15 Junho 2016
Nesta terça-feira, 14 de junho, o Vaticano divulgou um documento sobre a relação entre a hierarquia e os “novos movimentos”, com o que se quer dizer os principais grupos leigos que nasceram em sua maioria no último século e que tiveram o seu crescimento real a partir do Vaticano II. A seguir apresento um apanhado geral com algumas perguntas e respostas básicas sobre estes movimentos e seus status dentro da Igreja.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 14-06-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Na terça-feira, o Vaticano publicou a sua mais recente reflexão sobre aquilo que o cardeal alemão Gerhard Müller surpreendentemente chamou de as “gravidezes não programadas” da Igreja Católica, ou seja, o conjunto crescente de novos movimentos leigos surgidos, em maioria, nos últimos 100 anos e que se fortaleceram a partir do Concílio Vaticano II.
É preciso dizer “a sua mais recente” porque esta dificilmente é a primeira vez que dicastérios e autoridades do Vaticano emitem documentos, concedem entrevistas, dão palestras, organizam encontros, etc., sobre a relação entre a hierarquia e os “novos movimentos”.
O documento intitula-se Iuvenescit Ecclesia, que significa: “A Igreja rejuvenesce”. O texto foi preparado pela Congregação para a Doutrina da Fé, a agência doutrinal poderosa do Vaticano.
Reconhecendo os movimentos como uma “grande fonte de renovação”, o documento afirma que “o coração da Igreja se enche de alegria e gratidão” com eles.
Ao mesmo tempo, o objetivo claro é alertar os movimentos de que se desejam continuar existindo no longo prazo, não podem se colocar como uma espécie de “igreja paralela”, do lado de fora do controle da hierarquia. Ser católico, sustenta o texto, significa em parte aceitar a autoridade dos bispos e do papa, e buscar o seu reconhecimento oficial.
Basicamente, Iuvenescit Ecclesia pede que tanto os bispos como os movimentos cedam um pouco a fim de tornar a relação viável.
A hierarquia, diz ainda o documento, deve evitar “formas jurídicas forçadas que anulem a novidade trazida pela experiência específica”. Os movimentos, por outro lado, precisam evitar “que a realidade carismática seja concebida paralelamente à vida eclesial e sem uma referência ordenada aos dons hierárquicos”.
Em entrevista ao jornal vaticano L’Osservatore Romano antes da publicação do documento, Müller disse que o nascimento dos movimentos em décadas recentes era “frequentemente uma novidade perturbadora, necessitada de purificação”, mas que fundamentalmente eles são um dom.
“Talvez [estes movimentos] tenham sido um pouco como filhos que vieram ao mundo sem terem sido programados”, disse. “Todo aquele que seja verdadeiramente um pai ou uma mãe ama e e cuida deste filho assim que ele chega ao mundo, da mesma forma e, às vezes, até mesmo com mais carinho do que os demais”.
A seguir apresento cinco perguntas e respostas sobre o novo documento, com isso buscando ajudar a compreendermos o novo documento do Vaticano.
O que são os novos movimentos?
Em 1988, o então cardeal Joseph Ratzinger, mais tarde Papa Bento XVI, assim se expressou: “Os movimentos geralmente derivam sua origem a partir de um líder carismático e tomam forma em comunidades concretas inspiradas na vida de seu fundador; tentam viver de maneira renovada o Evangelho em sua totalidade e reconhecem a Igreja sem hesitação como o fundamento de suas vidas”.
Hoje não se pensa muito diferente disso.
Exatamente a mesma coisa poderia ser dita sobre as ordens religiosas, no entanto. O que faz dos novos movimentos “novos” é que eles são, primeiramente, dedicados aos leigos, que permanecem plenamente imersos no mundo secular, mantêm seus empregos e suas famílias, etc., mesmo se acabam também incluindo padres e religiosos em suas famílias estendidas.
Em 2005, o Vaticano divulgou uma listagem que apresentava 122 associações e movimentos leigos que contavam com o reconhecimento pontifício, sem parar de acrescentar outros nos anos subsequentes. Em maio, por exemplo, o Pontifício Conselho para os Leigos reconheceu oficialmente a “Jesus Youth”, movimento nascido em Kerala, Índia, na década de 1970. Como muitos dos novos movimentos, mas de forma alguma valendo para todos eles, o Jesus Youth faz parte do amplo conjunto dos grupos que compõem a renovação carismática.
Listo a seguir alguns dos movimentos mais conhecidos e que contam com um amplo número de seguimentos internacionais:
• Comunhão e Libertação
• Focolares
• Schoenstatt
• Caminho Neocatecumenal
• Comunidade de Sant’Egidio
• Renovação Carismática Católica
• L’Arche (A Arca)
• Regnum Christi
• Cursilho
• Comunidade Emmanuel
Um complicador a muitas pessoas é que, na linguagem católica, às vezes usamos a palavra “movimento” para algo que, na verdade, não o é. O Opus Dei, por exemplo, é normalmente colocado junto com os demais movimentos, mas tecnicamente ele é uma Prelazia Pessoal.
Os Legionários de Cristo também são por vezes colocados nesta categoria, porém eles são uma ordem – a Regnum Christi é o seu movimento leigo filiado.
Por que os movimentos eclesiais são polêmicos?
Antes de tudo, hoje eles não são tão polêmicos como o foram certa vez, por exemplo, quando o jornalista Gordon Urquhart referiu-se a eles em 1995 como “novas seitas misteriosas e poderosas” que constituíam a “armada do papa”.
Durante os anos de São João Paulo II, eram vistos em geral como parte de um suposto esforço para reverter as reformas desencadeadas pelo Concílio Vaticano II (1962-1965). Muitos dos movimentos mais conhecidos eram vistos como política e teologicamente conservadores, com o Opus Dei (de novo, este não é exatamente um movimento), o Caminho Neocatecumenal e o Comunhão e Libertação sendo os exemplos clássicos.
Além disso, têm havido acusações recorrentes de que alguns destes movimentos operam basicamente como “seitas católicas”, enfatizando níveis extremos de obediência e sigilo, fomentando uma devoção inquestionável aos fundadores, pervadindo as consciências de seus membros e assim por diante.
Igualmente há indícios de fanatismo em torno de alguns movimentos, que por vezes projetam uma ideia de que eles são a única esperança para a Igreja. Isso tem chamado a atenção de outros grupos que também vêm buscando dar o seu melhor, especialmente as ordens religiosas cujos membros se veem tentados a perguntar: “Ei, vocês percebem que nós estamos nisso há séculos, não?”
Finalmente, muitos dos movimentos possuem os seus próprios modos idiossincráticos de fazer as coisas, tais como celebrar a missa ou disponibilizar espaços de formação para leigos, e quando eles se instalam numa diocese nem sempre se comportam como se desejaria.
O Caminho Neocatecumenal, nascido na Espanha em 1964 e que tem um zelo especial para o trabalho missionário entre as pessoas das culturas mediterrâneas e falantes do espanhol, tem recebido um foco especial neste quesito: ao longo dos anos, eles foram impedidos de atuar em vários lugares, incluindo o Japão, as Filipinas, o Nepal, bem como numa série de dioceses na Europa e na América do Norte.
Este é um dos motivos que fez com que o movimento obtivesse somente em 2008 a aprovação final de seus estatutos, e ainda hoje algumas de suas práticas em torno da missa continuam causando polêmicas.
No geral, entretanto, grande parte destas críticas deixaram de existir nos anos recentes, na medida em que muitos dos movimentos envelheceram e se “normalizaram”. Em parte, isso aconteceu porque muitos passaram pela morte de seu fundador e acabaram chegando a uma fase mais “institucional” de sua existência.
Por que o Vaticano está publicando um documento sobre a relação dos movimentos com a hierarquia?
Fundamentalmente porque há uma tensão inerente entre os movimentos e os bispos locais, e alguém tem de estabelecer diretrizes de como lidar com ela.
Desde que os movimentos maiores e mais desenvolvidos desfrutam do reconhecimento pontifício, eles contam com um grau de autonomia por parte dos bispos locais, da mesma forma como as ordens religiosas. No entanto, eles também têm de atuar nas dioceses locais, assim como as ordens religiosas. Da mesma forma, o bispo possui um interesse legítimo em saber do que fazem e se certificar de que, em certo sentido, tais movimentos estão servindo aos interesses da Igreja local.
Na melhor das hipóteses, o que a Congregação para a Doutrina da Fé pode fazer é esclarecer o caso teológico e pastoral quanto aos motivos pelos quais cada lado da tensão deveria ter em mente o outro nesta relação. Regras aqui sempre serão conflitantes, pois cada um dos envolvidos tem a sua própria identidade e possui os seus desafios próprios também.
Em outras palavras, Iuvenescit Ecclesia não traz nenhuma regra ou procedimento eclesiástico novo para o reconhecimento oficial. É um texto amplo, que deixa ao leitor a tarefa de completar com os detalhes.
Consequentemente, quem espera que Iuvenescit Ecclesia venha a resolver todos os problemas em torno desta relação irá provavelmente se decepcionar. Afinal de contas, a Igreja Católica teve séculos para pensar a relação entre os bispos locais e as ordens religiosas, e mesmo aqui há muita coisa ainda a ser melhorada.
Quanto aos movimentos, o que eles ganham com uma relação sadia de trabalho com a hierarquia é o acesso a dioceses, o apoio institucional e a existência a longo prazo. Quanto aos bispos, o que eles ganham, além do sangue renovado de leigos missionários e um modo quase certo de aumentar a presença de fiéis nas missas, é um grau acima no controle de qualidade e uma maneira de lidar com os problemas quando eles surgirem.
Uma história recente ocorrida no Peru ilustra por que isso importa para ambos os lados. Conforme publicado no sítio Crux por Austen Ivereigh, um movimento católico neste país chamado Sodalitium Christianae Vitae foi abalado por escândalos de abuso sexual envolvendo o seu fundador, Luis Fernando Figari.
Ivereigh informou que um tribunal eclesiástico local tentou, durante quatro anos, fazer com que o Vaticano agisse a respeito de tais alegações antes que alguma coisa acontecesse. Se tivesse havido uma maior cooperação, possivelmente os problemas havidos teriam sido reconhecidos e resolvidos antecipadamente.
Esta história deveria ser também um lembrete aos bispos que contam com estes novos movimentos em suas jurisdições, no sentido de prestarem mais atenção a fim de tentar evitar escândalos antes de que eles ocorram.
O Papa Francisco apoia os movimentos?
Este é um tema disputado, com alguns analistas assumindo que Francisco não gosta deles, seja por motivos políticos (dada a reputação de alguns movimentos em serem justamente conservadores), seja simplesmente como uma herança por ser ele mesmo membro de uma ordem religiosa (a Companhia de Jesus).
Por outro lado, muitos têm notado que, antes de sua eleição ao papado, o então cardeal Jorge Mario Bergoglio tinha relações muito boas com vários dos movimentos atuantes na Argentina.
Uma das últimas pessoas a que ele telefonou antes de deixar Buenos Aires para o conclave de 2013 foi o líder local do Caminho Neocatecumenal para dar a sua bênção a um projeto; em várias ocasiões ele apresentou livros escritos por Don Luigi Giussani, fundador do b; celebrou liturgias em comunidades do Sant’Egidio; rezou o terço com os Schoenstatt; e participou em encontros de oração organizados por vários grupos carismáticos.
A minha teoria é que cada um dos últimos três papas quis ser igualmente benevolente a todos os movimentos, mas que eles tinham também, quando olhamos mais de perto, claramente o seu movimento favorito.
Para João Paulo II, foi o Opus Dei (pela terceira vez, eu sei, tecnicamente este não é um movimento). Um papa nascido em uma país ocupado pelos comunistas, para quem uma reflexão sobre a análise marxista do trabalho era uma constante, só poderia admirar a ênfase do Opus Dei no trabalho comum como sendo um caminho à santidade. Provavelmente João Paulo II também via nessa organização algumas das qualidades que admirava no movimento Solidariedade, da Polônia: o mesmo espírito de unidade, o mesmo comprometimento dos seus membros.
João Paulo deu ao Opus Dei um importante presente: em 1982, transformou-o numa Prelazia Pessoal; em 1992, beatificou o seu fundador, Josemaría Escrivá; e, em 2002, canonizou-o.
Para Bento XVI, foi o Comunhão e Libertação. As mulheres que trabalhavam em sua residência pessoal eram membros do Memores Domini, grupo consagrado de leigas filiado ao movimento; ele mesmo foi um profundo admirador das obras de Giussani, o fundador. Um dos últimos atos de Ratzinger como cardeal antes de se tornar papa foi voluntariamente presidir a missa fúnebre de Giussani.
Para Francisco, é o movimento Sant’Egidio, nascido em 1968 para server os pobres que vivem nas periferias de Roma e que acabou se tornando um movimento líder no diálogo ecumênico e inter-religioso, na resolução de conflitos, em iniciativas anti-Aids e em muitas outras frentes. Este é exatamente o tipo de catolicismo socialmente engajado, dialógico de que Francisco gosta.
Em uma de suas primeiras audiências, Francisco enxergou uma bandeira desse movimento na Praça de São Pedro e, espontaneamente, exclamou: “Eles são ótimos, estas pessoas da Sant’Egidio”.
Em sua entrevista ao L’Osservatore Romano, Müller rejeitou com firmeza a ideia de que Francisco seria hostil com os movimentos.
“Acredito que Francisco está profundamente unido com João Paulo II e Bento XVI no desejo de dar valor a todas as novidades que o Espírito Santo está suscitando na Igreja”, disse.
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Perguntas e respostas sobre as “gravidezes não programadas” da Igreja Católica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU