14 Abril 2016
"Mesmo com todos os defeitos do Estado, quando o regime democrático efetivamente dá-lhe sustentação, ele ainda é dos poucos poderes capaz de mudar essa direção. Repete-se sempre aqui a obviedade: por mais que a lei se afirme como garantia efetiva do bem comum", escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
Eis o artigo.
As planilhas de previsão dos votos necessários ao sim ou ao não do impeachment estão sendo conferidas hora a hora, num clima de extraordinária tensão e desconfiança de lado a lado, os lobbys favoráveis a cada um deles submetidos a uma tarefa insone de esforço argumentativo, junto a cada parlamentar, de resultado, até o momento, ainda indefinido.
Descontada a vergonha de uma decisão como essa, capaz de mudar uma administração pública inteira, um destino de governo e até de país, estar sendo presidida por um personagem sem nenhuma legitimidade para isso, resta ao povo tentar, pelo menos, identificar a motivação inspiradora de cada um dos grupos políticos em confronto.
Numa sociedade separada por classes, como a nossa, vítima de uma desigualdade social armada com grande capacidade de reprodução, o reflexo do principal efeito dessa realidade está muito presente em cada uma das partes postulantes da queda ou não da presidenta.
O poderoso peso econômico político do empresariado está, com muito raras exceções, posicionado a favor do sim. Sindicatos de trabalhadoras/es e movimentos populares de defesa dos direitos humanos fundamentais sociais, grande número de ONGs, entidades estudantis, intelectuais e artistas, com algumas exceções também, a favor do não.
Seria muito reducionista, assim, o diagnóstico de a decisão sobre o impeachment ficar restrita ao cálculo do efeito econômico dele derivado para o sim e para o não?
Pode parecer ingênua demais uma resposta negativa para essa pergunta, mas é essa que nos ocorre dar agora, a partir de algumas razões históricas, uma delas confirmada no encerramento de um dos eventos mais valorizados pelo empresariado, pelo menos no Rio Grande do Sul, o chamado Forum da Liberdade.
Segundo notícia veiculada pela imprensa de Porto alegre, sob a inspiração de que “o que move o mundo” é a empresa, o capital, o Forum se encerrou - como era aliás de se esperar - com críticas muito fortes ao chamado intervencionismo do Estado.
À luz de uma inspiração como essa, O Estado seria, portanto, um obstáculo para o mundo se mover...
Para uma tese tal ser confirmada, existe uma premissa lógica sob cujo questionamento ela precisa dar resposta convincente: de que mundo ela fala e em que direção ele se move? - Se é o mundo dos negócios, da circulação do capital e do dinheiro, esse comprovadamente não é comum, no sentido de ser o de todas as pessoas.
Até pelo contrário, está muito longe de chegar a todas/os, as estatísticas comprovando sua capacidade de concentração sob poucas mãos e o seu poder de excluir muitas. Por esse efeito, o Forum pode até continuar afirmando-se como inspirado em liberdade, mas se essa prosseguir impedindo libertação, o tão sonhado “bem comum” indispensável à primeira continuará também impedindo a segunda, um movimento de mundo sob direção despropositada e injusta.
Mesmo com todos os defeitos do Estado, quando o regime democrático efetivamente dá-lhe sustentação, ele ainda é dos poucos poderes capaz de mudar essa direção. Repete-se sempre aqui a obviedade: por mais que a lei se afirme como garantia efetiva do bem comum, esse é impossível num mundo que não seja comum e nesse, consequentemente, não vive nem liberdade nem justiça. Que ambas também podem ser vítimas do Estado, isso é sabido, mas só quando esse celebra aliança com uma direção cúmplice de uma classe social opressora e excludente.
Liberdade e justiça serão essas duas, mesmo, as principais motivações de quem vai votar o impeachment?
À luz de quem está posicionado ao lado do sim, considerando-as como propriedade privada exclusiva de um mundo, o da sua própria classe, parece pouco provável. Por isso, independentemente de outras, as razões de quem está posicionado ao lado do não estão contando com um respaldo ético-político superior às que alegadamente sustentam o lado do sim. O paradoxo de o 'não' se posicionar ao lado do 'sim' à libertação e à justiça social, no caso, e o sim pretender dizer não às duas - mesmo a pretexto de defende-las - é o mesmo paradoxo que separa as classes sociais em luta nessa quadra da nossa história, refletido na votação do impeachment.
Que motivação ético-política e jurídica, obedece melhor ao tão sonhado bem comum, como ela deve responder à pergunta do que efetivamente move o mundo, que mundo é esse, e de qual economia, de que moral se trata nessa votação do impeachment? Uma síntese inspiradora de resposta para tais questões parece clara na contracapa do livro de Paul Ricouer “Amor e Justiça” (São Paulo: Paulus, 2008. Ali se diz que qualquer pensamento deste autor:
“Tende a demonstrar a proporção, as ligações, a dialética profunda, a tensão viva e fecunda entre amor e justiça que emerge no momento da ação, que ambos reivindicam. Ambos estão contidos numa economia da dádiva (grifos do autor), que excede a ética de que se pretendem as figuras e pela qual se sentem responsáveis. A lógica da superabundância está constantemente a desafiar, sem nunca se ter tornado menos necessária, a lógica da equivalência.”
Daí a nossa esperança, ainda que ingênua como advertimos acima, de a justiça, inseparável do amor, como ensina Paul Ricouer (outra ingenuidade?), presidir a votação do impeachment só garantindo liberdade à superabundância de quem já tem e pode muito, na medida em que não desrespeite a equivalência de quem não tem e não pode nada.
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O que vai motivar o sim e o não do impeachment - Instituto Humanitas Unisinos - IHU