24 Setembro 2015
"Raúl estava seguro de que Francisco não causaria surpresas. O presidente de Cuba se equivocou. O Papa surpreendeu por sua empatia com o povo cubano, cristãos e ateus. Dispensou o Mercedes blindado reservado a seus deslocamentos e, pressionado a receber os guerrilheiros das FARC que, sob mediação cubana, negociam em Havana um acordo de paz com o Governo colombiano, optou por incluir em sua homilia, na missa na Praça da Revolução, seu apelo pelo bom êxito das negociações", escreve Frei Betto, escritor, em artigo publicado por El País, 23-09-2015.
Eis o artigo.
Ao encerrar sua visita a Cuba, na terça (22), Papa Francisco declarou, em Santiago de Cuba, “me senti em casa, em família”. De fato, tinha motivos para comemorar. Atualmente são excelentes as relações entre a Igreja Católica e o governo cubano, após décadas de conflitos.
Dias antes de o Papa desembarcar em Havana, no sábado, 20/9, o cardeal Jaime Ortega teve acesso ao programa de entrevistas de maior audiência televisiva no país. Quando se trata da delicada questão de liberar presos políticos, Raúl Castro recorre à mediação dele, gesto que comprova a admiração recíproca que os une.
Embora tenha merecido, em prazos relativamente curtos (em se tratando de pontífices), a visita de três Papas – João Paulo II (1998), Bento XVI (2012) e, agora, Francisco – a ilha socialista não abriga uma nação católica.
Sua religiosidade lembra a nossa Bahia. Predomina o sincretismo, que mescla cristianismo com espiritualidades oriundas da África, trazidas pelos escravos que vieram trabalhar nos engenhos de açúcar.
Calcula-se que, entre a população de pouco mais de 11 milhões de habitantes, apenas 5% podem ser considerados católicos, embora seja bem maior o número dos que foram batizados na Igreja Católica.
A Revolução cubana não se fez contra a igreja. Fidel e Raúl estudaram, por longos anos, como alunos internos em escolas de lassalistas e jesuítas. Na missa celebrada pelo Papa Francisco na Praça da Revolução, no domingo (21), em Havana, Raúl, ao cumprimentar-me, comentou com quem o rodeava: “Já assisti a mais missas do que Frei Betto.” Na primeira metade do século XX, alunos internos de escolas católicas eram obrigados à missa diária.
Lina, a mãe de Fidel e Raúl, fez os filhos prometerem que, se sobrevivessem à guerrilha de Sierra Maestra, cumpririam a promessa que ela fizera à santa de que depositariam suas armas aos pés da Virgem da Caridade do Cobre, padroeira nacional, cujo santuário fica próximo a Santiago de Cuba. Em minha primeira visita à Ilha, em 1981, ali estive e vi as armas expostas, agora transferidas a um museu.
A guerrilha de Sierra Maestra contou com um capelão, o padre Guillermo Sardiñas, que após a vitória, em janeiro de 1959, mereceu o máximo título de “Comandante da Revolução”. E foi autorizado pelo papa João XXIII a trajar batina verde oliva...
As tensões entre Igreja Católica e Revolução se iniciaram quando as medidas de estatização de propriedades nacionais e estrangeiras emitiram sinais de que o país caminhava para o comunismo. O catolicismo pré-conciliar, de forte conotação franquista, se posicionou ao lado dos que defendiam o capitalismo como mais adequado à liberdade religiosa, e identificavam no comunismo o anjo exterminador da fé cristã.
Antes de Francisco embarcar aos EUA, Raúl soprou-lhe ao ouvido que não lhe beijaria a mão, mas o traria sempre no coração. Francisco retribuiu com igual promessa.
Em 1961, após a derrota dos mercenários que, patrocinados pelo Governo Kennedy, tentaram invadir Cuba pela Baía dos Porcos, Fidel declarou o caráter socialista da Revolução. Pressionada pela bipolaridade da Guerra Fria, Cuba se abrigou sob as asas da União Soviética. Sacerdotes fizeram correr a notícia de que a Revolução enviaria à Rússia milhares de crianças destinadas a, longe de seus pais, serem educadas como militantes comunistas. A chamada Operação Peter Pan transferiu para os EUA 14 mil crianças, na esperança de que o socialismo cubano seria derrotado em breve e, assim, elas regressariam a seus lares...
Mudança de rumo
Francisco comemorou, em Havana, os 80 anos de relações ininterruptas entre a Santa Sé e o Estado cubano. De fato, graças às boas relações entre Fidel e o núncio apostólico Cesare Zacchi, jamais um sacerdote foi fuzilado ou um templo fechado. No entanto, a influência soviética introduziu nas escolas a disciplina do “ateísmo científico”, e a prática religiosa refluiu para dentro dos lares e das igrejas, com exceção da santería, equivalente ao nosso candomblé, que se salvou por ser enquadrada na categoria de “folclore”.
Os cristãos foram proibidos de exercer determinadas profissões, como o magistério, e rompeu-se o diálogo entre bispos católicos e dirigentes do país.
Na década de 1970, a Revolução viu abalado seu apego a preconceitos antirreligiosos incutidos pelos soviéticos. Em quase toda a América Latina despontava um catolicismo progressista nas Comunidades Eclesiais de Base, que deram origem à Teologia da Libertação. Na Colômbia, em 1966, o padre Camilo Torres tombara como guerrilheiro, de armas nas mãos. No Brasil, em 1969 descobriu-se que frades dominicanos colaboravam com a guerrilha urbana de Carlos Marighella. Em El Salvador e Nicarágua, cristãos participavam da luta revolucionária ombro a ombro com marxistas. A Revolução Cubana passou a rever seus conceitos frente ao fenômeno religioso.
Abertura religiosa
Em julho de 1980, conheci Fidel, em Manágua, no primeiro aniversário da Revolução Sandinista. Fiz-lhe duas perguntas. Qual a atitude da Revolução frente à Igreja Católica? Antes que respondesse, adiantei-lhe três hipóteses: perseguir, o que comprovaria a acusação de incompatibilidade entre Revolução e religião; manter indiferença, o que favoreceria os contrarrevolucionários que, sem poder sair da ilha, se abrigariam à sombra das sacristias; dialogar, como ente político, com todas as instituições cubanas, inclusive a Igreja Católica. Fidel concordou que a terceira era mais sensata, e que a Revolução precisaria mudar sua atitude.
Em seguida, indaguei-lhe por que o Estado e o Partido Comunista de Cuba eram confessionais. Fidel se espantou: “Como confessionais?” Fiz ver a ele que tanto a afirmação da existência de Deus quanto a negação são meras confessionalidades, e que a modernidade requer Estado e partidos laicos.
Aceitei o seu convite para empenhar-me na reaproximação entre bispos católicos e dirigentes cubanos e, pouco depois, mudanças na Constituição do país e no estatuto do partido introduziram a laicidade.
Em 1985, Fidel me concedeu a longa entrevista publicada sob o título “Fidel e a religião” (livro com o qual presenteou o Papa Francisco, a ser reeditado em breve, no Brasil, pela Companhia das Letras).
Era a primeira vez na história que um líder comunista no poder falava positivamente do fenômeno religioso. A partir daí, como observou um bispo cubano, decresceram o medo dos cristãos e o preconceito dos comunistas.
Francisco surpreendeu
Raúl Castro, ao receber o Papa, sabia tratar-se de um “companheiro”. Francisco fizera duras críticas ao capitalismo, qualificado por ele de “ditadura sutil”, em seus encontros mundiais com líderes de movimentos populares. Sua primeira encíclica, “Louvado seja – o cuidado de nossa casa comum”, é o mais contundente documento até hoje emitido sobre o tema socioambiental. O Papa associa devastação da natureza ao crescimento da miséria e da pobreza, e aponta a ambição de lucro e a economia de livre mercado como responsáveis por isso. Raúl estava seguro de que Francisco não causaria surpresas.
O presidente de Cuba se equivocou. O Papa surpreendeu por sua empatia com o povo cubano, cristãos e ateus. Dispensou o Mercedes blindado reservado a seus deslocamentos e, pressionado a receber os guerrilheiros das FARC que, sob mediação cubana, negociam em Havana um acordo de paz com o Governo colombiano, optou por incluir em sua homilia, na missa na Praça da Revolução, seu apelo pelo bom êxito das negociações.
Ao escutar, na catedral, o depoimento de uma jovem religiosa que cuida de pessoas portadoras de deficiências, a emoção levou Francisco a abandonar o texto escrito de sua preleção e, de improviso, reforçar a opção pelos pobres da Igreja Católica e a misericórdia frente aos pecados alheios. Os cardeais da Cúria Romana que o acompanhavam devem ter ficado em pânico, pois o Papa, revestido de infalibilidade em questões de fé e moral, não pode correr o risco de omitir uma opinião considerada equivocada.
No encontro com os jovens, Francisco ouviu um deles criticar a Revolução por ver seus colegas irem de pé nos ônibus a caminho do trabalho e da escola. Com óbvia sutileza, o Papa fez ver a ele que, em Cuba, ao menos há ônibus e jovens ainda podem se dirigir ao trabalho e à escola. Quantos no mundo não têm nem ônibus, nem trabalho, nem escola.
Antes de Francisco embarcar em Santiago de Cuba, rumo aos EUA, Raúl Castro soprou-lhe ao ouvido que não lhe beijaria a mão, mas o traria sempre no coração. Francisco retribuiu com igual promessa.
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Francisco reacende a fé em Cuba - Instituto Humanitas Unisinos - IHU