14 Abril 2016
Para Slavoj Žižek, filósofo, os “Panama Papers” revelam: sonegar, esconder dinheiro e especular não são perversidades de gananciosos – mas a regra do jogo, no sistema.
O artigo é publicado por Outras Palavras, 13-04-2016. A tradução é de Antonio Martins.
Eis o artigo.
A única coisa de fato surpreendente no vazamento dos Panama Papers é que não há, neles, surpresa alguma. Eles não mostraram exatamente o que esperávamos encontrar? Sim, uma coisa é saber sobre contas offshore em geral, e outra é ver a prova concreta. É como se alguém soubesse que seu parceiro está saindo com outra pessoa – é possível aceitar a consciência abstrata do fato, mas a dor emerge ao saber dos detalhes picantes. E ao ter contato com as fotos… Agora, com os Panama Papers, estamos chocados com algumas das imagens sujas da pornografia financeira dos super-ricos, e não podemos mais fingir que não sabemos.
Em 1843, o jovem Karl Mark afirmou, sobre o ancien régime alemão: “imagina que acredita em si mesmo e pede que o mundo imagine o mesmo”. Em tal situação, apontar a vergonha dos poderosos torna-se uma arma. Ou, como prosseguia Marx, “para que a pressão torne-se mais intensa é preciso acrescentar a ela a consciência da pressão; para tornar a vergonha mais vergonhosa, é preciso torná-la pública”.
Esta é, hoje, nossa situação: defrontamo-nos com o cinismo desavergonhado da ordem global, cujos agentes apenas imaginam que acreditam em suas ideias de democracia, direitos humanos, etc; mas por meio de vazamentos como os do WikiLeaks ou dos Panama Papers, a vergonha – nossa vergonha por tolerar tal poder sobre nós – torna-se mais intensa ao vir a público.
Uma rápida olhada nos Panama Papers revela algo muito bom e algo muito ruim. O positivo é a solidariedade geral dos participantes. No mundo nebuloso do capital global, todos são irmãos. O mundo ocidental desenvolvido está lá, incluindo os impolutos escandinavos, e eles dão as mãos a Vladimir Putin. O presidente chinês, Xi, o Irã e a Coreia do Norte também comparecem. Muçulmanos e judeus trocam piscadelas amistosas – é um reino verdadeiro de multiculturalismo, onde todos são iguais e todos diferentes. O lado negativo: a comovente ausência dos Estados Unidos, o que dá alguma razão às alegações de russos e chineses, segundo os quais há interesses políticos associados ao vazamento.
Mas então, o que temos a ver com todos estes dados? A primeira reação (e a predominante) é a explosão de raiva moralista, é claro. Mas o passo indispensável é mudar de assunto imediatamente, da moral para nosso sistema econômico: políticos, banqueiros e executivos sempre foram gananciosos. A questão é: o que há em nosso sistema legal ou econômico que lhes permite realizar esta ganância com tanta desenvoltura?
A partir do colapso financeiro de 2008, figuras públicas, a partir do Papa, bombardeiam o mundo com apelos para lutar contra a cultura de ganância e consumismo. Segundo um dos teólogos próximos ao Papa, “a atual crise não é uma crise do capitalismo, mas da moralidade”. Mesmo setores da esquerda seguem esta trilha. Não há falta de anticapitalismo, atualmente. Os protestos do Occupy explodiram há alguns anos, e continuamos a assistir uma sobrecarga de crítica aos horrores do sistema. Abundam livros, reportagens em profundidade nos jornais e vídeos na TV sobre como as corporações poluem desregradamente a natureza; ou como banqueiros corruptos continuam a ganhar bônus milionários, enquanto seus bancos são salvos com dinheiro público; ou sobre fábricas insalubres onde crianças trabalham em jornadas desumanas.
No entanto, há uma armadilha em todo este fluxo de crítica: não se questiona o quadro democrático-liberal em que se dá a luta contra tais excessos. O objetivo, explícito ou implícito, é democratizar o capitalismo, estabelecer controle democrático da economia, por meio da pressão da mídia, de leis mais duras, de investigações policiais honestas. Mas o sistema como tal não é questionado, e seu quadro institucional de “estado de Direito” permanece como vaca sagrada, que não é questionada sequer pelas formas mais radicais de “anticapitalismo ético”, como as do movimento Occupy.
Para compreender qual erro é preciso evitar, vale lembrar de uma história – talvez apócrifa — do economista John Galbraith, keynesiano de esquerda. Antes de uma viagem à União Soviética, no final dos anos 1950, ele escreveu para Sidney Hook, um amigo anticomunista. “Não se preocupe, eu não serei seduzido pelos soviéticos, nem voltarei dizendo que eles vivem sob o socialismo”. Hook respondeu de imediato: “É isso que me preocupa: que você volte contando que a União Soviética não é socialista!” O que preocupava Hook era a defesa ingênua da pureza do conceito: se a construção de uma sociedade socialista fracassou, isso não invalida a ideia em si – apenas demonstra que ela não foi adequadamente realizada. Não é possível detectar a mesma ingenuidade nos fundamentalistas de mercado de hoje?
Há alguns anos, o intelectual francês Guy Sorman afirmou, num debate na TV, que a democracia e o capitalismo necessariamente andam juntos. Não resisti a perguntar: “mas e a China?” Sorman retrucou: “Na China, não há capitalismo!” Para ele, um defensor fanático do capitalismo, se um país não é democrático, isso automaticamente significa que não pode ser verdadeiramente capitalista. Adota uma versão deturpada, exatamente como, para um comunista democrático, o stalinismo era, apenas, uma forma não autêntica de comunismo.
Não é difícil identificar o erro subjacente. É o mesmo de um chiste conhecido: “Minha noiva nunca estará atrasada para um encontro, porque no momento em que estiver, não será mais minha noiva”. É assim que os defensores da sociedade de mercado explicam hoje a crise de 2008: não foi o fracasso do livre mercado que a causou, mas o excesso de regulação estatal, ou seja, o fato que nossas economias de mercado não eram autênticas, ainda tinham traços de Estado de Bem-estar Social. A importância dos Panama Papers é, precisamente, mostrar a falsidade desta alegação. A corrupção não é um desvio contingente do sistema capitalista global – é parte essencial de seu funcionamento.
A realidade que emerge do vazamento é uma divisão de classes, muito simples de compreender. Os documentos demonstram como os super-ricos vivem num mundo à parte, em que vigoram outras regras, em que o sistema legal e a ação da autoridade policial são inteiramente distorcidos, não apenas para proteger os ricos, mas para moldar o sistema legal de forma a acomodá-los.
Já começaram a surgir reações da direita liberal aos Panama Papers. Elas jogam a culpa nos excessos do Estado de Bem-estar Social, ou no que resta dele. Alegam que, como os ricos são pesadamente tributados, eles naturalmente tentam deslocar-se para países com impostos mais baixos, o que não é, em última instância, ilegal. Embora ridículo, este argumento tem um núcleo de verdade, e chama atenção para dois pontos. Primeiro, a linha que separa as transações legais das ilegais está se apagando muito rapidamente, e com frequência se reduz a uma diferença de interpretação. Segundo, proprietários de riqueza que deslocaram suas fortunas para contas offshore e paraísos fiscais não são monstros de ganância, mas indivíduos que apenas agem como sujeitos racionais que tentam proteger sua riqueza. No capitalismo, não é possível jogar a água suja da especulação financeira e ficar com o bebê saudável da economia real. A água suja é, na verdade, a linhagem do bebê saudável.
Não deveríamos ter medo de ir até o fim. O sistema legal do capitalismo globalizado é, na sua dimensão mais fundamental, a corrupção legalizada. A questão de onde começa o crime (que operações financeiras são ilegais) não é um tema jurídico, mas eminentemente político, relacionado a relações de poder .
Então, por que milhares de capitalistas e políticos fazem o que está revelado pelos Panama Papers? A resposta é a mesma da piada vulgar. Por que os cachorros lambem suas bolas? Porque eles podem…
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Zizek e a banalidade do mal, sob o capitalismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU