Por: Cesar Sanson | 01 Agosto 2016
Três rápidas e sonoras palmadas no ar podem ter um poder perturbador. Significam que um cliente está entrando e que a conversa e o descanso dos pés, calçados em saltos de 15 centímetros, acabaram. Ninguém chama você pelo seu nome, nem pede por favor. É hora de levantar, arrumar a minissaia e fingir. Pela porta entram dois jovens japoneses imberbes com aspecto de nerd que se sentam em seguida com uma cerveja na mão. À altura dos seus olhos estão as pernas de umas dezenas de mulheres com histórias pesadas nas costas, pouco dinheiro e muita maquiagem. Dispõem-se a escolher.
A reportagem é de María Martín e publicada por El País, 31-07-2016.
Estamos em uma boate da turística Copacabana, a menos de duas semanas dos Jogos Olímpicos. As ruas do entorno ardem com a presença de dezenas de mulheres buscando dinheiro em troca de sexo. Mas aqui dentro o tédio impera até a noite bem avançada do sábado. Nos sofás, de ombros cansados, pequenos hematomas nas pernas e compridas unhas de esmalte fluorescente, seis mulheres de todo o Brasil contam suas histórias. A conversa seguirá por uma semana em outra boate, no centro do Rio, onde trabalham de segunda a sexta, no apartamento de alto padrão onde convivem com outras sete mulheres e no táxi que as leva diariamente para trabalhar, nos clubes ou até na praia.
Cada uma delas têm tatuada uma história: há uma auxiliar de necrópsia, uma comissária de voo, uma estudante de fisioterapia, uma aspirante a massagista com o novo testamento no bolso e várias mães. Há também uma miss e uma futura engenheira industrial que não quiseram dar entrevista. Todas elas têm em comum três coisas: transam por dinheiro, detestam seu trabalho e vieram ao Rio para fazer uma pequena fortuna durante a Olimpíada. A última das semelhanças é o sonho compartilhado de recomeçar: depois dos Jogos todas se imaginam recuperando uma vida normal.
É a hora do almoço num apartamento de quatro quartos em um condomínio de luxo com vista para as palmeiras imperiais do Jardim Botânico. Na cozinha, Luiza* prepara um delicioso strogonoff de camarão, uma exceção numa dieta normalmente composta por frango e carne. Há dois turnos para as 13 mulheres que ali moram comerem. O primeiro deve sair já às 13 horas a caminho do clube, no centro da cidade, que as trouxe para o Rio e que atrai engravatados após os escritórios fecharem, e o segundo, que sai às 15h. Comem e procuram repetir. Sua próxima refeição será um pão com presunto, de pé, na boate.
Luiza tem 32 anos, veio do Espírito Santo, e aprendeu a fazer o estrogonofe com quem ela chama de mãe, a diretora do orfanato onde viveu até os 19 anos. Havia quase uma década que não se prostituía, mas voltou após se separar do marido, por quem saiu das boates. Quando começou a fazer programa, após deixar a instituição, suas ambições eram simples: comprar salmão e comer algodão doce, luxos para uma menina sem infância. Hoje precisa refazer sua vida e quer montar um restaurante, mas não tem dinheiro. Ela soube da oferta de vir ao Rio para trabalhar nesse clube, reaberto às pressas para aproveitar os turistas dos Jogos, e aceitou. A contragosto. É tímida – “até hoje não consigo chegar nos clientes”– e as três malditas palmadas no ar anunciando a entrada de algum homem a incomodam. Muito. “Não tenho paciência”, conta do sofá simulando o sobressalto que todas dão ao ouvi-las. Luiza ficará no Rio até o dia 22 de agosto, fim da competição, com o objetivo de trancar para sempre as ruas.
Quem trouxe essas 13 mulheres para a cidade, e continuará trazendo mais até o fim da Olimpíada, é um estatístico que nunca tinha trabalhado com prostitutas, embora pareça se sentir bem confortável na sua nova função de guardião-protetor da turma. Ele foi procurado pelo novo gerente da boate – que também nada tem a ver com o setor – para ajudá-lo a resgatar uma casa de prostituição que quebrou e acabou fechando por intrigas entre os sócios. Eles não pretendem ficar ricos durante a Olimpíada, mas correram para reinaugurar o clube e não perder o impulso turístico do evento que levará a tocha olímpica a poucos metros dali. Resolveram atrair mulheres de outros Estados porque os clientes locais dizem se cansar de ter sempre os mesmos programas, mas, na real, trazer mulheres de fora, hospedá-las em um apartamento onde eles mesmos dormem e oferecer o transporte, ajuda a tê-las mais controladas e evita que faltem ao trabalho ou criem confusão por medo de serem expulsas.
O estatístico contatou às pressas através de sites e conhecidos cerca de 150 mulheres do todo o país. A oferta que enviou para atrair o maior número de interessadas incluía a viagem de ida para o Rio, alimentação, transporte e hospedagem de graça. Em troca, elas estão obrigadas a trabalhar na boate oito horas por dia, de segunda a sexta, seduzir os clientes para que consumam e fazer o maior número de programas possíveis em uma noite. Os interessados pagam 100 reais para entrar no local, 300 por deitar com as mulheres e mais 100 reais pelo quarto.
A prostituição não é crime no Brasil e está reconhecida pelo Ministério de Trabalho desde 2012, mas o que os sócios da casa fazem é considerado crime de rufianismo, que contempla o lucro com a prostituição alheia.
Gastos supérfluos – como bombons que algumas adoram – não estão incluídos, e as regalias começarão a ser cortadas conforme o clube consolide sua clientela. Fora das jornadas de oito horas combinadas, as mulheres têm liberdade para trabalhar em outros lugares. “Elas precisam ganhar dinheiro, e eu preciso que elas estejam contentes, senão vão embora”, explica ele. Essa liberdade, que muitas outras casas não oferecem, é fundamental para elas: passar a noite ou o final de semana com um cliente é um plano muito mais rentável do que o que recebem por programa na balada.
Carol, paulista de 22 anos, de tatuagens nas pernas e cabelo longo e preto, não se desgruda de Márcio, sentado na poltrona da sala, ainda decorada com as fotos familiares do proprietário da casa. O jovem é o taxista responsável pelo transporte das mulheres, um homem de histórias de amor convulsas e misturadas com o negócio da prostituição e que muitas noites fica dormindo num colchão no chão. Ela senta no colo dele, o abraça e simula uma paquera. Sente-se muito sozinha, confessa, um sentimento que, sem ser expresso em voz alta, percebe-se na busca de carinho de todas elas, demonstrada até com a reportagem. “Meu pai adoeceu e eu tive que vender até minha moto para pagar as consultas. Eu não me arrependo de ter resolvido me prostituir porque entrei para ajudar minha família, mas eu tenho um lado muito solitário, e isso é o mais difícil. Mais do que se deitar com alguém que não conheço e de quem não gosto. Eu não tenho namorado, não estou perto dos meus pais, nem dos meus amigos”, explica Carol às lágrimas. “Até o final do ano quero sair dessa vida, pretendo casar, construir uma família e trabalhar no que for. Não desejo isso a ninguém”. Ela acha que o Rio é seu bote salva-vidas para chegar até aí.
Num boteco da Zona Sul do Rio, Thais, uma catarinense de 24 anos, confessa que está pensando em trancar temporariamente a faculdade onde estuda fisioterapia para ampliar sua estadia no Rio durante toda a Olimpíada. Quer juntar mais dinheiro, investir numa pós-graduação, estudar inglês e viajar ao exterior. “Estou confusa, não sei o que fazer. Vou ganhar mais, mas não vou me formar com meus colegas e nem sei o que dizer aos meus pais.” Criada entre irmãos homens, por uma família evangélica, usou a profissão para pagar cursos e simpósios – seus estágios não são remunerados – e sofre toda vez que mente para sua mãe para encobrir este tipo de viagens. Para a família, ela está curtindo as férias. “Eu nunca vou mostrar este caminho para ninguém, ‘vai vender bolacha na rua’, vou dizer. Quando comecei com 19 anos pensei que ia ser todo alegria, mas a alegria só durou um mês. Meu medo é não conseguir sair, eu sempre acho desculpas para voltar. Não é dinheiro fácil, mas é rápido. É um vício do demônio.”
Em sua primeira noite de trabalho no Rio, na boate de Copacabana que elas frequentam só no final de semana e onde os donos as obrigam a ficar até as seis de manhã se elas não conseguirem um programa, Maria já matutava a ideia de ir embora. “Odeio o que faço, você não tem ideia. Mas é o único caminho rápido que tenho de fazer dinheiro, procurei tanto tanto emprego e não consegui...”, contava vestida com um body decotado de onça e uma minissaia preta antes da conversa ser interrompida pelas três palmadas. Maria pensava ficar no apartamento até a sua formatura como auxiliar de necropsia em setembro, mas desistiu na quinta-feira. “Vim com a expectativa de ganhar dinheiro, preciso pagar minhas contas, quero estudar fora, mas me falaram que haveria muito movimento nessa boate para a qual eu vim, e não foi bem assim”, conta já no ônibus, a caminho de Goiás.
Depois de a boate ter ficado fechada por meses, ainda faltam clientes no local para que cada uma delas consiga fazer mais de um programa por noite.
É provável que Maria não seja a única que veja suas expectativas frustradas daqui até o final da Olimpíada. Os grandes eventos esportivos costumam ser vistos como uma fonte inesgotável de dinheiro, mas para muitas mulheres não é mais do que fumaça. Um estudo de campo do Observatório da Prostituição, da Universidade Federal do Rio, indagou através de entrevistas sobre o impacto da Copa do Mundo de 2014 nas áreas de prostituição mais importantes do Rio (Vila Mimosa, Ipanema, Copacabana, Lapa e o centro da cidade) e concluiu que foi um mau negócio para muitas prostitutas que trabalharam nas ruas. Segundo o relatório, as mulheres assistiram a um declínio significativo no número de clientes tanto pela maior concentração de profissionais do sexo na turística Zona Sul, como pela baixa movimentação em lugares como o centro da cidade durante os vários dias que foram decretados feriados por causa do evento. O perfil do visitante, principalmente argentino, com pouco dinheiro, também foi motivo de reclamação. O porteiro do clube de Copacabana onde estamos, no entanto, diz que naquela época a fila de clientes dava volta na rua.
Martha, que veio de São Paulo, costuma ajudar Luiza na cozinha. Tem 22 anos, um sorriso infantil e generoso e é uma das várias mães solteiras do grupo. Seus pais morreram e procura no Rio um futuro para sua filha que ficou sob os cuidados da irmã desempregada. Faz programa há só dois meses, “quando começaram a faltar coisas em casa e não havia nem para o leite”. Seu último emprego formal foi em uma loja de chocolates. “Não dá para criar um filho com mil reais, né?”, questiona. Seus problemas, porém, vão além das compras no supermercado. Ameaçada de morte pelo pai da sua filha, hoje na prisão, precisa sair da sua cidade antes dele ser liberado para se sentir a salvo. Não vai ser fácil. Uma semana depois da sua chegada ao Rio ainda não tinha conseguido um bom dinheiro para mandar à sua filha.
Entre as mais veteranas do grupo impõe-se a presença de Tamara, alta, corpulenta e com peito e bunda mais do que generosos. Com 29 anos, ela já se prostituiu em todos os cantos do Brasil, atraída por eventos de todo tipo, e até deu um giro pela Europa. Crescida em um colégio de freiras e com um Novo Testamento sempre no bolso, o discurso de Tamara é cru, sem intenção nenhuma de romantizar uma profissão que também detesta e que dificilmente consegue exercer sem drogas. “Comecei porque queria fazer faculdade, mas pergunta para mim se eu estudei”, provoca. “Não. Mas o dinheiro vicia tanto que você não sabe sair.” Entre as mentiras que rodeiam este mundo, Tamara inclui o sonho de sair das ruas que todas as suas colegas, e até ela, alimentam. “Não existe ex-puta, existe você parar por um determinado momento, mas você volta ao que sabe fazer melhor”, diz. “Estou agoniada para sair, não vou mentir. Mas o trabalho não está fácil. E se eu largar e voltar a passar necessidade?”.
Uma semana depois de encontrá-las pela primeira vez, a convivência e as conversas com o grupo revelaram uma outra semelhança entre elas: quando o barulho das boates se apaga e o rastro de álcool e de sexo se perde no ralo do chuveiro, elas choram em silêncio sob o edredom.
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O sonho agridoce das prostitutas da Olimpíada - Instituto Humanitas Unisinos - IHU