13 Outubro 2015
"Francisco disse claramente qual é a sua 'agenda': uma Igreja doente que é curada através da saída de si, recupera a sua vocação evangelizadora e missionária, o que envolve um encontro com a realidade, especialmente nas periferias, não só geográficas, mas também existenciais, incluindo aqueles que se 'afastaram' da Igreja."
Publicamos aqui um trecho da entrevista com o jesuíta argentino Humberto Miguel Yáñez, diretor do departamento de teologia moral da Pontifícia Universidade Gregoriana, que conclui o livro Tango vaticano, de Iacopo Scaramuzzi (Edizioni dell’Asino), com prefácio de Goffredo Fofi.
A entrevista foi publicada no sítio Vatican Insider, 08-10-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis a entrevista.
A partir do quê se reconhece que o Papa Francisco é jesuíta?
De muitas coisas. O seu estilo de governo é tipicamente jesuíta. Por exemplo, o conselho dos nove cardeais que o ajudam na reforma da Cúria Romana e no governo da Igreja pode ser comparado com a consulta que cada jesuíta superior, cada provincial tem, até o geral da Companhia de Jesus. É um governo que sabe combinar, de um lado, o debate, a escuta daquilo que a comunidade diz, e, de outro, a decisão última que é tomada pelo responsável, pelo provincial, pelo geral ou pelo papa.
Viu-se isso, por exemplo, no Sínodo extraordinário sobre a família: ele encorajou todos a falar, depois, no fim, pronunciou um discurso tipicamente jesuíta, explicando que havia feito um discernimento entre as diversas atitudes que tinha visto na Aula sinodal, identificando também diversas tentações que emergiram, concluindo que, depois, caberá a ele tomar decisões. Outra característica tipicamente jesuíta é o discernimento, que nasce no contexto pessoal dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola e que ele, como se entende a partir da sua exortação apostólica Evangelii gaudium, teve a capacidade de traduzir pastoral e comunitariamente. O discernimento faz a pessoa crescer. Se você disser a uma pessoa: "Você deve fazer isto ou aquilo", como mera aplicação de normas ou de indicações, o risco é permanecer em um estágio infantil.
Ao contrário, trata-se de um processo dialógico. É a pessoa que, em última instância, se confronta com a realidade, com a vida, com os outros, e, à luz dos critérios do Evangelho e da tradição de espiritualidade, faz a própria experiência e decide por si mesma. Algo muito diferente do relativismo. Alguns não entendem esse ponto. O relativismo é outra coisa, significa não ter nenhum parâmetro e fazer escolhas de acordo com o que é confortável para mim, com o que eu gosto ou com base na ideologia do ambiente. Não, há critérios, não normas fixas, confiados à consciência de cada fiel, de modo que ele possa fazer o próprio discernimento. Há uma confiança na capacidade do cristão e das comunidades de poderem fazer discernimento. O papa não deve decidir tudo, mas sim dar critérios, como já dizia Paulo VI na Octogesima adveniens. E, depois, cabe às comunidades e aos indivíduos fazer um discernimento, guiados pelo Espírito, que foi dado a toda a Igreja.
A partir do quê se reconhece que o Papa Francisco é argentino?
Argentino e porteño (argentino de Buenos Aires)!
São duas coisas muito diferentes?
Aquela piada que o papa fez sobre os argentinos – que para se suicidarem, jogam-se de cima do seu ego – nós a fazemos com os porteños! A partir desse ponto de vista, porém, ele é um porteño insólito. É um homem humilde. Verdadeiramente humilde. Nas tantas vezes que eu falei com ele e, graças à confiança que existe entre nós, eu questionei o que ele disse ou fez, ele nunca adotou uma posição defensiva. Ele respondeu se explicando, mas admitindo que pode se equivocar.
Portanto, a partir desse ponto de vista, ele é pouco porteño... Mas no que se vê que ele é argentino e porteño?
Vê-se isso não só porque ele bebe o mate, mas também do modo direto de dizer as coisas, às vezes um estilo brincalhão, debochado, que pode ofender alguns, mas, na realidade, nasce do fato de que, na Argentina, as discriminações não são fortes. Debochar, no fundo, é uma forma brincalhona de aceitação. Nós, argentinos, somos uma sociedade multicultural, bastante aberta, onde o diálogo entre pessoas de origens e religiões diferentes é normal. É um povo que soube integrar muitíssimos imigrantes. Eu mesmo tenho origens imigrantes, meu pai era espanhol, e a minha mãe tinha origens italianas, todos os meus colegas de escola eram filhos ou netos de imigrantes.
Esse fato às vezes é usado como um argumento contra ele: "Ele é argentino, não entende o Vaticano"...
Eu acho que ele o entende muito bem, mas não aceita certas coisas. Não é que ele não entenda. É que ele não compartilha, e, como é uma grande personalidade, não se deixa instrumentalizar, acostumar, absorver por certas práticas ou hábitos consolidados. Sempre se fez assim? Hoje se faz de outro modo. Ele não se sente prisioneiro. Ele também diz isso na Evangelii gaudium, quando escreve que devemos rever certos costumes consolidados na Igreja que não servem mais.
As novidades introduzidas pelo Papa Francisco – a atenção aos imigrantes, a abertura aos que estão longe, a insistência na misericórdia, para dar alguns exemplos – estão adquiridas?
São dois anos de pontificado. Devemos esperar. Eu espero que se inicie um processo que não volte atrás, que a Igreja se ponha a caminho, pondo em discussão ou revendo um estilo que o Concílio já tinha posto em discussão ou revisto. Um Concílio não pode consertar as coisas de uma vez por todas, é um ponto de início e um ponto de partida. Devemos, portanto, recomeçar do Concílio, para seguir em frente em uma sociedade que não é mais a mesma dos tempos do Concílio. Diante dessa complexidade, precisamos de uma grande flexibilidade.
Com o Concílio, pode-se dizer que a preocupação da Igreja deve ser a pessoa, não os rótulos que colocamos nas pessoas para não reconhecê-las na sua realidade de graça e de pecado. Somos todos pecadores chamados a nos tornar santos. Enquanto a pessoa busca a Deus, há uma santidade, embora muitos aspectos da sua vida estão em desordem ou não estão de acordo com aquilo que Deus lhe pede. Sempre deve haver um lugar para cada um, um caminho a percorrer. A única exceção é a liberdade do homem que escolhe ficar de fora. A Igreja não pode dizer: "Aqui não há lugar para você". Isso sempre foi dito, mas depois, talvez, não foi aplicado de modo profundo e radical como entendido pelo Papa Francisco.
É impressão minha ou, ultimamente, digamos desde o Sínodo extraordinário sobre a família, o papa desacelerou, quase como se a sua tarefa fosse mais "semear" do que "colher", repetir o que foi dito nos dois primeiros anos de pontificado, em vez de dizer e fazer coisas novas?
Eu o vejo bastante satisfeito pela forma como as coisas estão indo. É verdade que ele se repete e continuará se repetindo. Agora será preciso pôr em prática aquilo que ele diz, tornar realidade. As iniciativas abertas já são muitas. Aliás, é preciso aprofundar aquelas que foram iniciadas, sem excluir que o papa tome outras iniciativas, como fez, por exemplo, convocando o Ano Santo da Misericórdia.
De todos os modos, ele disse claramente qual é a sua "agenda": uma Igreja doente que é curada através da saída de si, recupera a sua vocação evangelizadora e missionária, o que envolve um encontro com a realidade, especialmente nas periferias, não só geográficas, mas também existenciais, incluindo aqueles que se "afastaram" da Igreja, e ali devemos nos colocar para entender a doutrina e a mensagem do Evangelho e tentar iniciar uma pastoral realista, não só para um grupo de eleitos ou de puros, mas para todos, em primeiro lugar os pobres.
Uma última curiosidade: é verdade que Bergoglio dançava tango?
Sim. Eu conheci uma mulher que dizia que tinha dançado tango com Bergoglio, antes que ele entrasse para o seminário. E que dançava bem.
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"Bergoglio não se sente prisioneiro do Vaticano. Ele quer rever certos costumes da Igreja." Entrevista com Humberto Miguel Yáñez - Instituto Humanitas Unisinos - IHU