Por: André | 07 Abril 2016
Acedendo a um pedido formulado há muito tempo pelos organismos de direitos humanos da Argentina, o Papa Francisco anunciou recentemente a decisão de abrir ao público os documentos do arquivo vaticano dos anos da ditadura militar, de 1976 a 1983.
A reportagem é de Claudia Peiró, jornalista do jornal argentino Infobae, e publicada por El País, 04-04-2016. A tradução é de André Langer.
O processo de abertura levará vários meses, mas já foi vazada uma comunicação muito interessante. Trata-se de um informe enviado pelo então núncio vaticano na Argentina, dom Pio Laghi – falecido em 2009 –, às autoridades da Santa Sé. Está classificado com o nº 1510/76 e com data de 13 de julho de 1976 e inclui uma lista de 60 pessoas detidas que o representante da Santa Sé levou a um encontro que manteve com o general Albano Harguindeguy, ministro do Interior da ditadura presidida na época por Jorge Rafael Videla.
A questão significativa é que uma das pessoas por cuja sorte Laghi se interessou e intercedeu junto aos militares é Juan Martín Guevara de la Serna, o irmão mais novo do Che Guevara, um dos milhares de presos políticos que povoavam naquele época as prisões argentinas.
Em 24 de março passado, comemoraram-se os 40 anos da ditadura, e a data não transcorreu sem debate, porque aquele passado está obscurecido pelas rixas do presente. Nesse contexto, os documentos vaticanos são uma dupla contribuição: por um lado, restauram a figura de Pio Laghi que, como aconteceu com o mesmíssimo Jorge Bergoglio – hoje Francisco – foi apelidado de cúmplice da repressão ou, no mínimo, de não ter feito o suficiente.
No fundo, muitos dos pedidos de abertura de arquivos, mais do que averiguar a verdade, jogam suspeitas de conivência sobre determinadas pessoas ou instituições com os crimes da ditadura. Mas cabe assinalar que na Argentina do terror dos anos setenta, o simples fato de solicitar uma audiência com uma autoridade militar para reclamar por um preso ou por um desaparecido já era um ato de ousadia.
A outra contribuição destes documentos é a reconstrução da verdade sobre o contexto geopolítico no qual se deu o golpe de 1976. Enquanto a presença do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, na Argentina – sua visita coincidiu com o aniversário do golpe – foi repudiada 40 anos depois por setores de esquerda e organismos de direitos humanos, em nenhum momento foi evocada a cumplicidade do universo comunista soviético com a ditadura argentina.
Por isso, é tão emblemática a presença de Juan Martín Guevara na lista de Pio Laghi. A família do irmão do Che morava em Cuba durante a ditadura. Seu filho, Martín Guevara, descreveu em “À sombra de um mito” suas vivências naquele exílio cubano, recordando com dor a indiferença de Fidel Castro com a sorte de seu pai preso na Argentina e o silêncio cúmplice do regime castrista diante do massacre de tantos militantes revolucionários na Pátria do Che. Seus amigos na escola cubana lhe perguntavam por que estava exilado se em seu país não havia ditadura, a tal ponto chegava a censura castrista sobre a denúncia do terrorismo de Estado argentino.
Os motivos desta conduta devem ser buscados na absoluta dependência – econômica, política e militar – em que Castro colocou Cuba em relação à União Soviética, naquela época a principal compradora de grãos da Argentina. Moscou foi o principal apoio internacional da ditadura de Videla. Estes fatos não são nenhum segredo. Foram silenciados por aqueles que olham a realidade com o prisma deformante da ideologia.
Não apenas Cuba, mas quase todo o Movimento de Países Não Alinhados – contradizendo sua denominação – se alinhou com a geopolítica soviética e protegeu a ditadura argentina de possíveis condenações por parte da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas. Concretamente, nunca foi possível enviar uma missão desse organismo à Argentina para verificar in situ as denúncias de torturas, campos de concentração e execuções secretas porque Videla e seu regime contaram sempre com o voto de Havana e demais satélites soviéticos.
Portanto, é muito provável que, assim como a abertura de documentos do Departamento de Estado dos Estados Unidos mostrou que, sob a presidência de Jimmy Carter (1977-1981), aquele país se interessou e intercedeu por muitas vítimas da ditadura argentina, também a abertura de arquivos vaticanos contribua para a reconstrução de um quadro muito mais próximo da verdade em relação a quais foram os verdadeiros apoios internos e externos do regime militar argentino.
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Surpresa nos arquivos do Vaticano. Moscou foi o principal apoio internacional da ditadura de Videla - Instituto Humanitas Unisinos - IHU