26 Julho 2016
A Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) viveu nos últimos meses alguns preocupantes episódios envolvendo denúncias de racismo, homofobia, machismo, intolerância e discriminação. A agressão sofrida por Nerlei Fidelis, estudante cotista indígena de Medicina Veterinária na UFRGS, na madrugada do dia 20 de março, em frente à Casa do Estudante, no centro de Porto Alegre, acendeu o sinal de alarme. Mais recentemente, um coletivo de mulheres denunciou uma série de casos de agressões, por parte de colegas, que estariam sofrendo dentro da Casa do Estudante. Além disso, um grupo de seguidores do deputado federal Jair Bolsonaro é acusado de intervir de forma agressiva e ameaçadora em atividades relacionadas à agenda de direitos humanos.
Preocupada com este cenário, a reitoria da UFRGS acolheu proposta feita pela Coordenadoria de Acompanhamento do Programa de Ações Afirmativas e criou o Comitê contra a Intolerância e a Discriminação, que acompanhará essas denúncias e promoverá debates sobre esses temas dentro da universidade. Diretor do Departamento dos Programas de Acesso e Permanência da UFRGS, o sociólogo Edilson Nabarro foi encarregado de coordenar o comitê que pretende, entre outras coisas, fazer um mapeamento das denúncias de intolerância e discriminação dentro da universidade e trabalhar em conjunto com outras instâncias da instituição para que esses casos não fiquem apenas no plano da denúncia.
A entrevista é de Marco Weissheimer, publicada por Sul21, 24-07-2016.
Edilson Nabarro fala sobre a dimensão do problema e sobre o papel que o comitê pretende desempenhar. “Estamos vivendo uma agudização dos atos de intolerância dentro de um contexto mais geral de crescimento da intolerância no país. A intolerância política contra a agenda dos direitos humanos contaminou os ambientes e a UFRGS não ficou fora disso”, assinala.
Eis a entrevista.
Como nasceu a ideia de criar o Comitê contra a Intolerância e a Discriminação na UFRGS?
Antes de responder essa questão, permita-me fazer uma nota biográfica que explica a minha relação com o tema e com o comitê. Eu sou sociólogo formado pela UFRGS há alguns anos e sou técnico-científico dessa universidade há 30 anos. Fui pró-reitor de assuntos estudantis entre 2008 e 2012 e atuei na comissão especial que elaborou o programa de cotas da UFRGS em 2006. A minha vinculação com os temas da diversidade e do racismo vem também do movimento negro. A incidência do racismo e de outras formas de discriminação nas organizações não é um tema novo. O racismo institucional não é enfrentado pela maioria das organizações. Mais recentemente, estamos vivendo uma agudização dos atos de intolerância dentro de um contexto mais geral de crescimento da intolerância no país. A intolerância política contra a agenda dos direitos humanos contaminou os ambientes e a UFRGS não ficou fora disso.
Em função desse cenário, avaliamos que era preciso ter uma resposta institucional a esse problema. Há muitos anos vêm sendo tomadas iniciativas institucionais na universidade relacionadas a esse debate sobre a diversidade, racismo contra negros e indígenas, homofobia, machismo e violência contra a mulher. Mas em função da agudização dos atos de intolerância e racismo. Em relação ao racismo, muito se faz em termos de denúncia do preconceito. O preconceito é a antessala da discriminação direta, da violência subjetiva e da violência física. Não faltam leis para punir o racismo. O Estado brasileiro, especialmente depois de 1988, começou a criar dispositivos institucionais para combater a desigualdade e a discriminação racial, como conselhos com a participação da comunidade negra, secretarias e departamentos, Dia da Consciência Negra, entre outros.
Por muito tempo, e ainda hoje, se cultivou esse mito de que não existe racismo no Brasil. Aqui, ninguém é racista. Quando ocorre um caso de racismo em uma organização a tendência é ela dizer que não concorda e repudia essa prática, mas nada faz de concreto. Foi neste contexto que surgiu a ideia de criar o comitê. Ele não nasce com a intenção de resolver todos os casos de racismo, intolerância e discriminação dentro da universidade nem pretende substituir órgãos e instâncias já existentes e que também trabalham com esses temas. O comitê não cuidará de processos administrativos de responsabilização de pessoas que praticam tais atos. Para isso, já existem instâncias dentro da universidade que possui um código disciplinar para tratar tais condutas. As penalidades previstas neste código preveem, no caso dos discentes, advertência, suspensão e, nos casos mais graves, desligamento. Esses processos administrativos, é importante assinalar, têm, obrigatoriamente, o rito do contraditório.
A primeira coisa que procuramos fazer no comitê é justamente definir o nosso nível de competência para não se justapor a outras instâncias da universidade. Somos um comitê vinculado ao gabinete do reitor e temos uma conexão com a Ouvidoria que é quem recepciona todas as denúncias. O que ficou combinado é que todas as denúncias que envolvam racismo, homofobia, xenofobia, intolerância e correlatos serão encaminhadas para o setor onde teriam ocorrido esses casos e também para o comitê. A primeira coisa que pedimos para a Ouvidoria é que nos enviasse todas as denúncias feitas em 2015. Tivemos 74 denúncias de racismo, homofobia e outras formas de intolerância envolvendo estudantes, técnicos e professores. Nós vamos classificar esses casos para ver onde estão ocorrendo, a natureza do incidente, quem são os envolvidos, etc., para termos um mapa mais claro do que está acontecendo.
Hoje não existem estatísticas organizadas sobre esses casos?
Sim, a ideia é mapear a especificidade desses casos e, principalmente, o que está sendo feito a partir das denúncias. Nós vamos atuar no acompanhamento desses casos e ver qual o tipo possível de intervenção que pode ser feita para além dos procedimentos administrativos já previstos. O comitê é formado por dez integrantes. Nós temos um caso singular que vai nos desafiar que é essa denúncia recente feita por um grupo de alunas que moram na Casa do Estudante. Tivemos também o caso do Nerlei (estudante indígena agredido em frente à Casa do Estudante), que foi muito simbólico, além de denúncias de racismo que até então não chegavam formalmente para nós.
Para se abrir um processo de investigação é preciso ter, em primeiro lugar, a caracterização do fato e sua contextualização: onde ocorreu, quando, a presumível autoria e a vítima. Se não há esses elementos não tem como abrir um processo. Nem sempre isso é simples. No caso do coletivo de mulheres da Casa do Estudante, elas informaram que o amedrontamento inibe a denúncia. O que também contribui para inibir a denúncia é a ausência de uma garantia institucional de que o fato será encaminhado e a vítima será protegida.
No documento apresentado à Reitoria propondo a criação do comitê, lembramos que o Brasil é signatário de vários tratados internacionais, cujos signatários têm a obrigatoriedade de apurar esse tipo de denúncias. As nossas organizações públicas e privadas têm a responsabilidade de tomar medidas quando defrontadas por esses casos. Não adianta simplesmente repudiar e condenar sem tomar nenhuma medida concreta. No âmbito da UFRGS pretendemos desenvolver ações preventivas e pedagógicas junto à comunidade universitária, incluindo professores, técnicos e alunos. Vamos promover cursos de capacitação na área de direitos humanos para professores que estão ingressando na instituição. Queremos promover também ações relacionadas ao acolhimento dos calouros, criando alguns eixos de prevenção. Todas essas ações pedagógicas e preventivas, porém, não dão uma resposta imediata.
Parece que o próprio comitê já experimentou uma dose desse crescente clima de intolerância. Como foi esse episódio?
No primeiro evento que nós fizemos no Campus do Vale, com a professora Natalia Pietra, do IFCH, apareceram alguns seguidores do deputado Bolsonaro, um deles estudante da UFRGS. Um deles se apresentou como sendo policial. Fizeram intervenções para tentar minar o evento, dizendo que deveríamos instruir as alunas para irem armadas para o Campus, que aumentou o número de estupros porque os negros estavam estuprando as mulheres brancas e outras coisas do tipo. Depois disso, a palestrante do evento começou a sofrer um ataque nas redes sociais. Já houve inclusive uma reunião com o futuro reitor Rui Oppermann para tratar de providências junto à Polícia Federal.
Há relatos de gente andando armada e fazendo ameaças dentro da universidade…
Sim. Estamos começando a fazer um monitoramento disso. Como eles estão aparecendo em vários eventos, estamos orientando a segurança da universidade a acompanhar essas reuniões para dar a devida proteção, pois esses elementos estão na antessala da violência física. Por enquanto, estão no nível do amedrontamento e da ameaça. No dia da instalação do comitê, que teve uma palestra magistral do Marcos Rolim, eles estavam lá. Não conseguiram intervir porque limitamos a atividade à fala do palestrante. Eles não falaram, mas depois quiseram tirar fotos conosco, o que não permitimos. Usam uma metodologia fascista e não são poucos, No Campus do Vale, há um clima de amedrontamento.
A ideia é que o serviço de vigilância da UFRGS comece a identificar a presença desses elementos em eventos na universidade. Já tomamos essa providência semanas atrás em um evento que debateu problemas de indígenas e quilombolas lá na Engenharia, mas eles não apareceram. Estamos promovendo conversas contra a intolerância e a discriminação. Fizemos a primeira que debateu como combater a cultura do estupro. Vamos fazer outras nessa linha do “como”: como melhorar o acolhimento indígena, como enfrentar o racismo, etc. A ideia é um subir um degrau a mais do plano da denúncia, adotando ações mais propositivas. Queremos avançar também na organização da tipologia desses incidentes e acompanhar junto à Ouvidoria as providências que já estão sendo tomadas e, onde não estão sendo tomadas, por que não estão. Queremos localizar onde estão os pontos críticos.