Por: Cesar Sanson | 26 Abril 2016
"No jornalismo aprendemos na lida diária que falar de índio não vende jornal. Nem tragédias envolvendo essas comunidades são reportagens bem lidas por aqui. E isso não é um chute, é constatação durante 3 anos administrando uma redação e observando esse tipo de estatística, gerada minuto a minuto no jornalismo on-line". O comentário é de Ângela Kempfer, jornalista, em artigo publicado por Campo Grande New, 19-04-2016.
Segundo ela, "basta usar um título com a palavra índio ou indígena para seu material na internet ser um dos menos lidos no ranking de notícias do Google. 'Índio de 2 anos morre atropelado na BR-163', manchete com um décimo das leituras de 'Criança morre atropelada na BR-163'. Foram os leitores que deram a prova cabal: 'índio não é gente'".
Eis o artigo.
Há muito tempo penso no que faz alguém odiar um povo inteiro e sair por aí reproduzindo discursos preconceituosos em um estado com uma das maiores populações indígenas do País. Se todo mundo na Europa gosta, porque aqui não?
Digo isso porque no jornalismo aprendemos na lida diária que falar de índio não vende jornal. Nem tragédias envolvendo essas comunidades são reportagens bem lidas por aqui.
E isso não é um chute, é constatação durante 3 anos administrando uma redação e observando esse tipo de estatística, gerada minuto a minuto no jornalismo on-line.
Basta usar um título com a palavra índio ou indígena para seu material na internet ser um dos menos lidos no ranking de notícias do Google. “Índio de 2 anos morre atropelado na BR-163”, manchete com um décimo das leituras de “Criança morre atropelada na BR-163”. Foram os leitores que deram a prova cabal: “índio não é gente”.
A sorte no meu caso é que também aprendi a não acreditar cegamente no que dizem as estatísticas e sempre trabalhei em veículos que respeitam o que é noticia, não apenas o que é mais lido.
Como adolescente em Dourados, também passei bons anos ouvindo os “bugres” na porta de casa pedindo “pão velho”. Não, não é só poesia de Emanuel Marinho, é verdade. Eles pedem realmente pão velho.
Mesmo com a pouca idade, aquela frase para mim parecia algo sem lógica. Mas depois entendi que os homens e mulheres que apareciam no portão não se arriscavam a pedir coisa melhor porque nunca conseguiram de graça nada além de pão velho, então, se habituaram a tentar o que ninguém mais queria.
Mas foi roubando manga em dia de visita de escola à reserva indígena que levei o troco. Sem graça, catando ligeiro o que uma colega jogava lá de cima da mangueira, de repente vi uma menina guarani ao lado oferecendo uma sacola maior.
Saí de lá com “manga coquinho” suficiente para a turma inteira e me sentindo uma idiota por achar que alguém ali iria negar uma manga, talvez porque na minha casa todo mundo chamaria de ladrão uma pessoa que entrasse e pegasse algo sem pedir.
Cada um tem os seus motivos para defender uma bandeira, eu sempre descobri os meus dentro de uma aldeia. Uma dessas vezes foi em uma oca de mais de 10 metros de altura, em outra comunidade de Dourados.
Sob aquela arquitetura perfeita, uma família guarani sem dentes exibia o feito do dia com um largo sorriso: encontrar 8 frangos podres a beira de uma estrada.
O primeiro e principal motivo da admiração naquele dia foi pela capacidade desse povo ainda conseguir ensinar, apesar de ter tão pouco daquilo que as pessoas costumam prezar: o desnecessário.
Também já vi pai desesperado tentando diminuir a dor de dente de um filho aos berros em aldeia de Tacuru, retirando o que podia da cárie com palito de dentes. Assim como vi uma senhora tirando farpas dos pés marido como se fosse um ato de amor. [Conheço] a arquitetura desses povos e sei das contribuições que nunca foram tão atuais, como a sustentabilidade.
Já conheci índio bandido, índio cantor, índio risonho, índio vereador, índio professor, índio assassino, índio assassinado, índio pobre…até porque índio é gente e gente é assim, de tudo um pouco.
Nunca vi índio rico, da forma como a gente sonha em ser. Não aqui em Mato Grosso do Sul.
Na verdade, nunca nem sequer conheci um índio nas aldeias que quisesse ser rico. Tive a sorte de conviver com pessoas que têm a felicidade em um pedaço de terra, como uma senhora terena na Aldeia Limão Verde, em Aquidauana, que cega contava não ter mais nenhuma importância o enxergar, porque já tinha visto de tudo mesmo e agora só queria aproveitar a paz do olhar para “pensar melhor”.
Nunca entendi como alguém sem ter pisado em uma aldeia ou participado de uma Aty Guassu (grande assembleia guarani) pode saber tudo sobre “índios fedorentos”, “oportunistas”, “manipulados” e “vagabundos”.
Nós últimos anos também foi difícil compreender tantos outros episódios. Nunca aceitei como a morte de 2 crianças indígenas gêmeas em Campo Grande, no mesmo dia, na mesma hora, em um terminal de ônibus, em 2010, não foi fato suficiente para provocar uma investigação.
Por anos guardei na gaveta um fax com as portarias da Funai que criaram em 2008 grupos de estudo para demarcação de terras na região sul do Estado, até as palavras sumirem do papel. Fico pensando na indignação de quem vê isso há gerações. Se a maioria não quer ler nada sobre os índios, imagine quantos querem ouvir.
Tudo isso parece tão piegas quando eu mesmo releio os parágrafos anteriores… mas é só uma verdade, a que eu conheço e que senti vontade de dividir, como a menina guarani, dona do pé de manga.
Veja também:
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Ninguém lê reportagem sobre índio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU