Por: André | 15 Abril 2016
O economista Frédéric Lordon – que acaba de publicar La Chapuza. Moneda europeia y soberanía democrática (El Viejo Topo) – acredita que o movimento Nuit Debout não é reivindicativo. “Se o governo acabar, nós permaneceremos, porque aquilo que desejamos vai muito além”, garante.
A entrevista é de José Bautista e publicada por La Marea, 06-04-2016. A tradução é de André Langer.
Já tinha passado da meia-noite do dia 31 de março e Frédéric Lordon continuava ali debatendo com um grande grupo de cidadãos que decidiu acampar na Praça da República, no centro de Paris. Naquele dia, após a manifestação em Paris contra a reforma trabalhista de Hollande e o concerto-projeção que a seguiu, Lordon fez um discurso que passará à história como o ponto de partida da Noite em pé (Nuit Debout), o movimento de indignados da França que acaba de ser criado.
“Hoje mudamos as regras do jogo. Nós jogávamos o jogo deles. A partir de agora, jogamos o nosso jogo”, exclamou Lordon perante os participantes. Três dias depois, no domingo 34 de março [03 de abril], Lordon tomou novamente a palavra na assembleia cidadã que se realizava pelo terceiro dia consecutivo na République. “Escrevamos a constituição da República Social”, pediu aos cerca de dois mil indignados que naquela tarde se reuniram na praça da liberdade, igualdade e fraternidade da capital francesa.
Lordon, o economista e sociólogo que dirige as investigações do prestigioso Centro Nacional para a Investigação Científica (CNRS) da França, diz estar cansado da tentativa de quererem endossar nele a etiqueta de líder. No entanto, suas ideias alternativas e seu olhar crítico convertem-no em um dos intelectuais mais admirados entre os milhares de franceses que desde o dia 31 de março passado se reúnem em assembleia – e em alguns casos acampam – em Paris, Lyon, Tolouse, Rennes e outras cidades galas inspirando-se no 15-M da Espanha.
Seis dias depois da criação da Nuit Debout, Frédéric Lordon concede à La Marea sua primeira entrevista. Responde às perguntas por correio eletrônico.
Eis a entrevista.
Há poucos dias você disse que “é possível que estejamos fazendo alguma coisa”. O que, exatamente, queria dizer? Onde estamos neste momento?
Exatamente, eu disse exatamente isso: alguma coisa. Há uma raiva silenciosa, exasperações terríveis acumuladas ao longo de anos, inclusive décadas, que não têm por objetivo real “o governo” ou “os governos” – que, entre parênteses, todos implementaram políticas rigorosamente idênticas –, mas um tipo de sociedade largamente detestável.
Por conta do documentário Merci patron! (Obrigado, patrão!), de François Ruffin, e da reforma trabalhista, dois grandes catalisadores, algo se produziu na Praça da República no dia 31 de março. Algo e nem nós mesmos sabemos exatamente o quê. Vamos saber. Como o movimento será construído, se irá adquirir importância ou não, que objetivos políticos conseguirá alcançar... Ninguém sabe.
Que semelhanças e diferenças você vê entre o pessoal que está na Praça da República e os indignados que ocuparam as praças da Espanha durante o movimento do 15-M?
Não conheço suficientemente bem o que aconteceu no movimento espanhol do 15-M e não posso responder com precisão à pergunta. Tenho a sensação de que na Espanha vocês tiveram dois fortes fatores catalisadores que não temos na França: por um lado, a dívida imobiliária das moradias e dos despejos e, por outro, a corrupção dos políticos em grande escala.
Na França, a questão social, a questão do trabalho e do emprego seguem sendo muito importantes. Mas precisamente a particularidade do movimento atual está em que não se limita a reivindicações como a garantia do trabalho ou a melhoria das condições trabalhistas, ou qualquer coisa neste sentido, mas fundamentalmente a crítica da situação do trabalho em si e dos próprios trabalhadores. É, portanto, uma crítica ao capitalismo.
Você fala com frequência da importância do contato entre os jovens e as classes operárias. Por que este contato é tão importante?
Porque não há movimento social forte que não passe por esta conjunção, à qual, além disso, será decisivo somar a juventude marginalizada dos subúrbios. Em tempos normais, toda a sociologia se opõe a este encontro. E, de fato, durante muito tempo, as classes operárias foram massacradas pelo capitalismo neoliberal sem que ninguém se preocupasse. Sobretudo a pequena ou média burguesia urbana educada, os intelectuais precários, etc.
O que acontece com a Nuit Debout tem como principal finalidade fazer aparecer novamente isso que todas as categorias sociais, normalmente afastadas umas das outras, têm fundamentalmente em comum: sua condição de assalariados! Podemos inclusive acrescentar outras categorias – como os agricultores, por exemplo – que, apesar de não ser assalariados, não sofrem menos sob a dinâmica geral do capital. É esta dinâmica geral, excluída do debate há décadas, que agora volta a ser discutida.
Você acredita que veremos um Podemos à francesa, considerando o contexto atual?
Não acredito e acrescento que, da minha parte, não o desejo. Para ser claro, pergunto-me inclusive se o Podemos não é uma espécie de contra-exemplo, o modelo daquilo que não devemos fazer: voltar ao marco eleitoral, à renormalização institucional. Voltar ao jogo institucional é a morte certa de todos os movimentos. E agora você se perguntará: como transformar estas reuniões em conquistas políticas para que não tenham acontecido em vão? É uma pergunta estratégica de primeira ordem.
Minha resposta para sair desta terrível obstinação é que se voltar ao jogo eleitoral institucional é a morte, então não nos resta outra alternativa senão refazer as instituições. É por isso que creio que o objetivo político que devemos perseguir – e eu disse isso na Assembleia Geral de domingo – consiste em reescrever uma constituição. Mas sem que isso se torne um exercício jurídico formal e afastado da rua, como costuma acontecer.
Devemos escrever a constituição da República Social. E, ao contrário da república atual, que é de fato a república burguesa, cuja vocação é sacralizar o direito à propriedade, a República Social deveria ter por missão abolir o princípio da propriedade lucrativa dos meios de produção e instaurar a propriedade de uso: os meios de produção não pertencem aos acionistas, aos proprietários, aos capitalistas; devem pertencer àqueles que se servem deles, para além de fins lucrativos.
Qual é o seu papel na mudança social que a França parece estar vivendo?
Não faço outra coisa que dar a minha contribuição dentro da divisão do trabalho político, com alguns meios que são os meus, os de intervenção de um intelectual; nada mais nada menos. Este movimento não tem líder e colocar-me à frente é a última coisa que me apetece! Parece que algumas das minhas intervenções puderam produzir efeitos de cristalização, e isso é genial. Mas, vai até aí o que me diz respeito.
Por outro lado, os movimentos como o nosso, e com razão, atraem tentativas de captura individual e de personificação das dinâmicas coletivas. Se alguém tivesse a absurda ideia de se nomear “líder”, mandariam-no de volta aos seus queridos estudos! Mas, a imprensa é incapaz de entender coisas assim e fica obcecada com a “encarnação”, as “figuras representativas”, os “líderes” e todo esse repertório de filosofia individualista e heróica da história. E quando não encontra o que busca a todo custo, inventa-o.
É por essa mesma razão que rejeito sistematicamente todos os convites dos meios de comunicação para me manifestar, todos os pedidos de “retrato”. Não paro de ver artigos que me apresentam como “figura” eminente, para personalizar o que não é personalizável. É um pouco angustiante.
Há uma luta entre a solidariedade e o medo na França e o resto do mundo. Você tem, ao contrário, uma postura otimista ou pessimista a curto e longo prazo em relação à mudança social na França?
Como responder a esta pergunta... Não faço a mínima ideia de como as coisas vão se dar... No entanto, não posso evitar pensar que o capitalismo neoliberal maltratou tão profundamente o corpo social que não pode não acontecer, de um momento para o outro, uma reação violenta. Chegou esse momento? Ou o movimento vai se deter? Não sei. Só sei que mesmo se aparentemente terminar, na realidade não terá fracassado, porque terá semeado algo nas mentes. E esse algo, cedo ou tarde voltará.
A Lei El Khomri despertou a indignação de uma parte significativa da população francesa. Se o governo renunciar a esta norma, você acredita que essa indignação irá ceder?
Esse é o grande desafio do nosso movimento. Não é um movimento reivindicativo, essa é a grande novidade. Não reivindicamos a retirada da Lei El Khomri. Ao fim e ao cabo sobre esta lei, dá na mesma! Esta lei foi o estopim de muitas outras coisas muito mais fundamentais. Mesmo se retirarem a lei, mesmo se o governo acabar, nós permaneceremos, porque aquilo que desejamos vai muito além: não queremos reivindicar mais, mas afirmar. Afirmar as novas formas de trabalho e política.
Veja também:
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“Pergunto-me se o Podemos não é um contra-exemplo, isso que não devemos fazer: voltar ao marco eleitoral”. Entrevista com Frédéric Lordon - Instituto Humanitas Unisinos - IHU