19 Novembro 2015
Angena veio ao Brasil para ajudar o marido a juntar dinheiro e enviar aos quatro filhos que ficaram no Haiti. Assim como Micheline e Cátia. Sadiga já havia deixado o Sudão, vivido no Líbano, antes de o marido ser transferido ao Brasil. Arame se lançou sozinha no caminho do Senegal até aqui. Cleda sustentava os seis filhos com um mercadinho no Haiti, mas queria mais para eles. Domingas também. E Lourdes, Basilia e Marta. Todas mulheres que imigraram de suas terras para conseguir uma vida melhor trabalhando. Mas, como dizia Tom Jobim, o Brasil não é – nem nunca foi – para principiantes.
A reportagem é de Fernanda Canofre, publicada por Sul21, 17-11-2015.
A recessão no mercado de trabalho, a alta do dólar, misturados a uma xenofobia mal-disfarçada acaba afetando diretamente essas mulheres quando tentam o sonho numa terra distante. Enquanto homens acabam arranjando emprego em construção civil ou no mercado informal, para as mulheres não sobra nada. Há oito meses no Brasil, a haitiana Angena Joseph, não encontrou nenhum tipo de emprego. “Dizem que não tem vaga para haitiana, só para brasileira”, conta ela que admite já ter sentido o racismo à brasileira caminhando nas ruas de Caxias do Sul e durante as entrevistas de trabalho. Tendo de optar entre pagar aluguel e comida ou enviar dinheiro para os quatro filhos, Angena e o marido dependem da ajuda prestada por vizinhos e por organizações como o Centro de Atendimento ao Migrante (CAM), das Irmãs Scalabrinianas.
Sua conterrânea Cleda Incharles também. Mãe solteira, Cleda sustentava os seis filhos – com idades entre 18 e um ano – com um mercado de pequeno porte em Porto Príncipe. Mas as perspectivas de futuro no país que ainda sofre as consequências do terremoto de 2010 sempre foram escassas. Assim, quando ouviu alguém vendendo a promessa de trabalho bem remunerado, oferecido aos montes no Brasil, Cleda vendeu tudo o que tinha e comprou o bilhete. Após oito meses aqui, ainda não encontrou nada. Correu atrás de toda vaga encontrada em classificados, sugeridas por organizações, em agências de emprego, mas a resposta sempre é a mesma: há vaga, mas não para haitianos. O contato com a família tem ficado cada vez mais raro. Ligações telefônicas saem caro e internet não é de fácil acesso no Haiti. Vencendo as dificuldades com o português, ela conta que tem um tio em Santa Catarina e está tentando juntar R$ 130 reais para pagar a passagem de ônibus de Caxias a Brusque. “Se eu conseguir chegar lá, ele me ajuda. Mas como vou fazer se não tenho nem para comer?”.
Segundo Juliana Camelo, que trabalha com imigrantes no CAM, o centro já atendeu mulheres haitianas, dominicanas, argentinas, uruguaias, senegalesas, colombianas. Todas buscam informações sobre questões de documentação e emprego. Com o aumento da demanda, em agosto, o local passou a organizar reuniões mensais só de mulheres para responder dúvidas, compartilhar as dificuldades e oferecer apoio a elas. “Essas mulheres vieram até aqui para buscar trabalho, para buscar aulas de português. Na primeira [reunião] a gente viu que tinha necessidade de explicar a questão da documentação porque tinha bastante indignação em relação a vinda do Haiti para o Brasil. A promessa de que iriam ter muito dinheiro. Muitas delas chegaram aqui e não encontraram trabalho”, explica.
Juliana relata que a dificuldade de encontrar empregos em Caxias não tem sido exclusividade das mulheres, ainda que elas sejam as mais afetadas. Muitas delas estão há mais de um ano sem retorno algum. “Até antes desse ano havia mais vagas, tinha muitos haitianos trabalhando nas empresas, muitos elogios, mas quando as empresas começaram a diminuir as atividades, as primeiras pessoas que saíram foram os imigrantes. Nessa situação acontece muito, ‘não tenho quase vagas, não vou contratar imigrantes’”, diz.
Onde estão as mulheres?
A invisibilidade das mulheres no contexto migratório tem muito a ver com o olhar direcionado pela mídia e pela sociedade. Enquanto os homens se inserem no mercado de trabalho e no espaço público, a elas cabe o espaço privado de casa – seja a sua ou de patrões. Ou seja, ainda que contribuam com a renda familiar e sejam trabalhadoras migrantes, elas seguem sendo pouco visíveis. Essa questão se acentuou depois das ondas migratórias dos anos 1960, quando os chamados serviços de cuidado – trabalho doméstico, cuidados de idosos, baby sitters – passaram a demandar mão-de-obra feminina em todo o mundo.
Imigrações de brasileiras à Europa, filipinas aos Estados Unidos, bolivianas e peruanas dentro da América do Sul se tornaram cada vez mais comuns para atender a essa demanda. “Vai se criando nichos de mercado de trabalho para esses grupos de imigrantes. Elas cuidam nos Estados Unidos das casas e dos filhos dos outros, enquanto pagam alguém nos seus países para cuidar dos filhos delas. É um rede internacional de cuidados, mas que também é de precarização do trabalho. Na maior parte destes países, as mulheres têm mais dificuldade de legalização, não têm direitos trabalhistas, etc”, explica a pesquisadora da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), Gláucia Assis. Ela chama atenção ainda para outro detalhe: quanto maior a situação de desespero destas mulheres, mais suscetíveis elas estão a trabalhos precários e baixa remuneração.
A história da dominicana Domingas ilustra bem esta questão. Domingas veio ao Brasil em 2013 encontrar o companheiro haitiano que já vivia no país há três anos. Depois do terremoto que devastou o Haiti em 2010, ele recebeu a oportunidade de um visto humanitário e resolveu aceitar. Domingas, no entanto, enfrentou todos os tipos de dificuldade com seus papéis. Segundo ela, na Polícia Federal chegou a ouvir de agentes que “seria melhor ela voltar ao seu país”. “Os dominicanos aqui não têm direitos, não têm nada. A Polícia Federal trata mal os dominicanos”, diz ainda. A saída foi assinar uma união estável e ter direito ao visto do marido para residência permanente.
O tempo em que ficou sem papéis, no entanto, fez com que Domingas tivesse de aceitar qualquer trabalho que aparecia e ter medo de denunciar ou ter contato com a polícia. Foi assim que durante oito meses, para conseguir mandar algum dinheiro aos filhos e à mãe que dependiam dela na República Dominicana, Domingas viveu em uma chácara no interior de Caxias. Sua função, sem nenhum documento assinado, era de caseira mas ela também cuidava de animais, consertava problemas na casa e era encarregada de uma série de outras questões do local. Além disso, tinha de estar sempre disponível. A remuneração era menor que um salário mínimo e não havia nenhum direito trabalhista. A solidão era o mais difícil: “Todo mundo ia embora e me deixavam nesse deserto. Uma pessoa fica louca”.
Assim que seu visto foi aprovado, Domingas partiu da chácara para buscar um trabalho de carteira assinada. Ela estava feliz que enfim teria um horário normal para cumprir e estaria vivendo com o marido. O primeiro carimbo em sua carteira foi de uma filial da JBS, empresa especializada no mercado de carnes e dona da Friboi, em Caxias do Sul. Domingas era uma das únicas mulheres em seu setor, em uma proporção de 50 homens para uma mulher, segundo ela. Era a única estrangeira. No primeiro mês de trabalho, um acidente quase lhe custou o braço esquerdo. Graças a um colega senegalês que parou a máquina a tempo, Domingas escapou com um ferimento no tendão e uma cicatriz de 4cm. A empresa a dispensou sem nenhuma compensação. A dominicana não conseguiu nem ajuda de custo com o tratamento. “A gente fica frustrado, fica triste. Eu fico sofrendo desse braço, porque foi o tendão, fico com dor”, diz.
Atualmente ela trabalha em uma casa de família onde acertou desde cedo seus direitos com a patroa, uma professora aposentada. Domingas também entrou com um processo trabalhista contra a empresa. Este ano ela conseguiu reunir a família toda no Brasil, o problema é que ainda está longe de ter o dinheiro para encaminhar os papéis de visto de todos aqui. “A situação está muito complicada, mas não temos R$ 6 ou 7 mil para voltar para casa. Tem que sofrer e aguentar”, conta. A terra onde o marido parecia estar indo bem até 2013 deixou de ser seu sonho.
Boas vindas é questão de cor
A migração dos chamados “novos rostos” – imigrantes vindos da América Central, África e sudeste da Ásia – aumentou no Brasil nos últimos anos. Isso revelou uma faceta dos próprios brasileiros inerente a outros fluxos migratórios anteriores. A xenofobia que quase não se apresentava, veio acompanhada de racismo à brasileira.
Em entrevista ao portal Opera Mundi, Gustavo Barreto, pesquisador e autor de “Dois Séculos de Imigração no Brasil: A Construção da Identidade e do Papel dos Estrangeiros pela Imprensa entre 1808 e 2015”, salientou essa questão. “Se for um imigrante ‘aceitável’, como os europeus, ele vai aparecer em geral por aspectos tidos como culturais ou pelos dotes empresariais. Se não for ‘aceitável’, vira notícia pelo crime, pelos problemas sociais que enfrentam. Uma leva de haitianos é considerada uma ‘invasão’ e a mesma leva de espanhóis é considerada um ‘movimento migratório’”, analisou.
Em um editorial publicado em outubro, em meio à crise de refugiados na Europa, o jornal norte-americano The Atlantic defendeu que “livrar-se das fronteiras” poderia ser uma oportunidade para o desenvolvimento econômico em todo o mundo. Para Alex Tabrrok, autor do texto, “diferenças de salário são uma métrica reveladora da fronteira de discriminação. Quando um imigrante de um país pobre se muda para um país rico, seu salário pode dobrar, triplicar ou aumentar em até dez vezes. Estas diferenças extremas refletem as mesmas restrições que separavam legalmente brancos e negros durante o apartheid na África do Sul”. O texto segue ainda dizendo: “Mesmo aumentos relativamente pequenos nos fluxos migratórios podem trazer benefícios enormes. Se o mundo desenvolvido recebesse imigrantes suficientes para aumentar sua força de trabalho por mero 1%, a estimativa é que o valor econômico adicional criado seria mais valioso para os migrantes do que toda a ajuda internacional combinada. Imigração é o melhor programa anti-pobreza já criado”.
Ao conversar com imigrantes em geral é comum encontrar relatos de discriminação no mercado de trabalho. Mulheres não são exceção. A dominicana Micheline, por exemplo, que veio ao país para encontrar o marido já empregado na construção civil até conseguiu emprego quando chegou. Sem falar direito o português, Micheline foi trabalhar como diarista em uma empresa que terceiriza serviços de limpeza em Caxias. Porém, quando a recessão chegou foi uma das primeiras a ser mandada embora. “Eu perguntava porquê, dizia que não podia ficar sem o emprego, mas o meu chefe pediu desculpas e disse que não tinha o que fazer”, lamenta. Agora, ela está prestes a completar um ano sem encontrar outra vaga.
A senegalesa Arame passou por uma situação parecida, há quatro anos, quando descobriu que estava grávida. Depois de vir sozinha ao Brasil, conheceu um conterrâneo aqui e se apaixonou. Em poucos meses estavam morando juntos e Arame esperava o primeiro filho. Com dois meses de gravidez ela comunicou ao gerente do restaurante onde trabalhava como auxiliar de cozinha, em Passo Fundo. Em poucas semanas, com uma desculpa de reestruturação, Arame foi dispensada. Ela não conhecia seus direitos para contestar. Teve de esperar o resto da gravidez em casa até poder buscar trabalho outra vez.
Hoje ela está empregada na lavanderia de um hospital na cidade. O local não tem creche para deixar o filho. Porém, ela conta que seu chefe de setor foi compreensivo e alterou os horários dela nos fins de semana para que ela possa tomar conta do pequeno quando a escola pública que ele frequenta está fechada.
As sem-direitos
Sem conhecer a legislação trabalhista do Brasil, com dificuldade no idioma e determinados a manter o emprego, muitos imigrantes acabam se sujeitando a violações no ambiente de trabalho. A discriminação não vem apenas dos contratantes – que muitas vezes ligam para os centros de assistência atrás de “mão-de-obra barata” – mas dos próprios colegas. “As coisas mais pesadas sempre deixam aos estrangeiros”, conta a dominicana Lourdes, que já passou por pelo menos cinco empregos e em todos trabalhava mais que as colegas brasileiras.
Sua companheira de casa, Marta, sentiu na pele a discriminação. Natural de Samaná, uma praia paradisíaca que serve como cartão-postal da República Dominicana, Marta trabalhava como massagista em resorts de luxo. Ainda assim, estava difícil sustentar sozinha os três filhos e ela se preocupava com as oportunidades que eles teriam quando adultos. Uma das filhas está terminando a faculdade de Medicina. Foi essa a razão que a levou a migrar, determinada a buscá-los assim que conseguisse uma vida estável.
Primeiro Marta foi parar no Uruguai, país onde os dominicanos têm despontado como população migrante majoritária nos últimos anos. Depois de um mês em Montevidéu, em pleno inverno, sem conseguir emprego, e gastando todas suas economias entre aluguel e alimentação, entrou em contato com outras dominicanas que estavam conseguindo manejar a vida em Porto Alegre. “Eu não conseguia sair na rua, ficava só na cama deitada. E lá tudo é bastante caro”, conta ela, que pagava 4 mil pesos uruguaios, cerca de R$ 400, por um mês de pensão em um quarto compartilhado com outras pessoas. Cansada, ela decidiu vir ao Brasil.
Em pouco tempo, Marta conseguiu dois empregos para mandar dinheiro para a família. Há dois anos, com as novas migrações chegando a um pico, imigrantes e refugiados encontravam facilmente ofertas de emprego no Brasil. Mas isso foi mudando. Marta teve de deixar um dos empregos, seguiu como auxiliar de cozinha em uma lanchonete no bairro Cavalhada. As mãos de massagista foram aos poucos perdendo a delicadeza enterradas nos pesados produtos de limpeza. A lanchonete, no entanto, prosperou. O dono conseguiu ampliar o espaço, o número de clientes e deu aumento para os funcionários. Menos para Marta. Para ela, o gerente veio com uma proposta que pensou que ela não poderia recusar. Apesar de todos receberem o aumento que quase dobrou o salário, para ela ele não poderia pagar esse valor. A proposta era de que Marta assinasse os recibos como se estivesse recebendo o valor reajustado, mas seguisse com o salário de R$ 1 mil. Ela não aceitou. “Trabalho tanto ou mais que qualquer um lá. Fico até tarde. Por que eu tenho de ganhar menos? Não é certo”, disse ainda tremendo de indignação com o que aconteceu.
O chefe então resolveu dar o aviso de 30 dias. Marta foi mandada embora depois de um ano e quatro meses sem reclamações na função. No último mês no emprego, sobrou para ela ensinar o jovem que vai substituí-la. Marta ainda não sabe onde ou quando conseguirá outro trabalho. Com a data assinada errada na carteira – o empregador colocou sua entrada em 2010 – ela deve enfrentar dificuldades inclusive para ter acesso ao seguro-desemprego.
Nem a carteira assinada serve como garantia de cumprimento de direitos. Geralmente os contratos são assinados sem nenhuma tradução ou entendimento por parte dos trabalhadores daquilo a que estão se submetendo. Se isso já é complicado na relação com grandes empresas, em ambientes como domicílios fica ainda mais camuflado. Exigir a tradução dos contratos para o idioma do trabalhador é apenas o início da solução para a questão e deve ser cobrado em breve, segundo debate de instituições durante o seminário do Fórum de Mobilidade Humana ocorrido em outubro, em Porto Alegre.
No mesmo evento, o haitiano Jean disse porque veio ao Brasil: “Eu fui pobre e não quero que meu filho seja pobre. Por isso tive que ir embora”. Para as mulheres, a questão dói ainda mais: “Filho é uma parte da gente. Sem eles, não se está inteiro aqui”, diz Angena. Ninguém deixa a sua terra facilmente. Quem migra quer uma vida melhor. O problema é que, muitas vezes, o preço que se cobra por ela pode ser alto demais
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Mulheres Invisíveis: "Não tem vaga para haitiana, só para brasileira" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU