29 Novembro 2024
O protagonismo do Judiciário esvazia as ruas. A força da extrema direita tem apoio internacional, recursos abundantes e canais de comunicação de grande impacto.
O artigo é de Ronaldo Tamberlini Pagotto, advogado trabalhista e sindical, ativista do Movimento Brasil Popular e membro do conselho executivo do escritório Brasil do Instituto Tricontinental de Pesquisa social, publicado em A Terra é Redonda, 28-11-2024.
O intento golpista fora alardeado desde o começo de 2021, com o auge em setembro daquele ano. O bolsonarismo caminhou com um pé dentro da legalidade (leia-se disputa eleitoral) e outro buscando o caminho golpista. Falou disso inúmeras vezes, abordou 2018 como parte de uma fraude, mas que teria ficado impossível de sustentar dado o suposto volume de votos por ele obtido. Mas isso ocorreria em 2022, já que, segundo alardeou desde o retorno dos direitos políticos de Lula, o sistema elegeria o petista em 2022.
Esse caminho entrou em um quadro crítico em 2022. Numa primeira fase e com pesquisas confirmando o favoritismo de Lula, ele seguiu na linha de denunciar o golpe. Na passagem de abril a junho, com pesquisas mais consistentes e regulares, os números dele melhoraram. Isso reforçou o caminho por dentro da legalidade.
A partir de junho o caminho foi disputado: de um lado defensores do caminho golpista e, de outro, alguns apostando na possibilidade de vitória.
Para isso, entraram em campo os planos de Paulo Guedes de uso absolutamente inconsequente do orçamento da União para fazer mil e uma operações de impacto: aumento da base e valores do Auxílio Brasil, do Auxílio Gás, auxílio a caminhoneiros, empréstimos consignados (especialmente para beneficiários do Auxílio Brasil), rolagem dos precatórios de R$ 90 bi, etc., sem falar nos recursos para o Parlamento via orçamento secreto. Só para citar algumas.
As articulações para operações de redes sociais com recursos internacionais e apoio robusto deram a sua campanha uma ampla capacidade de disputar. Essa aposta, que antes dividia opiniões, foi vitoriosa após julho de 2022, com os primeiros resultados da gastança. A partir de julho, a aposta na via eleitoral foi hegemônica.
A tática deu certo. A diferença com o Lula foi sendo reduzida, e a campanha ganhou energia e força. O resultado do primeiro turno foi comemorado por ele: a política estava confirmando a correção tática.
A campanha do segundo turno foi forte e capaz de mobilizar mais de 70% dos votos em disputa, destinados aos outros candidatos no primeiro turno. Foi a primeira vez desde a instituição dos dois turnos que a Presidência não foi vencida por quem obteve a ampla maioria dos votos dos candidatos derrotados. Nas anteriores – Lula 1 e 2, Dilma 1 e 2 e Bolsonaro 1 – os votos do segundo turno foram disputados, e a ampla maioria – entre 60% e 80% – ficou com o vencedor. Nessa eleição ocorreu o inverso: Jair Bolsonaro obteve 70% dos votos em disputa no segundo turno.
Após a derrota, o caminho do golpe se tornou a única possibilidade. E teria que ocorrer enquanto estivesse no governo. A trama é sofisticada e começou na noite da apuração, com a convocatória para vigílias nos quarteis e locais das Forças Armadas (FFAA). A reação foi positiva: milhares começaram a ocupar a frente de quarteis e locais simbólicos das três forças, especialmente do Exército.
Aparentemente o caminho do golpe foi sendo traçado: uma situação de caos em razão de conflitos entre os manifestantes golpistas e a esquerda. Mas isso não avançou: Lula comemorou a vitória e orientou uma posição pacífica e de não confronto. Não convocou atos, não respondeu com hostilidade, nem tratou dos temas. As referências políticas também não. E não houve o caos de atos se confrontando.
Com isso surgiu a demanda de construir o caos. O “false flag” [bandeira falsa, em tradução livre do inglês] é um método antigo de legitimar conflitos e guerras. E isso exigiria uma área especial – os kids pretos, altamente capazes de operações dessa natureza.
O plano todos conhecemos agora. Dependeria de uma coesão na cúpula das forças, já que na base e setores de comando intermediário isso seria facilmente obtido.
É provável que os desacertos do plano do golpe, o quadro internacional desfavorável, com sucessivos reconhecimentos da lisura do processo e da vitória do Lula, finalmente conjugando com resistências pessoais – dentre elas a de Freire Gomes – comprometeram a execução do plano de impedir a diplomação (plano 1) e, sucessivamente, impedir a posse via caminho do caos – Garantia da Lei e da Ordem (GLO) – e intervenções pontuais: golpe.
As variáveis jogaram um peso grande na desarticulação. A antecipação da diplomação em uma semana (do dia 19 para o dia 12) foi uma delas, já que gerou um efeito de fato consumado e isso certamente – só a história poderá nos esclarecer – ajudou a arrefecer o caminho golpista.
As forças civis – parlamentares, setores da burguesia e figuras públicas acompanharam o processo cumprindo missões claras: ora era animar os atos e acampamentos; ora foi em denunciar as suposições sobre a fraude; ora em pressionar os setores da cúpula das forças em aderir, com destaque para a pressão sobre Freire Gomes e Batista Júnior, com destaque para ato na porta de casa do Gomes, recados, pedidos de apoio dirigidos a ele, abordagens diretas (como a de Carla Zambelli) e outros.
Finalmente, com a decisão de fugir em debandada e criar um clima inédito de posse sem passar a faixa, alimentando uma narrativa de fraude e ilegitimidade, Jair Bolsonaro entregou o governo e foi para a sombra.
Com o engajamento dos kids pretos na trama, as dificuldades havidas não arrefeceram os ânimos golpistas.
A operação mudou de contexto e teria que ser realizada sem o governo, razão pela qual o desfecho ocorreu com grande concentrado na operação clandestina dirigida pelos militares e contando com a cooperação dos setores resistentes dos acampamentos e dos apoiadores – empresários, especialmente do agronegócio.
Nesse caminho o plano definiu a data de 8 de janeiro. E estimulou todo o tipo de loucura, com atuação especial dos agentes para assegurar o caos e o avanço das ações dependendo de um erro grosseiro do governo: a decretação da GLO.
Essa operação ocorre após o fracasso do caminho golpista planejado para ocorrer em dezembro com Jair Bolsonaro no governo e buscando comprometer a diplomação ou, no limite, a posse. Fracassado, o plano B foi esse: induzir o governo a cometer um erro fatal, contando com a colaboração de setores supostamente de dentro do governo.
O resultado sabemos. O golpe passou a ser considerado com maior enfoque – ou quase somente – nos ocorridos em Brasília naquele sábado de janeiro.
Os fascistas nesse processo deram um tiro no pé!
O fragoroso fracasso resultou em prisões, uma CPI, inquéritos, processos e condenações. Mas os militares ficaram quase de fora. Esse tiro no pé arrefeceu a força da extrema direita, que só saiu dessa situação em razão da iniciativa do Silas Malafaia em convocar o ato de fevereiro. Após isso o esforço em superar esse gravíssimo erro nesse momento é comprometido pelas apurações da PF no inquérito, culminando com o indiciamento do Bolsonaro e grandes figuras militares.
O resultado da apuração da PF
O inquérito decorreu de documentos obtidos por determinação judicial, em delações, nas apurações da Comissão Parlamentar de Inquériro (CPI) e em pontas soltas de toda a trama.
As informações obtidas nas delações resultaram em fragilidades. Mauro Cid, o principal deles, mentiu e omitiu informações importantes. Mas o celular foi a maior fonte de provas até agora: grupos, mensagens excluídas, fotos etc. permitiram que a investigação avançasse para maiores responsáveis.
A fonte da investigação foi concentrada em figuras das forças – centralmente a delação de Mauro Cid, os depoimentos do Freire Gomes e Batista Júnior, deram o fio condutor. E resultou em maior ênfase no inquérito em apontar no conjunto um predomínio de militares indiciados.
Merece destaque para uma separação existente nesse campo: os militares não deixaram a condução nas mãos de civis em parte pela relação de confiança corporativa profunda, baseada no medo e risco a vida, e secundariamente por não considerarem os civis hábeis condutores de operações dessa complexidade. Isso talvez explique os poucos nomes civis e o de nenhum empresário, que certamente financiou – como já é sabido – e pressionou para o desfecho golpista.
Os nomes merecem destaque. É a primeira vez em anos – provavelmente em décadas – com uma apuração indicando responsabilidades de tantos nomes de comando das forças, especialmente da maior delas.
Mas impressiona a falta de nomes de parlamentares que compuseram a trama – como a própria Carla Zambelli –, figuras do empresariado – como Luciano Hang e outros – e de destaque como Ives Gandra, que teria sido o autor do decreto da GLO. Abertamente foi defensor do caminho da GLO e da sustentação ao direito das Forças de atuarem como efetivo poder moderador com amparo – na tese golpista – do artigo 142 da Constituição Federal.
O percurso judicial do processo ainda tem nuances e variáveis que não nos permitem ter um quadro claro dos tempos, atos e caminhos. Mas, por analogia e com um contexto das dimensões do caso, provável que a recepção do resultado do Inquérito Unificado ocorra com a recepção na íntegra das imputações, com alterações tópicas, e o processo seguirá para a instrução e julgamento.
Em resumo será um caminho distinto dos casos do 8 de janeiro em um ponto essencial; diferente dos anônimos, donas Fátimas e outros, nesse serão peixes graúdos – com destaque para comandantes e o próprio Jair Bolsonaro. A grande tendência é que as forças reais do Brasil joguem duro para que o desfecho dos processos seja a partir dos seus interesses.
A disputa será incomparável com o que já conhecemos até aqui com os exemplos do Mensalão e da Lava Jato, passando pelos “bagrinhos” do 8 de janeiro. Será um teste de fogo do nosso sistema de justiça e da capacidade dos juízes de suportarem todo tipo – e intensidade – de pressão.
Nesse quadro o STF deve ganhar protagonismo na “luta” contra o golpismo, em parte inevitável por ser uma luta nesse momento com centralidade no campo judicial, mas a questão é que isso pode ofuscar a luta política contra esses setores e suas ações golpistas.
Provável que no próximo ano será duro nesse tema. A torcida organizada do ministro Alexandre de Moraes acompanhando pela TV e esperando as sentenças condenatórias. Algo semelhante, guardadas as devidas proporções e diferenças – com destaque para as diferenças quanto à observância da legalidade, com os julgamentos do Mensalão e Lava Jato. Ou seja, com o protagonismo do Judiciário.
Muito provável que o bolsonarismo busque um caminho de denúncia do processo (provável que copiando o que foi a luta do Lula Livre), de apoio social e iniciativa política, sem perder de vista que o líder não aceitará o cárcere. O que é muito provável que ocorra é Jair Bolsonaro buscando uma embaixada para criar um campo de luta aberta e de denúncia contra o processo, retomando a centralidade política, a iniciática e o discurso antissistema.
O desafio será grande para enfrentar esse quadro. O protagonismo do Judiciário esvazia as ruas. A força da extrema direita tem apoio internacional, recursos abundantes, canais de comunicação de grande impacto (redes sociais) e buscará transformar o processo em um julgamento político – para, com isso, disputar o lugar do perseguido político, submetido a um processo marcado por ilegalidades e que não restou alternativas a não ser a rebeldia.
A rebeldia segue sendo disputada pela esquerda e direita (real e demagogicamente, respectivamente). E o próximo período será de lutas importantes, determinantes, para o que será do Brasil nas próximas uma ou duas décadas.
A esquerda precisará encontrar um caminho que seja capaz de fazer a denúncia do fascismo e do golpismo; combinada com ação de massas – nas ruas e nas grandes cidades; mostrando que essa disputa no fundo é de projetos de Brasil: de um lado o projeto do entreguismo, desconstrutor das bases nacionais e que projeta o futuro no caos e barbárie. De outro, um campo que quer disputar o futuro afirmando um projeto nacional, popular e democrático das amplas maiorias, construtor de uma ideia de país marcado pela efetividade da democracia, da amplitude de todas as inclusões sociais, baseada no sonho, na esperança e na valorização da vida.
Que esse cenário abra, definitivamente, um tempo em que a disputa política seja aberta e clara de projetos de país. E saibamos criar um caminho para estabelecer os padrões da sociedade do futuro, demonstrando que nesse momento o desafio é enfrentar, desmantelar e derrotar a força política e social fascista. Tarefa de primeira hora, construtora de melhores condições para enfrentar os enormes desafios nacionais.
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Os caminhos do bolsonarismo. Artigo de Ronaldo Tamberlini Pagotto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU