Por: André | 22 Fevereiro 2016
“Passarão muitos anos antes que os grandes livros da história desta guerra sejam escritos e seus segredos sejam revelados. No Ocidente, exceto a crise dos refugiados, vemos este conflito apenas como uma luta geopolítica. Mas depois das batalhas de Aleppo, pode-se escrever que – mesmo que temporariamente, mesmo que com medo, mesmo que poucos nas ruas de Al Qadam – a população está voltando para casa”, escreve Robert Fisk, em artigo publicado por Página/12, 19-02-2016. A tradução é de André Langer.
Eis o artigo.
“Esta é uma zona militar”, disse-me um soldado sírio, quando fui vistoriar as ruínas no final da rua Ibn Hawqal. Mas não pude ver nenhuma posição militar síria no meio das ruínas, nem sequer um posto de controle. “Trata-se de uma zona militar”, disse mais bruscamente. Então me dei conta. A quantos quilômetros de distância está o Estado Islâmico, perguntei. “Lá em baixo”, disse o soldado. “A uns 200 metros”, respondeu-me o soldado.
Vi o caminho destruído, frisado pelo sol do meio dia; um deserto seco cheio de casas apertadas, semelhantes a todas as ruas pelas quais passou a guerra em Damasco, em Aleppo, em Faluja, em Sarajevo, em Beirute, e nos velhos tempos, sem dúvida, alguma vez em Cherburgo e Stalingrado. E não faz muito, muito tempo, na guerra do meu pai, nos pequenos casarios ao longo do rio Somme.
Não. Esta não é a grande guerra – apesar de que durou muito mais tempo – e tais comparações de alguma maneira tiram a dignidade daqueles que tratam de voltar a viver nestas ruínas. A Síria é a Síria e não o Iraque ou a Bósnia ou parte de uma guerra mundial – embora haja árabes que afirmam que tudo isto faz parte da Terceira Guerra Mundial. Por que os estadunidenses não ameaçaram bombardear Damasco? Não está a força aérea russa agora bombardeando o Estado Islâmico? Não está a Turquia ameaçando invadir a Síria? E a Arábia Saudita?
Mas o que está acontecendo aqui em Al Qadam diz muito sobre a guerra na Síria. Um tempo nas mãos da Jabhat al Nusra, a cidade ficou apodrecendo durante três anos, sob o controle do governo, mas quase desabitada, até que o exército atacou o norte de Aleppo e começou a conquistar os seus inimigos ao longo da fronteira turca – e a população começou a voltar para Al Qadam.
Vinte e seis famílias chegaram apenas nos últimos 15 dias, assim como antigos homens “livres” do exército sírio à deriva – parte do mítico exército de David Cameron formado por, supomos, cerca de 70 mil “moderados” – além de cinco prisioneiros libertados das prisões do governo.
A vitória traz consigo segurança, embora seja temporária, e pode ser cheirada nas linhas de vanguarda do governo e longe de Aleppo.
Há menos pontos de controle em Damasco. Há cem mulheres dançando o “dubkah” em uma ruidosa festa em um dos grandes hotéis, os comboios de caminhões ronronam pela fronteira com o Líbano a caminho rumo à Jordânia agora que o exército sírio voltou a abrir o principal caminho para Deraa. Os sírios vão novamente a Aleppo de carro pela rodovia. Na televisão síria mostram paraquedistas sírios entrando nas cidades que não haviam visto durante três anos. E em Al Qadam, suas ruas com nomes de antigos filósofos árabes e viajantes, também há gente retornando.
Existe inclusive um “comitê de reconciliação”, anciãos que falam tanto com o exército como com o Exército Livre da Síria, mas “não com o Estado Islâmico nem com a Al Nusra”, insistem todos. Bebem café com os soldados do governo e compartilham muitos alimentos.
Permitiu-se que alguns homens do Exército Livre da Síria conservassem suas armas ligeiras, “uma vez que prometeram renunciar à sua oposição ao regime”, motivo pelo qual o exército do governo deu-lhes alimentos e remédios. Vários deles foram autorizados a voltar às fileiras do exército do qual desertaram, com novas patentes, evidentemente, e são novamente remunerados pelo governo. “Sim, claro que conhecemos muitos deles”, dizem os soldados.
É uma guerra sutil. A oposição muda de lado especialmente agora que provou o amargo fruto da ideologia do Estado Islâmico e entendeu o poder da força aérea da Rússia. Parece que surtiu efeito. O silêncio tomou conta da primeira linha de combate.
Síria e Assad são palavras que foram pintadas com spray vermelho nos muros. Os lemas da Al Nusra foram cobertos tão fortemente com tinta azul que é impossível saber o que diziam, exceto a palavra “Alá”. O exército deixou intacto o nome de Deus.
Um quilômetro e meio atrás, três soldados estão sentados em cadeiras à sombra de um beco, ao lado de um tanque T-72 com o canhão apontando para cima, enquanto tomam café.
Thaled Fado faz parte do “comitê de reconciliação”. É um trabalhador da construção civil e está de acordo em que haverá muito para reconstruir. Ele queria ser piloto e viajou à Europa para cumprir sua ambição e morou em Barcelona, onde, inevitavelmente, ficou sem dinheiro.
“Há paz aqui agora”, disse. “O exército tomou este lugar da Al Nusra há muito tempo, mas agora as pessoas estão voltando. Falamos com o exército. Este é o meu lar”.
No entanto, o “lar” – herdado de seu pai – não tem teto, assim como todas as demais casas deste pobre e devastado subúrbio que foram saqueadas e queimadas pela Al Nusra. Uma senhora de vestido verde assinala: “Este ainda não é o momento de sair do anonimato, para a maioria das pessoas daqui”. Ela descreve como a Al Nusra apareceu neste lugar há três anos: “Nós não os conhecíamos e tratei de ficar, mas depois vieram à nossa casa e assassinaram o meu marido e eu fui embora com os meus filhos”.
Agora ela está parada ao lado de Thaled Fado e sorri ao estranho que veio ver esta pequena esquina da miséria síria. Um soldado de barba também está sorrindo e creio que me disse que estou certo. Ele acaba de chegar de Aleppo.
Sua família mora aqui e ele voltou. Aos poucos vai ficando claro que muitas destas famílias tinham filhos no exército e que eram leais ao regime. E a Al Nusra voltou-se contra eles com sede de vingança. Por isso todas as casas foram queimadas – apenas umas poucas reparadas –, mas o minarete da mesquita local foi destruído.
Uma senhora de meia idade espia pela janela do piso térreo, olhando cautelosamente para a nossa câmara. Sua casa é agora um pequeno comércio. Há balas e biscoitos à venda. Suponho que seja isto que se chama de “normalidade”.
Há outra senhora sentada em um degrau na rua. Ela esconde o seu rosto entre as mãos. Uma imagem de desespero.
Zacharia Ashar, cuja túnica cor café o identifica como homem do campo, disse que até há pouco tempo Al Qadam era terra de cultivo. Ele também está no “comitê de reconciliação” e disse que 131 milicianos locais que combateram o exército retornaram, alguns da Jordânia, acreditando que protegeriam a sua população e manteriam o Estado Islâmico afastado.
“Alguns deles formaram uma unidade para apoiar o exército”, disse. “Outros trataram de lutar contra a Al Nusra e o Estado Islâmico e morreram. Sim, houve muitos mártires”.
Passarão muitos anos antes que os grandes livros da história desta guerra sejam escritos e seus segredos sejam revelados. No Ocidente, exceto a crise dos refugiados, vemos este conflito apenas como uma luta geopolítica. Mas depois das batalhas de Aleppo, pode-se escrever que – mesmo que temporariamente, mesmo que com medo, mesmo que poucos nas ruas de Al Qadam – a população está voltando para casa.