25 Mai 2016
Vinte anos se passaram desde o sequestro e assassinato dos monges de Tibhirine, cuja versão "oficial" remonta a 21 de maio de 1996. Vinte anos em que a herança espiritual dos sete monges trapistas inspira pessoas dentro e fora da Igreja. Isso graças ao filme "Homens de Deus", que os tornou conhecidos do público em geral, mas também e acima de tudo, graças aos escritos de alguns deles, particularmente do prior Christian de Chergé, com milhares de páginas. Os escritos mais significativos foram publicados no livro Più forte dell’odio (Qiqajon).
O texto é publicado por Mondo e Missione e repdroduzido por Christian Albini no blog Sperare per Tutti, 21-05-2016. A tradução é de Ramiro Mincato.
Monges de Tibhirine.
Foto: Mondo e Missione
Exatamente nestes dias, veio ao público um novo volume, em italiano – L’Altro, l’Atteso: le omelie del martire di Tibhirine (Ed San Paolo) - que recolhe os textos de Christian, apresentando-os em ordem cronológica, mostrando o aprofundamento da vida e da espiritualidade que o acompanharam, em contato diário com os irmãos, ao longo do caminho que iria levá-los ao martírio.
A seguir, uma das passagens dos textos de Christian de Chergé.
Eis a reflexão.
Pedro, tu me amas?
Pedro, tu me amas? Gostaria de ficar sobre esta questão, e concentrar-me em duas coisas. Pedro não cai naquilo que parece ser uma armadilha: o “mais do que estes” da pergunta de Jesus. Não responde. É uma armadilha que ainda esconde, aos seus olhos, uma realidade própria do reino: isto é, que há mais alegria para o pecador, para o ladrão que se arrepende, há mais amor no coração do pecadora perdoada. Também o pastor escolhido por Jesus, era antes uma ovelha perdida, que ele trouxe para terra firme.
Pedro tem dificuldade em responder. Ele diz: Eu te quero bem. Usa uma outra palavra, como se a uma pergunta do noivo, a namorada respondesse: "Você é um amigo, você é meu melhor amigo". Não se faz uma aliança destas com um amigo. Jesus é o noivo, apresenta-se desta forma. Mas quem poderá fazer uma aliança com ele? É por isso que Jesus faz a pergunta. Como se poderá responder, em verdade? Que tipo de amor me é pedido?
O amor? Procuremos no Evangelho. No dia 21 de março, o cardeal Duval proclamava: "Da primeira à última página, o evangelho está cheio de amor". Convicção, evidência. Afinal de contas, estamos hoje aqui, na última página deste evangelho.
Alguns dias atrás, amigos muçulmanos me disseram: "Da primeira à última letra, o Alcorão está cheio de amor". Que surpresa! Mas, naturalmente, veio a suspeita. Abri o Alcorão. Claro, encontrei muitas vezes que Deus ama os homens e também que o homem ama Deus. O substantivo mahabba (amor) é usado uma só vez, a propósito de Moisés. "Eu derramei sobre ti um amor que vem de mim, para que sejas levantado diante dos meus olhos" (Alcorão, Sura 20,39).
Em seguida, consultei a concordância dos Evangelhos e ... que surpresa! O substantivo agape se encontra 117 vezes no Novo Testamento, mas nos Evangelhos apenas 10 vezes, 8 delas em João.
Nos sinópticos nunca é dito que Jesus ama os homens com o mesmo verbo usado aqui por Jesus. O único amado por Deus é Jesus. Vamos em frente: também em João, nunca se diz que o homem ama Deus (exceto pelo Jesus humano). Só Jesus reza para que seu próprio amor seja concedido aos homens: Pedro, eu roguei por ti. Permanece no meu amor.
Jesus lembrou-lhes o mandamento recebido por Moisés, que ele mesmo o encarnou, e transfigurou: que vos ameis uns aos outros como eu vos amei, ou seja, com o mesmo amor com que vos amei. Compreende-se, agora, por que Pedro teve o mesmo reflexo que eu: um amor assim, não sei nem mesmo decifrá-lo em mim, não o possuo internamente como se fosse uma coisa natural!
A Regra de São Bento nos ajuda com um grande esclarecimento: explica por que as coisas são assim, graças a um vocabulário mais preciso que o nosso. Onde nós falamos apenas de amor, nela se usam três substantivos diferentes:
- amor: amor por Deus e por Cristo, ao qual não devemos preferir nada;
- caritas: amor fraterno, mútuo, que devemos a todos;
- dilectio: o amor que faz unidade entre Deus e o homem, o amor com que Deus nos ama, porque
Deus ama a quem dá com alegria. O amor que nos faz amar até mesmo nossos inimigos, e sem o qual não nos podemos unir aos irmãos. Um amor impossível ao homem.
Na Vulgata: Simon Joannis, diligis me? Tu me amas, com amor de predileção? Faz aliança comigo? (dilectio). Tu scis quia amo te! Tu sabes que eu te quero bem (amor). E Jesus: que este teu amor unido à caritas faça de ti, pela graça, um pastor diligente. E ao monge: que teu amor preferencial por Deus, unido à caritas pelos irmãos, te faça correr no caminho dos mandamentos, na doçura indizível da dilectio (um monge diligente). Esta dileção inefável é dom do Espírito Santo, tanto em Pedro, como em mim. Sem o Espírito Santo, não posso responder à pergunta: Tu me amas? E a resposta é ainda o Espírito que me introduz na missão de Cristo: porque eu vos amo, também o Pai vos amará ... Aquele que me ama será amado por meu Pai, e eu também o amarei.
Quando lhe fiz a pergunta, o amigo muçulmano me disse: "No Alcorão, a palavra amor aparece poucas vezes. É rara, como os diamantes. No entanto, se fala somente disso. Os diamantes estão escondidos. Devemos procurá-los. É uma história de amor, mas está escondida. Uma vez encontrado, o diamante transfigura tudo o que está ao redor".
A mesma chave de leitura se aplica à interpretação do Evangelho. E também para cada homem, para mim: "da primeira à última hora da minha vida, não sou que o amor": eis a lição de Jesus. Fui concebido no amor. E no amor fui gerado na Igreja. E um dia nascerei no amor, que é o próprio Deus. Christian, tu me amas?
Eu sei, a pergunta me persegue ao longo de todas as renegações. Mas eu posso dizer que sim, mas em voz baixa, como um sopro, um sopro que não é meu.
Sim, porque a pergunta traz à luz um primeiro diamante escondido, aquele da misericórdia. O anel colocado no dedo do filho pródigo.
Sim, porque a resposta nunca será só minha: Tu sabes tudo ..., tem este diamante escondido, cujo brilho é o amor do próprio Deus.
Sim, porque é uma resposta feita para ser realizada na missão, missão em que, dia após dia, revelar-se-á como aliança do coração de Deus com o coração humano: "Seja diligente". Cada um dos cordeiros tem um eco da pergunta e um reflexo da resposta.
Sim, porque a resposta final está adiante de mim: um outro te cingirá, e te levará até o fim (cf. Jo
21). O diamante bruto será lapidado, pelo amor maior, o da vida doada. Amém.
(Christian de Chergé, 20 de abril de 1980, Terceiro Domingo de Páscoa)
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Como um diamante bruto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU