam em sintonia com a linha de Francisco. Soma-se a isso o fato do secretário do Dicastério dos Bispos ser brasileiro. Nesse contexto, não seria tão complicado que os novos bispos fossem, não apenas da boca para fora, mais alinhados pastoralmente com Bergoglio.
Contudo, se isso não está acontecendo, podemos inferir que a oposição a Francisco atua para que a escolha dos bispos e as transferências episcopais dificulte a implementação do magistério petrino no Brasil. Se considerarmos algumas nomeações e transferências ocorridas nos últimos anos, não podemos descartar que a resistência a Francisco no Brasil se tornou mais forte, capaz de se articular com a diplomacia papal e setores do Dicastério dos Bispos que não são tão entusiasmados com o Papa, a fim de operar uma máquina muito bem azeitada, de fazer bispos conservadores.
Essa articulação, mais do que apenas fazer bispos wojtylianos e ratzingerianos, está de olho na sucessão das duas maiores arquidioceses do Brasil. Estamos falando das maiores metrópoles brasileiras, de cidades cuja população ultrapassa 19 milhões de pessoas, das quais aproximadamente 10 milhões são católicas.
O magistério de Francisco representa o futuro da Igreja. Ainda que esteja em seu ocaso, o pontificado do Papa Bergoglio foi a única lufada de ar fresco na Igreja capaz de tirá-la do atraso de 200 anos, como dizia o saudoso arcebispo de Milão, Carlo Maria Martini. Jesuíta como o atual Pontífice, o Cardeal Martini foi uma das vozes mais lúcidas em um tempo de inverno eclesial.
A oposição a Francisco representa o retorno a esse inverno, a um passado clerical e triunfalista, sem ao menos ter se completado a primavera deste pontificado. E, no Brasil, sua tenaz articulação passa pela Nunciatura e pelo Dicastério dos Bispos.
As recentes mudanças no episcopado brasileiro – inclusive as que ocorrem quando o Papa convalesce na cama de um hospital – são parte da estratégia dos segmentos anti-Francisco. Quando se analisa as possibilidades de sucessão das maiores arquidioceses brasileiras, fica nítido o desenho tático da resistência ao magistério do Bispo de Roma.
Nos últimos dois anos, prelados de destaque por suas posições a favor de Francisco, na perspectiva de uma Igreja sinodal e em saída foram transferidos de suas dioceses de origem para outras circunscrições eclesiásticas. Todos eles passaram boa parte de suas trajetórias em grandes metrópoles, nas regiões metropolitanas ou nas periferias. Tiveram presença destacada junto aos mais pobres, na defesa dos direitos humanos e no mundo da educação, além de publicamente manifestaram seu entusiasmo com as reformas de Francisco.
Ou seja, reuniam todas as condições necessárias para assumirem o desafio de conduzir o catolicismo em uma grande metrópole. Por que foram transferidos recentemente para o interior ou regiões demograficamente pequenas? Evidentemente, as igrejas locais para onde eles foram ganharam muito com seus novos bispos. E eles mesmos continuam a serviço do Reino de Deus, sem ambições maiores, caminhando com o cheiro de suas ovelhas como pastores que são.
Só que as suas transferências, por serem muito recentes, os retiram das listas de sucessão nos grandes centros urbanos. Nisso reside a estratégia dos opositores do Papa nas transferências episcopais: Afastar das grandes metrópoles quem poderia ser a voz de Francisco na realidade urbano brasileira. A máquina de fazer bispos não alinhados com Francisco opera mesmo quando não se trata de um novo bispo. E age articuladamente com segmentos da Nunciatura e do Dicastério dos Bispos.
Roraima, Livramento, Petrolina e, mais recentemente, Santos e Itapetininga ganharam e ganham muito com suas nomeações recentes. Mas e a Igreja do Brasil? Além de Brasília e Roma, quais outros centros do poder católico no país constituem o eixo da articulação anti-Francisco em território brasileiro?