Por: Cesar Sanson | 26 Abril 2016
O documento “Uma ponte para o futuro”, divulgado pela Fundação Ulysses Guimarães, do PMDB, no dia 29 de outubro de 2015, e que serviria de base para um suposto governo de Michel Temer, é oportunista, do ponto de vista político, e ineficaz do ponto de vista econômico, pois não toca nos principais problemas vividos pela economia brasileira, limitando-se fundamentalmente à questão fiscal. A avaliação é do economista Fernando Ferrari Filho, professor titular do Departamento de Economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que analisou o documento e não identificou nele uma agenda capaz de enfrentar os problemas vividos pelo país.
Ferrari diz que a “Ponte para o futuro” é um samba de uma nota só que rompe com a tradição desenvolvimentista do PMDB e abraça a lógica do Estado mínimo defendida pelo PSDB. “O diagnóstico que faz sobre o principal problema da economia brasileira é equivocado. O desequilíbrio fiscal é um problema, mas não é o principal problema. E as proposições apresentadas para solucionar esse problema fiscal não são as mais interessantes”, assinala o economista.
A entrevista é de Marco Weissheimer, publicada por Sul21, 25-04-2016.
Eis a entrevista.
No final do ano passado, você realizou um estudo sobre as propostas contidas no documento “Uma ponte para o futuro”, apresentado pelo PMDB como uma solução para os problemas do Brasil. Quais foram as principais conclusões desse estudo?
Em primeiro lugar, eu fiz uma crítica ao documento sob a ótica política. Esse documento apresenta uma visão do PMDB crítica às políticas econômicas do governo Dilma como se o partido não fosse parte, até então, desse governo. O PMDB foi um dos partidos protagonistas da aliança que governou o país entre 2011 e 2014 e também ao longo de 2015. Esse foi o sentido inicial da minha crítica, ou seja, o PMDB apresenta um documento como se ele não fosse parte dos problemas econômicos que o país vive ao longo dos últimos anos.
Em segundo lugar, se esperava que o documento do PMDB honrasse a tradição peemedebista, a tradição de Ulysses Guimarães ligada a um projeto nacional desenvolvimentista para a economia brasileira. Esse documento não faz isso e se atem especificamente a dois pontos: faz uma crítica ferina à questão do Estado, defendendo que o principal problema da economia brasileira hoje é a crise fiscal; e apresenta um conjunto de proposições para reformas microinstitucionais para tentar fazer com que, como se diz no jargão do economês, a produtividade total dos fatores seja mais eficiente e enxuta para fazer com que a dinâmica econômica sob a ótica do mercado prospere.
Grosso modo, essas reformas consistem em reduzir o tamanho do Estado na economia – o que envolve programas sociais e a vinculação de rubricas constitucionais para programas de saúde, educação, segurança e assim por diante -, reforma previdenciária e reforma trabalhista. Todas estas são reformas que fazem com que o custo da mão de obra e o peso do Estado sejam reduzidos na economia. A outra questão econômica que o documento do PMDB defende é que o desenvolvimento econômico passa, fundamentalmente, pela iniciativa privada, o que é uma coisa sem sentido. A crise financeira internacional a partir de 2007-2008 mostrou que é preciso ter uma interface entre Estado e mercado para fazer com que as coisas andem. O documento vai na contramão do que vem ocorrendo desde 2009.
Em resumo, essas são as minhas principais críticas. Esse documento cai de paraquedas como se o PMDB não fosse até então parte integrante do presidencialismo de coalizão de Dilma Rousseff. Além disso, vai de encontro à tradição do PMDB comprometida com um projeto nacional desenvolvimentista para o país e o diagnóstico que faz sobre o principal problema da economia brasileira é equivocado. O desequilíbrio fiscal é um problema, mas não é o principal problema. E as proposições apresentadas para solucionar esse problema fiscal não são as mais interessantes.
Quais seriam, na sua avaliação, os principais problemas da economia brasileira hoje?
Como eu disse, o desequilíbrio fiscal está entre esses problemas, mas não é o único. É preciso qualificar melhor esse argumento. Esse desequilíbrio é, predominantemente, decorrente do déficit financeiro e não do déficit decorrente do desequilíbrio entre receita e despesa da máquina pública e dos programas sociais. Esses programas não são os causadores do desequilíbrio. O que causa desequilíbrio no setor público, fundamentalmente, é o custo financeiro da dívida pública. Aí temos uma combinação de fatores, entre eles, juros elevados e uma desvalorização cambial acentuadas nos últimos anos, o que acabou impactando pesadamente a dívida pública.
No ano passado, o déficit financeiro do setor público foi de 8,2% do PIB. Em 2014, esse déficit foi de 6,1% do PIB. Ou seja, só ano passado, ele cresceu 2,1% em relação ao PIB. Então, existem problemas fiscais decorrentes fundamentalmente do desequilíbrio financeiro, mas temos também problemas de desindustrialização, uma inflação que há muito tempo vem resistindo em cair e se mantém acima da meta que é 4,5% e uma baixa relação entre investimento e PIB, que está na casa dos 19%. Existe um consenso que, para uma economia ter uma dinâmica de crescimento estável e sustentável (com taxas de crescimento entre 3 e 4%) , é preciso que a relação investimento-PIB seja de 25%. Além disso, temos desequilíbrios na balança de pagamentos. A economia brasileira depende muito de ingresso de capital para equilibrar suas contas. E, apesar da melhora na distribuição de renda nos últimos anos, em função da recuperação do poder de compra do salário mínimo e de programas sociais, ainda temos uma concentração de renda muito significativa na economia brasileira.
Esses são os principais problemas da economia brasileira. Acredito que com uma estratégia para, ao menos, mitigá-los, é possível pensar um processo de crescimento sustentável com desenvolvimento. O documento do PMDB não apresenta propostas para enfrentar esses problemas. Ele só se preocupa com a questão fiscal. É o que chamei de samba de uma nota só. As proposições que ele apresenta para resolver a crise do Estado passam por reformas microinstitucionais que, por si só, não dão conta do recado.
Após a crise de 2007-2008, a economia brasileira, em um primeiro momento, reagiu relativamente bem, comparando o que aconteceu em outros países. A partir da segunda metade do primeiro governo Dilma, os problemas começaram a aparecer de forma mais significativa. Em que momento exatamente, a situação da economia começou a piorar? Houve uma espécie de ponto de inflexão?
Eu sou um pouco crítico em relação à essa ideia de que a economia brasileira após 2007-2008 foi menos impactada pela crise do sub-prime. Não foi uma marolinha. Quando deu o estouro, em setembro de 2008, a economia brasileira vinha crescendo anualmente em torno de 5,5%-6%. Quando a crise atingiu a nossa economia, a partir de setembro daquele ano, ela começou a apresentar sintomas de desaquecimento. Isso foi observado em 2009, quando tivemos um crescimento negativo de 0,2%. No ano anterior, o crescimento tinha ficado próximo de 6%. Então, a queda foi muito significativa. Não foi uma marolinha. O que aconteceu é que a reação em 2010 foi muito positiva. Saímos de 0,2% negativo para 7,6% em função de políticas contra-cíclicas nas áreas fiscal e monetária, reformas estruturais, uma política industrial setorial, expansão do crédito, redução da taxa de juros e ampliação de gastos públicos. Isso tudo fez a economia se recuperar vertiginosamente em 2010.
Em 2011, a economia continuou sinalizando algo nesta direção. O que aconteceu a partir daí foi que o ministro Mantega, não sei exatamente por quais motivos, insistiu em uma política de tentar acelerar a dinâmica econômica via comportamento de consumo. O problema é que o comportamento de consumo é efêmero, ou seja, ele não se sustenta no médio e no longo prazo. As pessoas não trocam de carro todo ano, não compram geladeira ou televisores todo ano. Assim, você querer dinamizar uma economia fundamentalmente pela ótica do consumo só tem sentido se houver, primeiro, mais pessoas ingressando neste mercado e, segundo, se houver ao mesmo tempo expansão do investimento. Nós não tivemos nenhuma dessas duas coisas no período em questão. No entanto, o governo continuou insistindo numa política de crédito fácil, de redução de taxa de juros, de expansão de gastos públicos. Essa escolha acabou gerando problemas importantes.
Um segundo erro foi o excesso de volatilidade na política econômica. Ora o governo intervinha no mercado de câmbio, ora deixava esse mercado ser regulado pela demanda e pela oferta. Ora reduzia a taxa de juros (em 2012 caiu para 7,25 ou 7,5%), ora elevava a taxa de juros (no final de 2014 chegou a 11,75%). Em dois anos, a taxa de juros saiu de 7,5% e foi para 11,75%. Com a política fiscal ocorreu a mesma coisa. Ora o governo fazia uma restrição fiscal, ora fazia uma expansão fiscal. Volatilidade de política econômica é muito ruim porque cria uma incerteza muito grande. Um empreendedor, quando vai tomar decisões sobre um investimento, precisa ter um mínimo de sinalização de futuro para que ele não dê com os burros n’água. Se ele sabe que a política monetária tem um sobe-e-desce, que a política cambial tem uma valorização e uma desvalorização e, assim por diante, ele trava a produção.
Eu diria então que, em grande parte, as coisas começaram a dar errado por causa da sinalização de política econômica equivocada, pela insistência em uma dinâmica de recuperação da economia via consumo que deu certo em 2010, mas que já não se sustentou no primeiro governo Dilma, e pela emergência de um cenário internacional desfavorável. A crise da zona do euro, protagonizada pela crise da dívida grega, foi um fator que contribuiu também para que tivéssemos problemas de crescimento, na medida em que restringe a capacidade da economia brasileira ter acesso ao mercado internacional. Esse conjunto de fatores acabou gerando problemas ao longo do primeiro governo Dilma. Esses problemas se materializam, na minha opinião, quando se deu a transição de uma heterodoxia para uma ortodoxia no início do segundo governo.
Com a nomeação de Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda…
Sim. Na minha opinião, o colapso do governo Dilma e a sua perda de credibilidade e de apoio político começam quando ela escolhe Levy. Eu lembro que, na ocasião, comentei que, no momento em que ela tivesse que tirar o Levy da Fazenda, ou ele decidisse sair, o governo estaria morto. Ela escolheu esse nome para garantir credibilidade junto ao mercado. No momento em que ele saísse, voluntária ou compulsoriamente, o mercado puxaria o tapete dela, que foi o que aconteceu.
Este um ano de Joaquim Levy na Fazenda conseguiu melhorar, de algum modo, a situação fiscal do país?
Não. Até piorou. Nós fechamos 2014 com uma inflação de 6,41%, próxima ao teto da meta que era 6,5%, e com um desequilíbrio fiscal significativo. Em 2015, as coisas pioraram bastante. Bem ou mal, o PIB cresceu 0,14% em 2014 e a taxa de desemprego foi relativamente baixa, ficando em 4,8%. Em 2015, o PIB tem um crescimento negativo de 3,8%, a taxa de desemprego sobe para 6,8%, o déficit público passa de 6,7% para 9,1% e a inflação sai de 6,41% para 10,67%. Esses números indicam que a relação custo-benefício de ter colocado Levy na Fazenda foi muito ruim.
Foi um tiro no pé. Dilma colocou o Levy para resgatar a credibilidade da política econômica junto ao mercado, evitar a perda do grau de investimento e evitar que o pior acontecesse. No entanto, todo o pior acabou acontecendo. O rombo fiscal estourou, a inflação não só ultrapassou o teto da meta como chegou a dois dígitos – o que tem um efeito psicológico muito ruim -, o desemprego cresceu dois pontos percentuais na média e o país perdeu o grau de investimento. O Brasil deixou de ser um país confiável para investimentos no mercado internacional e passou a ter um grau de risco especulativo.
A opção política pelo Levy foi completamente equivocada. Vou citar um nome, de quem sou próximo, que poderia ter sido uma melhor alternativa: Bresser Pereira. Ele sempre advogou um ajuste fiscal, mas com mais flexibilidade e que tenha trânsito com a heterodoxia econômica. Não digo ele especificamente, mas alguém com esse perfil. A opção pelo Levy foi um erro e a Dilma pagou por isso. Para mim, uma das gotas d’água de todo esse processo político e econômico deletério foi essa escolha errada.
Considerando a possibilidade de um hipotético governo Temer e uma consequente tentativa de implantar as propostas apontadas do documento do PMDB, no atual clima de instabilidade e polarização que vive o país, você vê chances disso dar certo economicamente?
Não, por dois fatores. Em primeiro lugar por que, como já disse, está agenda está centrada em apenas parte do problema. Ela foca toda discussão na crise fiscal e na crise do Estado. Há vários problemas que ela não considera. Em segundo lugar, o foco na questão fiscal que o documento propõe envolve reformas institucionais como a previdenciária e a trabalhista. Para isso, será preciso ter negociação com o Congresso. Por mais que a oposição tenha votos para aprovar o impedimento da presidente, disso não se segue que tenha votos para aprovar uma reforma previdenciária, uma reforma trabalhista ou uma reforma tributária que afete o bolso de setores da população.
Ainda mais por que são propostas que envolvem a perda de direitos…
Claro. Perda de direitos que fazem os políticos que estão preocupados com as eleições de outubro próximo pensar bem antes de votar. Ou seja, esse suposto governo teria um curto espaço de tempo para tentar implementar reformas que precisam ser arduamente discutidas no Congresso. Eu não acredito que uma agenda como a da Ponte para o Futuro vá vigorar no curto prazo. O PMDB pode até tentar implementá-la no médio e no longo prazo, com um governo de quatro anos e após um processo eleitoral.
O que pode mitigar a instabilidade econômica numa breve gestão de Temer é que o mercado está muito ansioso por uma sinalização que considere positiva e esse governo de seis meses ou dois anos pode fazer essa sinalização de uma expectativa econômica mais favorável ao mercado. Isso pode fazer com que baixe um pouco a poeira entre as elites econômicas e empresariais do país. Mas ele não conseguirá apresentar soluções concretas para dar um rumo de crescimento e de desenvolvimento econômico sustentável porque não toca nos principais problemas e a agenda da Ponte para o Futuro exige uma ampla negociação com o Congresso Nacional, o que não é possível num curto espaço de tempo.
De um ponto de vista mais conceitual e ideológico, há alguma diferença importante entre essa proposta do PMDB e o programa clássico do PSDB, que defende a redução do tamanho do Estado e de sua presença na economia?
É mais ou menos a mesma coisa. O documento defende coisas como um “orçamento fiscal verdadeiro”. O que é um orçamento fiscal verdadeiro? Isso não passa de uma peça de retórica. Fala em um “desenvolvimento capitaneado pela iniciativa privada” e defende desvinculação e desindexação da receita relacionada a gastos com direitos fundamentais. Resumindo, a essência do documento é fazer com que o Estado seja menos intervencionista. Prega um Estado enxuto, um Estado mínimo que seja o menos intervencionista e o mais eficiente possível. Essa proposta pode estar no PMDB, pode estar no PSDB, no PP, no PPS e, de certa forma, esteve em 2015 no governo Dilma, quando ela colocou o Joaquim Levy na Fazenda.
Eu, ainda mais por ser um keynesiano, não acredito nesta ideia de Estado mínimo. Defendo que é preciso ter um Estado forte no sentido de exercer a sua função de estabilizador da dinâmica econômica. Ele tem que criar condições para que os ciclos econômicos que são inerentes à dinâmica capitalista sejam menos desestabilizadores e criem menos traumas possíveis. Independente de ser máximo ou mínimo, o Estado precisa exercer essa função. Há uma simbiose entre Estado e mercado. O mercado é eficiente sob a ótica locativa e o Estado é eficiente sob a ótica da estabilização dos ciclos econômicos. Se prescindirmos do Estado neste processo, a economia não anda. Por outro lado, se negligenciarmos a relevância do mercado, a economia também não anda.
O programa que o governo Sartori está implantando no Rio Grande do Sul poderia ser considerado como uma antecipação das propostas do documento Ponte para o Futuro?
Eu não entendo muito da dinâmica econômica do Rio Grande do Sul, mas para a tua pergunta não ficar sem resposta eu diria que em nível estadual os problemas são maiores. Estados nacionais têm capacidade de operacionalizar política econômica. Já Estados sub-regionais como Rio de Janeiro ou Rio Grande do Sul não tem essa capacidade. Eles não fazem política monetária e não fazem política cambial. Mal e parcamente utilizam a alíquota o ICMS para fazer uma política tributária. O grau de liberdade desses estados é muito restrito. Estados que têm um problema de pagamento de dívida como o Rio Grande do Sul ficam muito engessados. A dívida compromete uma parte muito importante da receita estadual. No curto prazo, não há muito o que fazer, independente de quem estiver no governo. E é preciso torcer para que a economia, em nível global, saia da recessão. Com um quadro de recessão, é natural que as receitas caiam significativamente. Há menos receita de exportação, menos receita de ICMS e assim por diante.
E quais são as perspectivas da economia global superar o quadro de recessão que marcou os últimos anos?
A economia mundial não se encontra em recessão hoje, mas sim em um ritmo de crescimento muito abaixo do que vinha ocorrendo antes da crise financeira internacional. E esse é um ritmo que veio para ficar. A economia mundial vem crescendo e deverá seguir crescendo nos próximos anos ao redor de 3%. Antes da crise, ela crescia entre 5,5% e 6%, ou seja, praticamente o dobro. Então, houve uma queda importante da dinâmica econômica em nível global, não só em termos de crescimento, mas também em volume de comércio, que caiu muito, em grande parte, em função da China. A China, que era a locomotiva da economia mundial, crescendo entre 11 e 11,5%, agora cresce entre 6 e 6,5%. Outro aspecto desfavorável desse cenário internacional é a queda do preço das commodities, que afeta diretamente a economia brasileira.
Esse cenário não deve sofrer grandes mudanças nos próximos anos, o que cria uma dificuldade adicional para a economia brasileira. O resultado comercial brasileiro este ano melhorou, em relação ao ano passado, em grande parte pela queda significativa das importações. Este ano deveremos gerar um superávit comercial melhor, na casa dos 45 bilhões de dólares, não porque as exportações deslancharam, mas porque as importações caíram e continuam caindo abruptamente. Concluindo, o cenário internacional não é de bonança, mas sim de complexidade.
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PMDB faz diagnóstico equivocado sobre problemas do país, diz economista - Instituto Humanitas Unisinos - IHU