Por: André | 22 Setembro 2015
Este jornal teve acesso ao conteúdo das conversas tidas nos últimos dias pelo cardeal de Havana. Que argumentos o papa usou com Obama. E por que a Igreja quer cuidar de Raúl Castro.
A reportagem é de Martín Granovsky e publicada por Página/12, 20-09-2015. A tradução é de André Langer.
Francisco chegou a sugerir a Barack Obama que a aproximação com Cuba fortaleceria as chances de uma sucessão democrática nos Estados Unidos nas eleições de 2016. O jornal Página/12 obteve, junto a diplomatas latino-americanos que tiveram acesso a informações reservadas, essa e outras informações que ilustram o enorme interesse do papa na normalização das relações entre Washington e Havana e por protagonizar ele mesmo uma novidade: Francisco não é o primeiro papa a visitar Cuba, mas o terceiro, depois de João Paulo II, em 1998, e Bento XVI, em 2012, mas é o primeiro a fazê-lo em meio à distensão.
Um personagem da Igreja católica cubana colaborou com Francisco. Assim como o papa, nasceu em 1936 e ainda não completou 79 anos. Jorge Bergoglio é apenas dois meses mais jovem. Jaime Lucas Ortega y Alamino nasceu no dia 18 de outubro, em Jangüey Grande, e Bergoglio, no dia 17 de dezembro, em Flores, Buenos Aires. Cardeal e arcebispo de Havana, Ortega é uma figura central na viagem do papa a Cuba e na aproximação entre Raúl Castro e Barack Obama. O jornal Página/12 descobriu, através de diplomatas latino-americanos, que o cardeal abonou a chegada de Francisco a Havana com uma mensagem: “Obama e Raúl têm muitos inimigos e é preciso cuidar dos dois”.
Naturalmente, ninguém da Igreja católica disse uma frase em público. Mas também ninguém se omite de deixá-la escapar em privado a interlocutores seletos. Alguns desses interlocutores chegaram a relatar essa informação em troca do anonimato. Ortega costuma destacar a boa química que o papa e Obama experimentaram na primeira reunião, a de Roma, em março de 2014. Foi a partir daquele encontro que o Papa começou a insistir em um acordo entre Estados Unidos e Cuba. E não descansou até conseguir que Obama e Castro conversassem.
Ortega relata aos seus visitantes que o segundo momento de grande química nesta história ocorreu quando Castro e Obama começaram a fazer contato. As conversas foram secretas. Nenhum dos dois informou nem ao Departamento de Estado nem à Chancelaria cubana. Até que a questão se tornou pública no Panamá, durante a Cúpula das Américas de abril na qual terminou a exclusão de Cuba.
Pensa o cardeal Ortega que o processo de normalização já é irreversível? Está no caminho para isso, mas segundo ele “Obama e Raúl têm inimigos e é preciso proteger a ambos, porque os dois sabem que antes de deixarem o cargo ainda têm muito a fazer”. Quando fala dos desafios de Raúl, Ortega descreve o peso daquilo que ele chama de “ideologia”, ou seja, o ressaibo do modelo soviético e da rigidez. Para o cardeal, o efeito ainda pode ser percebido em setores do Partido Comunista Cubano, nos meios controlados por ele, na TV, no rádio e na imprensa escrita.
Deu um exemplo. O jornalista Amaury Pérez o entrevistou para a TV cubana e em vez da habitual meia hora, deu-lhe uma hora. Era a primeira reportagem televisiva em 60 anos. O diretor da TV se opôs. Queria revisar e cortar partes. “A entrevista é realizada sem que se toque numa vírgula”, disseram a Ortega que foi a frase de Castro. A conversa pode ser vista clicando aqui.
O desafio para a Igreja é ganhar fiéis, sobretudo entre a juventude, e conseguir recursos financeiros próprios para ajuda humanitária. Devido ao bloqueio, a Igreja não pode receber dólares, porque as contribuições de fora sofrem em algum momento de seu curso interferências dos Estados Unidos. Isso aconteceu com recursos financeiros doados pelos Cavaleiros de Colombo, pela Ilha de Malta e por grupos irlandeses. Os dólares entraram em Cuba após operações clandestinas e inclusive algum bispo teve que percorrer o mundo com 200 mil dólares em espécie escondidos em uma maleta. Em Havana não houve problemas.
Nem Obama nem Castro têm reeleição. Não se sabe quem irá suceder a Obama. Até agora, Hillary Clinton segue sendo a favorita. Mas já se sabe que o próximo presidente cubano não se chamará Castro. Em boa parte porque compartilham essa condição de último mandato se comprometeram muito com a normalização. Depois do segredo inicial de Obama, ajudou-o muito o secretário de Estado, John Kerry, que assumiu a iniciativa com entusiasmo. Também dois norte-americanos de origem latina, o hondurenho Ricardo Zuñiga, com funções no Conselho de Segurança Nacional, e o chileno Ricardo Valenzuela, que trabalhou também nesse órgão de consulta da Casa Branca.
Ortega e a Igreja católica cubana ajudaram Castro na libertação de presos, um gesto que facilitou a tarefa de Obama em Washington. Ortega mostra-se um hábil negociador. Não nega os problemas de fundo, mas tampouco lhes dá caráter de obstáculos dramáticos. O bloqueio, ao contrário, prejudica sua vida cotidiana.
Para os Estados Unidos, o problema de fundo é a situação dos direitos humanos em Cuba, que a Casa Branca critica. Para Cuba, o problema de fundo é a posse norte-americana de Guantánamo, que está em poder dos Estados Unidos desde o começo do século XX. Nem o assunto dos direitos humanos nem a ocupação de Guantánamo são suficientes para impedir os avanços.
A Igreja pensa que não é bom que o presidente equatoriano Rafael Correa ou a Comunidade de Estados da América Latina e do Caribe, a Celac, insistam na questão de Guantánamo, porque sequer o governo cubano quer fazê-lo. Raúl prevê, pelo que parece, que a recuperação de Guantánamo é questão de tempo, de muito tempo, e que agitar agora com muita força a reivindicação de soberania poderia complicar as coisas.
Norte-americanos e cubanos foram tão zelosos em seu empenho para evitar atritos em torno de Guantánamo que acabaram transformando esse ponto em uma oportunidade para a construção de confiança. Na terceira sexta-feira de cada mês, realiza-se um encontro entre comandos militares de Cuba e dos Estados Unidos, uma vez na base e outra vez fora dela. A partir de Guantánamo, os negociadores acabaram flexibilizando o uso do território aéreo cubano por parte dos aviões estadunidenses e concederam facilidades para navegar mais perto da costa. As duas Forças Armadas vêm fazendo exercícios conjuntos contra desastres naturais.
Talvez para não granjear a antipatia de toda a América Latina, até o anticomunista João Paulo II, tão letal para a Polônia e a União Soviética, foi condescendente com Cuba. O papa polonês visitou Cuba em 1998 e também celebrou missa na Praça da Revolução.
Ortega contou nesses dias que João Paulo II perguntou aos bispos: “Quanto os cubanos sabem sobre democracia?” Sintetizaram-lhe a história de Cuba. Disseram que depois de uma longa guerra para se tornarem independentes da Espanha, uma guerra horrível com campos de concentração montados pelas autoridades espanholas, quando os rebeldes estavam a ponto de conseguir a vitória, em 1898, uma intervenção norte-americana manteve o controle. Que os governos cubanos, sempre sob a dependência de Washington, foram ditaduras. Que foram ditaduras combatidas pelas armas. De acordo com o relato de Ortega, o papa olhou para os bispos e disse: “A história ensina que vocês devem avançar rumo à democracia muito em breve”.
Nem a Igreja cubana nem o PC desejam para Cuba a sorte da União Soviética, que implodiu em meio à desordem e o caos. Por isso, mantêm um canal de comunicação fluida pessoalmente e por telefone quando é necessário. Um dia, o mais jovem dos Castro perguntou aos bispos qual seria sua agenda. Ortega apresentou três pontos: solução para o problema dos presos políticos, mudanças econômicas e solução para a relação com os Estados Unidos. Coincidiam, porque a ideia de Raúl era que os cubanos pudessem viajar com maior facilidade e manifestar-se.
A percepção que os eclesiásticos têm não é que os cubanos queiram mudar tudo, mas que buscam mudanças econômicas para viver melhor, o mesmo objetivo que Raúl tem com o chamado projeto de atualização, que deveria ampliar o setor privado com ênfase na faixa cooperativa e sem deixar um milhão de funcionários públicos na rua. Por isso, Ortega pareceu contrariado ao comentar a tomada da catedral de Pinar del Río por parte de cinco Damas de Branco, familiares de presos. Um grupo que estava com as cinco comunicou-se dali com rádios e canais de televisão de Miami. Ortega foi duro com as Damas de Branco: “São poucas senhores e entre elas há de tudo”, disse a um dos seus interlocutores no começo de setembro.
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Ortega, o cardeal das negociações secretas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU