25 Janeiro 2016
"Durante séculos e ainda hoje oprime e cerca as/os índias/os como se “reconhecimento” e “direitos originários”, referidos na Constituição, não equivalessem a realidades preexistentes ao próprio estabelecimento de um Estado que se proclame democrático e de direito", escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
Eis o artigo.
Para que as/os índias/os perdessem suas terras e vidas, as forças portuguesas e os bandeirantes dizimaram milhões delas/es, desde a chegada das caravelas no Brasil, manchando a nossa história com um passado de atrocidades que ainda hoje, por despropositado que pareça, se repete. Se o restinho de solo, água, floresta e caça onde conseguem sobreviver agora, puder ser ainda garantido com um mínimo de paz às/aos índias/os, só se conseguirem atravessar toda a burocracia do chamado devido processo legal. Precisam se socorrer do Poder Judiciário e, mesmo assim, com muita oposição e, frequentemente, até insucesso.
Contra o absurdo desse injusto esbulho oficial, efeito da expansão ilimitada e incontida da sede insaciável do capital sobre terra, não tem sido suficiente um capítulo inteiro da Constituição Federal (o VIII da chamada ordem social) pretendendo proteger a terra e a gente indígenas. Notícias diárias informando sobre novos e crescentes conflitos fundiários sobre pedaços do nosso território onde vive esse povo, comprovam esse fato.
Uma simples leitura do artigo 231 da Constituição é suficiente para demonstrar como a aplicação da lei varia de acordo com o poder econômico que estiver em causa, quando o conflito sobre terra envolve o povo indígena:
“Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
A interpretação predominante da nossa legislação não lembra muito essa disposição, é privatista e excludente, sujeita a auto proclamada civilização branca. Ela não se dá conta, ou nem quer saber disso, do tamanho da sua iniquidade contra o povo indígena. Durante séculos e ainda hoje oprime e cerca as/os índias/os como se “reconhecimento” e “direitos originários”, referidos nesse artigo da Constituição, não equivalessem a realidades preexistentes ao próprio estabelecimento de um Estado que se proclame democrático e de direito.
Algumas notáveis exceções a esse desvio hermenêutico, parcial e tendencioso, estão aparecendo no Supremo Tribunal Federal. O seu presidente, Ricardo Lewandowski, está se posicionando claramente contrário a mandados liminares de reintegração de posse contra multidões pobres, concedidos sem o exame abrangente do que se encontra em lide e os efeitos daí decorrentes aos direitos sociais das vítimas dessas execuções.
No dia 13 deste janeiro, ele já tinha determinado a suspensão de uma reintegração de posse a ser executada sobre terra da Vila Soma, em Sumaré, São Paulo, da qual seriam vítimas mais de duas mil famílias perdendo suas moradias. Dois dias depois, na sexta-feira da semana passada, uma nova e significativa decisão do presidente suspendeu uma reintegração de posse contra o povo e a terra indígena dos Kaiowá, no município de Caarapó, em Mato Grosso do Sul, um sinal evidente e promissor de que não é impossível a lei branca se inculturar e o simplismo da sua interpretação abandonar o seu viés desumano contrário às /aos índias/os brasileiras/os.
No site do Supremo Tribunal Federal sobre o acontecido lê-se o seguinte:
“Na decisão monocrática em que deferiu a liminar, o ministro Lewandowski assinala que a demarcação de terras indígenas apenas reconhece um direito preexistente e assegurado constitucionalmente, visando ao reconhecimento e à regularização das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. Como ato administrativo, a demarcação tem a presunção de legitimidade e de veracidade, e produz efeitos até a decretação de sua invalidade pelo Judiciário ou pela própria Administração.
Conforme o pedido da Funai, buscando obter esse despacho, cinco mil indígenas, dispostos a morrer em defesa da terra, iriam ser atingidos pelo mandado de reintegração, agora felizmente suspenso, pelo reconhecimento expresso na própria Constituição Federal de que o direito indígena sobre suas terras é preexistente e a prova contrária disso, se houver, cabe exclusivamente a quem impugná-lo.
Não é de todo improvável estarem as poucas sementes libertárias da lei, defendidas por Las Casas em defesa do povo indígena, desde o século XVI, quando neste continente a invasão europeia já o oprimia e matava, fecundando agora árvores e frutos de uma nova percepção do seu direito preexistente sobre a terra.
As Constituições deste novo século, como as da Bolívia, do Equador e da Venezuela, especialmente a primeira, quase certamente por ter um índio no governo daquele país, estão procurando limpar a terra da sujeira que o sistema capitalista lhe impõe, quando a trata como reles mercadoria. Lá ela é reconhecida como mãe, “pacha mama”, sujeito de direito (!), de acordo com a Constituição. Daí a se alcançar a criação do sonhado constitucionalismo latino-americano, no qual se respeite a cultura, o modo de vida, a espiritualidade refletida na verdadeira devoção e no respeito das/os índias/os por essa mãe, o seu desejado “bem viver” numa “terra sem males”, vai um caminho de grande empenho e perseverança, como estão demonstrando as/os participantes do Forum social mundial, ora se realizando em Porto Alegre.
Empoderadas/os por essa ecologia política integral, lembrada pelo Papa Francisco na encíclica Laudato Si, vão retornar às suas terras, equipadas/os com outra concepção de planeta, aquela da “casa comum” e com outra concepção de humanidade, na qual nenhum interesse ou direito é tratado como exclusivamente próprio, mas sim garantia efetiva e recíproca da dignidade de todo o ser humano.
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Efeitos sociais da posse de terra indígena como direito preexistente - Instituto Humanitas Unisinos - IHU