“Meus seis pontífices, dos silêncios de Pio XII ao grito de Wojtyla”. Entrevista com Andrea Riccardi

Pio XII e Wojtyla (Foto: Wikimedia Commons)

03 Dezembro 2022

O fundador da Comunidade de Santo Egídio: “Para fazer funcionar a capital não basta um prefeito, é preciso um governador”.

A entrevista com Andrea Riccardi é de Aldo Cazzullo, publicada por Corriere della Sera, 27-11-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis a entrevista.

Andrea Riccardi, você nasceu em 1950. Lembra de Pio XII?

É a minha primeira memória pública. Minha avó me falava sobre ele, sobre a tempestade que havia atravessado. Ele morreu quando eu tinha oito anos e parecia o fim do mundo.

Seu novo livro La Guerra del silenzio (A guerra do silêncio, em tradução livre) começa com um encontro entre o Papa Pacelli e seu futuro sucessor, Angelo Roncalli, no Vaticano, em 10 de outubro de 1941.

La guerra del silenzio: Pio XII, il nazismo, gli ebrei

Roncalli anotou: ‘O Papa me perguntou se o seu silêncio sobre a atitude do nazismo não é julgado mal’. É justamente Pio XII o primeiro a usar a palavra-chave: silêncio.

Exatamente: por que tanta hesitação antes de condenar abertamente as atrocidades dos nazistas?

Em primeiro lugar, precisamos entender duas coisas. O Vaticano era muito diferente de hoje: na diplomacia pouco contava, o Pontífice não era uma personalidade midiática internacional. E Pacelli era uma pessoa muito diferente do que pensamos que fosse.

Como era na realidade?

Manso, cortês, tímido, inseguro. Tinha um traço hierático, atenuado pela bonomia romana: poliglota, falava todas as línguas com um leve sotaque da sua cidade. E ele era indeciso. Há uma história que não se encontra nos arquivos….

Quem a contou a você?

O Cardeal Traglia, que era vicegerente de Roma. Na véspera do Natal de 1943, os alemães e o bando Koch violaram o Seminário lombardo, que estava cheio de judeus, militares, antifascistas escondidos. Muitos haviam recebido dos religiosos o hábito eclesiástico. Então os fascistas os obrigaram a recitar orações para descobri-los e levá-los aos campos de concentração. Um torpe sacrilégio.

Olha, não está na moda falar assim, tem que contextualizar...

Um torpe sacrilégio.

Como acabou?

Alguns judeus aprenderam a Ave Maria e o Pai Nosso e se salvaram. Outros foram presos e deportados. O Papa ficou indignado e, em protesto, ordenou que não se celebrassem as missas natalinas da meia-noite, que devido ao toque de recolher haviam sido marcadas para a tarde. Mas depois mudou de opinião e mandou Traglia avisar os párocos para que celebrassem a missa assim mesmo....

Por quê?

Ele temia irritar o ocupante. O Papa era um diplomata e sempre queria manter aberto um caminho de mediação. Mesmo que Giovanni Battista Montini, o futuro Paulo VI, nunca teria podido organizar a rede de proteção para judeus e antifascistas sem o consentimento de Pio XII. Alguns historiadores objetam que falta a ordem por escrito. Mas teria sido um grande risco colocá-la por escrito.

Pacelli era secretário de Estado de Pio XI. Juntos, eles prepararam outra dura encíclica condenando o nazismo (após a Mit Brennender Sorge). Por que ficou na gaveta quando Pio XI morreu?

Pio XI tinha um caráter muito diferente. Imperioso. Ele havia acreditado que Mussolini transformaria o fascismo em um regime católico. Quando percebeu que não seria assim, que o regime aliás estava perseguindo os jovens da Ação Católica, protestou vigorosamente. Pio XII era mais prudente. Estivera na Alemanha, falava alemão, mas a relação com Hitler era péssima.

Você escreve que no Conclave o verdadeiro rival de Pacelli havia sido Elia Dalla Costa, que em Florença barrara o arcebispado na cara de Hitler.

Mas foi considerado um pastor sem experiência internacional.

O primeiro país agredido foi a Polônia.

E os poloneses, especialmente o governo no exílio em Londres, exerceram muita pressão sobre o Papa: "Mas como a Polônia semper fidelis, baluarte católico contra o Oriente ortodoxo, está sendo dilacerada, os judeus estão sendo massacrados, e o chefe da cristandade não diz uma palavra?"

Justamente: por quê?

Não porque ele fosse antissemita. Pelo contrário, ele simpatizava com os judeus e trabalhou silenciosamente para protegê-los, como foi visto durante a ocupação nazista de Roma. Mas, precisamente, em silêncio. Ad mala maiora vinda, para evitar problemas maiores. Inclusive para os cristãos.

Em 1940, o embaixador italiano na Santa Sé, Dino Alfieri, foi transferido para Berlim.

E Pio XII, ao se despedir, fez confidências. Disse a ele que havia relido as cartas de Santa Catarina de Siena a Gregório XI, nas quais a santa advertia o Papa de que o juízo de Deus seria severo com ele se ele não reagisse ao mal. "Estou pronto para ser deportado para um campo de concentração, mas não para fazer algo contra a minha consciência", proclamou Pio XII.

Então o Papa tinha medo de ser deportado?

Ele estava pronto para enfrentar a busca e alguns documentos foram queimados. Não foi por isso que ele não interveio para salvar os judeus atacados no gueto em 16 de outubro de 1943.

Nos arquivos do Vaticano, você encontrou uma carta da princesa Enza Pignatelli, que alerta Pio XII sobre a iminente blitz.

A princesa soube que os alemães pediram aos fascistas uma lista dos judeus romanos. Às 6 da manhã do dia 16 de outubro, avisada por uma amiga, Enza Pignatelli foi ao gueto, aliás no carro de um diplomata alemão, viu tudo e foi correndo até o Papa.

Como Pio XII reagiu?

Ficou surpreso. Ele sabia que os nazistas haviam pedido cinquenta quilos de ouro, ele havia se empenhado com a comunidade para fornecer doze quilos ele mesmo. Ele pensava que os judeus estavam seguros.

Mas não se mexeu.

Ele tinha ido a San Lorenzo depois do bombardeio: um gesto histórico, o Papa com sua túnica manchada de sangue, os romanos comovidos. Ele poderia, não digo ir à estação Tiburtina para parar os comboios, como escreveu Rosetta Loy, mas ir se encontrar com os judeus presos no Colégio Militar a poucas centenas de metros do Vaticano. Não o fez.

Por quê?

Ele se iludiu pensando que poderia libertá-los de outras maneiras. Ele confiou no embaixador alemão Weizsäcker, que lhe fez perder tempo. Mas depois lutou para dar asilo aos procurados. O governador do Vaticano, cardeal Canali, que tinha simpatias fascistas, protestou. Mas o Papa ficou do lado de Montini. Foi o tempo em que "meia Roma escondia a outra metade". E a ação diplomática de Pio XII salvou outras vidas, por exemplo aquela de Giuliano Vassalli.

Mas o silêncio continuou.

O Papa achava que não devia se colocar do lado dos beligerantes, porque do outro lado estava a União Soviética. Ele citou as perseguições ligadas à "linhagem". Mas essencialmente o silêncio continuou mesmo depois da guerra. E aqui, francamente, não consigo dar uma explicação.

De que lado estava a família Riccardi?

O meu pai se juntou à resistência contra a Alemanha na Albânia depois de 8 de setembro. Ele acabou em um campo de concentração nazista perto de Colônia. Seu irmão Tommaso era fascista. A mãe dele, minha avó, o mandou para o campo nazista para buscar o outro filho deportado.

Ele conseguiu?

Não. Para convencê-lo, levou-o ao restaurante, seguido pelo guarda alemão. Meu pai foi inflexível: havia jurado fidelidade ao rei, não ao Duce. Seu irmão o levou de volta ao campo; mas antes de se despedir, tirou o casaco e o deixou com ele. Papai trocou por comida para passar o inverno.

Eles se reconciliaram?

Sim. Mas todas as vezes recomeçavam a discutir sobre o rei e o Duce.

Como você se lembra do Papa João?

Uma surpresa maravilhosa. A Cúria o escolheu como Papa de transição. Pensava que poderia manobrá-lo: "‘Aquele bonachão Roncalli", dizia Tardini. Eu o vi em San Giovanni, aclamado pela multidão: em poucos meses havia cancelado Pio XII, que havia sido um papa muito popular. O primeiro a ditar mensagens no rádio, o primeiro a aparecer na TV nos EUA….

Você era amigo de monsenhor Capovilla, o secretário de Roncalli.

Que me contou episódios reveladores. O novo Papa toma posse, Madre Pascalina, a mulher forte do pontificado anterior, acompanha-o a visitar o apartamento e de repente cai de joelhos: "Aqui o Santo Padre viu Jesus..." E Roncalli, quase impaciente: "Ok, vamos em frente".

Depois veio Paulo VI.

Ele era muito ligado à figura de Pacelli. Em sua histórica viagem à Terra Santa, ele o defendeu perante as autoridades israelenses. Ele se manteve firme, lembrou que Pio XII havia salvado muitos judeus.

Você também foi próximo de João Paulo II, de quem também é biógrafo.

De Pacelli, Wojtyla nunca falava. Talvez ele não tivesse aceitado os silêncios sobre sua Polônia. E, além disso, amava os judeus. Ele os considerava parentes de Jesus, e em seu testamento nomeia apenas duas pessoas: Stanislau, seu secretário que era como um filho, e Toaff, o rabino chefe de Roma. Alguns críticos tradicionalistas argumentam que a mãe de Karol Wojtyla era de distante origem judaica…

Você acredita nisso?

Se fosse provado, eu não ficaria surpreso.

Como você o conheceu?

Era 1978, ele veio visitar Garbatella. Convidamos ele ao convento das capuchinhas, onde abrimos um jardim de infância para filhos de mães solteiras que viviam na rua, um deles havia sido mordido por um rato e quase morreu. O Papa entrou, sentou-se nos bancos, se fez fotografar com as crianças. Achava a Igreja de Roma um pouco apagada, simpatizava conosco de Santo Egídio. E ele nos convidou para ir ao Vaticano.

Como era em privado? Ele se irritava?

Só uma vez o ouvi levantar a voz para Stanislau, que queria convencê-lo a não ir a Sarajevo: "Isso colocaria em perigo a sua comitiva..." - "Eu irei sozinho!" - "Mas não tem eletricidade, os microfones não funcionam..." - "Eu vou gritar!" Mas depois teve palavras de ternura: "O Stanislau sempre esteve comigo, eu não teria aceitado a eleição se não o tivesse a meu lado...".

Como Wojtyla passará para a história?

Como o último Papa que saiu vitorioso. Aliou-se a Reagan, libertou os poloneses quase como um Moisés que libertara os judeus. A primeira viagem que fez foi a Assis. Um fiel gritou-lhe: viva a Igreja do silêncio! E ele, rápido: "A Igreja do silêncio não existe mais. Agora está aqui; e fala". Um gigante. Convencido de que a Itália tinha uma missão no mundo.

Qual?

Preservar a sede de Pedro. Conciliar a cristandade e o humanismo.

Como você recebeu a renúncia de Ratzinger?

Mal. Quase como um ato de frieza. Acredito que a história ainda não a esclareceu. Quase parecia que o Papa já não tivesse mais forças e vontade para fazer o que sabia que tinha de fazer.

Em qual sucessor Ratzinger pensava?

Em Scola. Mas no Conclave prevaleceu a opção de não apostar nos italianos.

Francisco está prestes a completar dez anos de pontificado. Qual é o balanço?

Ele encontrou uma situação muito difícil, uma depressão geral. O formidável começo levou a pensar que os males da Igreja estivessem curados por encanto. Não poderia ser assim. Francisco teve o mérito de colocar os pobres no centro. Em algumas reformas, como a comunhão para os recasados, foi parado. A Igreja europeia está em decadência, as catedrais estão vazias de jovens, parece que o sacerdócio é um trabalho que os europeus não querem mais fazer. No entanto….

No entanto?

Este é potencialmente o tempo da Igreja. A Igreja é cultura e sentimento: doa fé às pessoas e tem uma visão global. É a única que dá esperança para esta vida e para a vida futura.

Que tipo é o cardeal Zuppi, presidente dos bispos italianos?

Eu o conheço desde que eu tinha 19 anos e ele 14: muito magro, muito apaixonado, com o casaco que tinha sido dos seus irmãos. Ele não mudou - ele sabe como entrar em empatia com as pessoas. Ele sabe rir. É um construtor.

O que você acha de Giorgia Meloni?

Ela ganhou a eleição; vamos julgá-la pelos fatos. O passado nos ensina que a Itália é governada pelo centro. Ampliando e envolvendo. E focando na prioridade absoluta: a escola. Não funciona mais, deve ser reconstruída.

Dizem que você é indulgente com Putin.

Estive na Ucrânia pela primeira vez na década de 1980, quando havia a União Soviética. Fiquei amigo dos patriotas que queriam fazer de Lviv a Turim da Ucrânia, o berço da independência do Império Russo. Não mudei de lado: estou com eles. É exatamente por isso que não quero que a guerra na Ucrânia se torne infinita, como na Síria e na Líbia. É preciso diplomacia.

Como você vê Roma?

Não se consegue fazê-la funcionar, colocar táxis na estação, restaurar a legalidade nas estradas, humanizar as periferias. Capital deprimida, nação perdida. Ao mesmo tempo, servem mais cuidado e mais visão. E novos instrumentos institucionais: o prefeito deve contar mais, tornar-se uma espécie de governador de Roma.

De vez em quando indicam seu nome para prefeito, e também para presidente da República…

Se é por isso, li que me teriam proposto também a presidência da Região... Bastou-me ser Ministro da Cooperação com Monti. Um primeiro-ministro que teve muitos méritos: reuniu um país à beira da falência. Voltamos para a África, onde estávamos ausentes, e demonstramos que os migrantes podem ser integrados sem os tornar uma emergência.

Como você imagina a vida após a morte?

Finalmente uma grande paz. O Senhor tem nos seguido ao longo de toda a vida; ele não nos abandonará justamente no momento supremo.

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