19 Julho 2025
Entre a violência e a política: a nova direita e os desafios ético-políticos nas instituições de ensino superior.
O artigo é de Marcos Aurélio da Silva, professor titular do Departamento de Geociências da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), publicado por A Terra é Redonda, 16-07-2025.
Há pouco mais de dois anos, o berlingueriano Aldo Tortorella perguntou-se com um tom de perplexidade como era possível que “após a catástrofe gerada pelo fascismo e pelo nazismo aquelas ideias tenham voltado a fazer proselitismo e a construir organizações”.[1]
Como notou Norberto Bobbio, ainda alguns anos antes do perplexo Aldo Tortorella, não se trata de um fenômeno que possa encontrar explicação na índole deste ou daquele indivíduo.
São as “circunstâncias” da história que nos põem diante da “sociedade violenta em que estamos forçados a viver”, seja em razão dos “malditos megatons unidos à vontade de potência” dos grandes Estados, “que não se reduziu” e até “parecem ter sido aumentado e sublimado”, seja a vontade de potência “dos pequenos, do criminoso isolado, do minúsculo grupo terrorista, daquele que joga bomba onde há multidões para que morra o maior número possível de gente inocente, num banco, num trem lotado, na sala de espera de uma estação ferroviária”.[2]
É verdade que a contextualização histórica de Norberto Bobbio é refém de um certo embaralhamento geográfico. Não é possível falar de política de potência após a queda do Muro de Berlim sem falar dos profundos desequilíbrios ocorridos nas relações de forças que organizam a vida social e a geopolítica mundial, esta última patente na dissolução do Pacto de Varsóvia e na adesão quase em bloco dos seus membros ao Pacto Atlântico e sua organização militar.
E aqui começam a se dissipar as perplexidades. Com efeito, são precisamente estas mudanças nas relações de forças que explicam, como notou Luciano Canfora em um estudo recente, o reerguimento de uma “nova direita” que muito claramente “sabe o que quer”, e isto tanto no “Ocidente mais rico” quanto nos “mundos em via de descolonização” ou ainda no antigo “mundo socialista”.[3]
E é assim que se pode compreender que um recente monitoramento do Conselho de Direitos Humanos da ONU acerca da expansão dos movimentos neonazistas, tenha se referido à multiplicação em células destes movimentos, que tem se espalhado por pelo menos duas dezenas de países, entre eles o Brasil – a quem a organização cobra que atue para “identificar e punir estes grupos”.[4]
E, do mesmo modo, eis como não se surpreender com as recentes denúncias de um processo disciplinar que envolveu um aluno de uma universidade brasileira − do qual participamos da comissão de inquérito −, tratando de “crimes de apologia ao nazismo, discriminação, fabricação de armas de fogo e associação criminosa”.
Não podendo ser associado à índole individual do discente denunciado no processo disciplinar que acima citamos, como corretamente argumentou a defesa apoiada no Norberto Bobbio já citado, tampouco podem os movimentos extremistas aos quais ele se associava, encontrar explicação no registro do mundo político, como talvez preferisse o mesmo Norberto Bobbio, inclinado a associar o “homo homini lupus de Thomas Hobbes no estado da natureza” ao “início da política”.[5]
Remetendo ao ideário do nazifascismo e à violência nele ínsita, estes movimentos se inserem no conceito de guerra, que nada tem a ver com aquele de política, segundo assinalou o filósofo Jan Rehmann,[6] ao insistir não ser correta a inversão pós-moderna da conhecida máxima de Carl Clausewitz, segundo a qual “a guerra não é outra coisa senão a continuação da política de Estado por outros meios”.[7]
A “comunidade política e estatal se consolida e se edifica sobre a base da cessação do estado da natureza e do estado da guerra”, lembrou Domenico Losurdo debruçando-se sobre a noção de Estado de Hegel, para a partir daí insistir que “a ideia de liberdade é verdadeira apenas enquanto Estado”, meio para a “superação da escravidão” e assim para alcançar o “reconhecimento recíproco” entre os homens.[8]
Trata-se da peculiar politicidade do humano, a dar concretude, através do Estado, ao “ao grande e admirável” “conceito ‘abstrato’, universal de homem”, em cujo centro está “o reconhecimento dos direitos inalienáveis” do sujeito independentemente da “nacionalidade, dos bens e de outras determinações ‘concretas’”.[9]
São os elementos do “Estado ético” de que falou Antonio Gramsci, não assimiláveis nem ao “Estado gendarme” (o Estado policial), “limitado à segurança pública e ao respeito das leis”, e nem exatamente ao “Estado intervencionista”, ligado às “correntes protecionistas ou do nacionalismo econômico”, mas o Estado “de origem filosófica (Hegel)”, referido “à atividade educativa e moral do Estado”, cujas articulações fundamentais encontramos no “sistema de associações ‘privadas e públicas’, explícitas ou implícitas’”.[10]
Um Estado do qual, lamentou Giovanni Gentili, o filósofo italiano que adere ao fascismo, “não se pode dizer realmente ‘infinito’”, revelando uma “tríplice limitação: família e sociedade civil, espírito absoluto [a arte, a religião, a filosofia], enfim e sobretudo a relação com outros Estados”.[11]
Nada mais distante do ideário de que fala a denúncia do processo ao qual estamos nos referindo. Um ideário que, na linha das formulações do racista Gobineau, revela seu completo desprezo pela “palavra ‘pátria’” e com ele o desprezo por aquilo que Gobineau chamou a “confusão étnica” reinante entre latinos, eslavos, judeus e helenos,[12] ponto de partida da ambição colonialista levada a efeito durante a II Guerra e do projeto de purificação da geografia europeia[13] – a rigor de todo o mundo – que ela conduzia.
Com efeito, o Estado ético de que estamos falando remete aos progressos da grande Revolução Francesa e do liberalismo mais avançado, ponto de partida de direitos modernos como “a liberdade de consciência e de expressão”, a “igualdade jurídica”, a “escola pública”, bem como dos meios de alcança-los: o “sufrágio universal”, a “liberdade de imprensa”, a “liberdade de associação e reunião política”.[14]
São os “pontos fortes da tradição liberal” que até mesmo o pensamento que se remete a Marx e Engels soube herdar sob a forma de uma Aufhebung – “uma superação que, longe de ser sinônimo de uma liquidação sumária, implica como momento essencial a assunção de uma herança” −, lembrou ainda uma vez o filósofo Domenico Losurdo referindo-se ao mesmo Antonio Gramsci antes citado[15], o grande teórico moderno da política como hegemonia, “necessariamente uma relação pedagógica”.[16]
Na oitiva final do processo administrativo do qual este artigo faz referência, a participação em associações religiosas de orientação cristã é apresentada pela defesa como uma prova de que a conduta social do discente objeto da denúncia é compatível com o respeito aos direitos modernos acima assinalados.
É fora de questão que o cristianismo, com seu “poder espiritual e moral”, tenha “mudado o mundo para melhor”[17], uma conclusão que podemos encontrar até mesmo no “comunismo crítico” de Antonio Gramsci, que “condenava enfaticamente o ‘anticlericalismo estúpido’ de quem não compreende a clara superioridade do pacifismo evangelicamente inspirado frente ao intervencionismo de determinados ‘ateus’ declarados”[18]. A despeito deste fato evidente, a igreja é uma instituição histórica, terrena, e como tal está sujeita também ela a injunções doutrinárias.
Senão vejamos.
Durante os anos da II Grande Guerra, com o papado de Eugênio Maria Pacelli (papa Pio XII), a igreja de Roma aferra-se sem rodeios às convicções reacionárias do tempo.
Assumindo o papado meses antes da eclosão do grande conflito, Eugênio Maria Pacelli arquiva a “encíclica contra o racismo e o antissemitismo” preparada por seu antecessor, tendo sido também ele, quando ainda secretário de Estado do Vaticano, aquele que negociou uma concordata com o regime nazista, considerada “um endosso de Hitler sem precedente na época”, ao passo que “não protestou contra as leis raciais de Nuremberg (1935) e o pogram de Kristallnacht (1938)”, como também “não protestou contra o ataque italiano à Etiópia e à Albânia (na Sexta-feira Santa de 1939) e, finalmente, não protestou contra a deflagração da Segunda Guerra Mundial pelos nazistas em seu ataque à Polônia em 1º de setembro de 1939”, tendo ainda se calado “a respeito do Holocausto, o maior assassinato em massa de todos os tempos”.[19]
De outra parte, é muito diferente a igreja que emerge com João XXIII, o papa Angelo Giuseppe Roncalli.
São os anos de aggiornamento do Concílio Vaticano II (1962-1965), marcado por tentar integrar na igreja “características fundamentais do paradigma da Reforma bem como do Iluminismo e da modernidade”, em especial “uma clara afirmação da liberdade de religião e consciência e de direitos humanos em geral”, além do reconhecimento da “cumplicidade no antissemitismo e uma inclinação positiva em relação ao judaísmo”, mas também “em relação ao Islã e outras religiões mundiais”, assim como “em relação ao progresso moderno, proscrito há muito, e ao mundo secular, à ciência e à democracia em geral”.[20]
A rigor, um processo reformista que acompanhava o reequilíbrio de forças do pós-II Guerra, fundamento do que o filósofo Stefano Azzarà chamou de “democracia moderna”, marcada por conquistas substantivas como “o sistema de aposentadorias, o sistema escolar, o sistema de saúde, o imposto progressivo, o contrato nacional de trabalho”[21], as quais responderam, no âmbito de uma conquista formal decisiva como o direito ao voto, à superação da discriminação censitária, de raça e de gênero.[22]
Mas mesmo este reformismo não encontrou meios de sustentação, sofrendo inúmeros retrocessos com a “linha de conservadorismo e restauração” do papa João Paulo II, voltada a pôr “um freio no movimento conciliar”.[23]
Entre os muitos retrocessos da Igreja de Karol Wojtila, está não só aquele de ter se calado, na confissão de culpa do ano 2000, acerca do “silêncio de Pio XII sobre o Holocausto”, mas também a batalha “contra as mulheres modernas”, “proibindo o controle da natalidade, o aborto (mesmo em casos de incesto ou estupro)” e o “divórcio”, sem que se deva esquecer o encorajamento da “reacionária e secreta organização política e teológica da Espanha de Franco, a Opus Dei, que esteve envolvida em escândalos ligados a bancos, universidades e governos”, ao passo que lança uma “Inquisição” “contra os teólogos morais norte-americanos, os teólogos dogmáticos da Europa Central, os teólogos latino-americanos e africanos da teologia da libertação e os representantes asiáticos do diálogo inter-religioso”.[24]
Com efeito, uma tal reconstituição histórica mostrou-se crucial diante do fato de que a oitiva antes citada colheu de uma das testemunhas a informação de que a associação religiosa do qual participava, no interior mesmo da instituição universitária, o discente objeto do processo administrativo, de nome Arautos do Evangelho, se caracterizava por um perfil conservador assemelhado aquele da organização Opus Dei.
Informação que, quando averiguada por pesquisa junto aos órgãos da imprensa nacional, não só pode ser confirmada como também demonstrou que as origens desta associação remetem à antiga Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP), de conhecidas ligações com o golpe de Estado de 1964, bem como que a mesma associação sustentava relações com os movimentos de extrema-direita recentemente organizados no País, além de ter se colocado em conflito aberto com o papado de Bergoglio[25], já definido como de tipo “democrata-cristão” e “decididamente ‘progressista’” em relação ao neoliberalismo e às intransigências do chamado neopopulismo de extrema direita.[26]
Não há dúvida, seja a reconstituição histórica acima apresentada, seja o perfil ideológico dos grupos com os quais mantinha relações o discente denunciado, ambas conduzem a conclusão de que o pertencimento a associações religiosas não é garantia de adesão aos princípios ético-políticos forjados pelo mundo moderno, e às vezes pode mesmo ser um caminho para o seu questionamento.
Um tal pertencimento religioso, em momentos em que as sociedades se encontram enredadas em uma grave crise de mitos, como a que agora vivemos – a crise de mitos que embala o mundo pós-moderno, apoiada na “necessidade de descobrir ou produzir verdades eternas”, como a “família e a comunidade”, a última com tons que chegam a lembrar a “mitologia wagneriana”, mas também a “adoração por líderes carismáticos e ‘multiformes’ com sua ‘vontade de poder’ nietzschiana”, a rigor uma reação à efemeridade das relações produzidas pela aceleração do “turnover” do capital, notou o geógrafo David Harvey[27] − , pode mesmo significar a adesão a ideários que agridem explicitamente os princípios políticos fundados no modernismo universal.
Os mesmos princípios que, independentemente dos contextos históricos, as universidades brasileiras estão obrigadas a defender como uma “excedência teórica”[28] a referenciar a sociedade civil e mais amplamente o Estado democrático − ético-político − dos quais são parte integrante e têm como missão ajudar a construir e robustecer.
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Chade, J. ONU denuncia aumento de células neonazistas no Brasil e cobra ação. Disponível aqui.
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Tortorella, A. L’origine della guerra e la lezione di Berlinguer. In: Crítica Marxista, nº.1, 2022.
[1] Tortorella, 2022, p. 2.
[2] Bobbio, 2011, p. 45-46.
[3] Canfora, 2023, pp. 94-95.
[4] Chade, 2024 e Chade, 2025.
[5] Chade, 2024.
[6] Rehmann, 2009, p. 147.
[7] Clausewitz, 2014, p. XCI.
[8] Losurdo, 1987, pp. 19-20 e 137-138.
[9] Losurdo, 2014, pp. 17-18.
[10] Gramsci, 1975, pp. 603-604 e 866.
[11] Losurdo, 1987, pp. 117-118.
[12] Idem, pp. 139-140.
[13] Klemperer, 1987, p. 145 e ss.
[14] Losurdo, 2006, pp. 15-16 e 229.
[15] Idem, pp. 30 e 229.
[16] Gramsci, 1975, p. 1331.
[17] Küng, 2002, p. 57.
[18] Losurdo, 2006, p. 17.
[19] Küng, 2002, pp. 218-219 e 222-223.
[20] Idem, pp. 226-227.
[21] Azzarà, 2022, p. 44.
[22] Losurdo, 2015, pp. 7-25.
[23] Küng, 2002, p. 235 e 237.
[24] Idem, pp. 219 e 239-240.
[25] Filho, 2022.
[26] Fineschi, 2022, p. 161.
[27] Harvey, 1990, pp. 293 e 305.
[28] Para a noção de “excedência teórica”, associada à “conquista de consciência e dos direitos do homem” que não se deixam incrustar por ideologias particularistas, ver Losurdo, 2006, pp. 239-240 e Losurdo, 2017, p. 189.