18 Julho 2016
Há nove anos, no dia 17 de julho de 2007, um acidente com o avião da TAM que fazia a rota Porto Alegre-São Paulo deixou 199 mortos e alterou para sempre a vida das famílias das vítimas. A tragédia provocou impacto também em um dos advogados contratados por familiares para representá-los no caso, Eduardo Barbosa, 53 anos, que decidiu escrever um livro para contar bastidores da luta dos parentes por justiça e histórias de sofrimento e superação que testemunhou nos três anos em que conviveu com pais, mães, avós, filhos, irmãos e cônjuges de quem perdeu a vida no voo. Como uma das vítimas vivia nos EUA, um processo envolvendo 77 famílias que optaram por recorrer à Justiça americana foi aberto em Miami. No livro, ainda em elaboração, o autor pretende abordar as lições deixadas pela ágil tramitação do caso em solo americano. A expectativa é de que a obra seja lançada no ano que vem. Casado, pai de dois filhos, o advogado conta que a proximidade com as famílias afetadas pela queda do Airbus no aeroporto de Congonhas lhe deixou marcas pessoais.
A entrevista é de Marcelo Gonzatto, publicada por Zero Hora, 18-07-2016.
Eis a entrevista.
Quando e por que o senhor tomou a decisão de escrever o livro?
Quando me pareceu que as pessoas não estavam mais falando sobre o acidente. E a associação dos familiares das vítimas é algo único. Aquelas pessoas, em meio a um drama daqueles, conseguiram se unir e ter tranquilidade para se ajudar umas às outras. O Brasil se esquece muito das coisas, mas não pode esquecer o acidente da TAM. Vivi experiências muito intensas, e quem viveu aquilo não esquece. Mudou a minha vida também. Me senti pequeno diante daquelas pessoas.
O foco é mais humano ou jurídico?
As duas coisas. Sem ser muito técnico, vou abordar como funciona o sistema de acordos nos Estados Unidos (onde parte das famílias de vítimas ingressou na Justiça) e a experiência humana na qual 200, 300 pessoas se uniram em uma associação e, de certa maneira, conseguiram dar a volta por cima. Embora, até hoje, existam situações como a de um cidadão que perdeu a única filha, uma aeromoça, mudou-se para São Paulo e todas as terças¬feiras visita o memorial construído em homenagem às vítimas.
Que histórias lhe marcaram mais na relação com as famílias?
Teve uma família que morava em Campinas e se mudou para São Leopoldo para o pai lecionar na universidade. Nas férias, a filha pediu para visitar os amigos em São Paulo. Pegou o voo, sozinha. Tinha 15 anos. Vi o quanto esse pai e essa mãe se culparam: “Se não tivéssemos saído da nossa terra, ela estaria com a gente até hoje”. A mãe sofreu um derrame. Testemunhei um episódio em que um familiar de outra vítima, durante o almoço em um restaurante, reclamava de alguma coisa com o garçom. Uma pessoa disse que ele estava muito nervoso. Ele respondeu: “Você diz isso porque não perdeu a filha, a neta e o genro” e puxou uma foto em que apareciam os três, já mortos, de mãos dadas. Até hoje, fico arrepiado com isso.
Conviver com essas situações, mesmo profissionalmente, também afeta?
Várias vezes, chorei muito. Vi cenas fortes, que me marcaram demais. Tu não sais ileso de um encontro com familiares de vítimas. Conheci o pai de uma advogada de 34 anos que morreu na tragédia. Quando se assina contrato para representar alguém em uma situação dessas, tu mergulhas na vida dessa pessoa. A gente pega fotos da vítima, vai no quarto dela, procura saber quem ela era.
Depois de uns dois meses, vi uma pessoa que me pareceu conhecida. Era um senhor muito velho, com o cabelo todo branco e magro como uma folha de papel. Dava para perceber as costelas por baixo da camiseta. Era o pai da advogada que eu havia encontrado pouco antes. Em dois meses, ele envelheceu a ponto de eu não conseguir reconhecê-lo. Jamais voltará a ser a mesma pessoa. Não tem como esquecer esse tipo de coisa.
Qual a vantagem das ações nos EUA?
O valor das indenizações é maior, e tudo é mais rápido. O sistema é baseado em jurisprudência, em casos semelhantes. Aqui, essa é apenas uma das fontes. Temos um sistema muito rico em provas, é mais vasto. Não quer dizer que seja pior por isso, mas lá as condenações são mais altas e rápidas. Trabalhei com o escritório retratado no filme Erin Brockovich, que me convidou para trabalhar com eles nesse caso. Das 199 vítimas, o escritório representou 77 famílias. Para quem não recorreu à Justiça americana, o Ministério Público montou câmaras de negociação. A pior hipótese era ir à Justiça brasileira. Ninguém queria porque o problema não é entrar, é sair da Justiça. Nos Estados unidos, há a cultura do acordo. Aprendi que não existe o acordo ideal, também tenho de ceder. Aqui, há muita litigação. Além disso, lá também se pode colher depoimentos em audiências em escritórios, não precisa muita formalidade. Isso acelera muito. No Brasil, às vezes leva cinco, seis meses só para marcar uma audiência. Pode economizar um ano só na tomada de depoimentos lá.
Pelo que testemunhou, a indenização traz algum efeito benéfico além da questão financeira?
A indenização, claro, não traz ninguém de volta. Mas quando tu fazes aquele processo e isso acaba de maneira razoável, é uma espécie de fechamento para os familiares. É um livro que tu fechas e colocas na prateleira. Ele vai ficar ali sempre, mas não vai ficar aberto.
Ainda há ações em tramitação?
No acordo de indenização das 77 famílias que entraram na Justiça nos EUA, foi dada quitação à TAM, à Infraero, à Anac (Agência Nacional de Aviação Civil), ou seja, elas foram isentadas de responsabilidade a partir dali. Mas a Airbus (fabricante do avião), não. Então, a Airbus está sendo processada porque também deu causa ao acidente (pela forma como os manetes tinham de ser operados para fazer o aparelho frear). Já foram feitas algumas propostas, mas não houve acordo e segue tramitando na Justiça de São Paulo. Juridicamente, na verdade, o caso ainda não acabou.